Já houve o soarismo, o cavaquismo, o guterrismo, o barrosismo, o socratismo, o passos-coelhismo e vivemos o costismo, mas há pelo menos 5 anos que se anuncia outra coisa. Como os outros termos, designa menos uma mundividência política do que uma falange de apoio e um modus operandi de conquista do poder, porém é o único que inclui um nome próprio no termo. Tomemos por hipótese que o intrusivo “pedro” de pedro-nunismo é mais uma  das manifestações do egocentrismo e singularidade de Pedro Nuno Santos (PNS) e que “pedrismo” só não vingou para não gerar perturbadoras reverberações monárquicas.

PNS chegou a líder da Juventude Socialista em 2004, cargo que ocupou até 2008, mas é em 2011, num jantar em Castelo de Paiva, que entra no radar de toda a gente, já como número dois da bancada socialista, ao dizer: “Estou marimbando-me para os bancos alemães que nos emprestaram dinheiro nas condições em que nos emprestaram. Estou marimbando-me que nos chamem irresponsáveis. Nós temos uma bomba atómica que podemos usar na cara dos alemães e dos franceses. Ou os senhores se põem finos ou nós não pagamos a dívida”. Nunca saberemos se foi a distância a Lisboa e o vinho ao jantar que soltaram PNS, mas jamais tinha vindo do centrão uma ameaça tão ao jeito da extrema-esquerda. A nossa memória reteve sobretudo o remate “as pernas dos banqueiros alemães até tremem!”. Em público, a direita acusou-o de irresponsabilidade e a esquerda rejubilou q.b., mas é possível que o bravado patriótico de PNS , ainda que secreta e transitoriamente, tivesse conquistado a grande maioria dos portugueses, com o povo de então a marinar na crise das dívidas soberanas e a incubar revolta contra os senhores do Europa do Norte. Já ninguém se lembra de que, à época, o número 1 da bancada parlamentar do PS era Carlos Zorrinho, uma figura tão apagada que a sua evocação, pelo contraste, realça o brilho do instantaneamente inolvidável e raçudo PNS.

Foi conquistando boa imprensa como líder da ala esquerda do PS e cultivando a imagem de fazedor, ganhando na primeira legislatura de Costa a reputação de ter sido ele a manter a geringonça a funcionar, então como Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares. No congresso do PS de 2018, em que empolgou as bases, obrigando Costa ao “Aviso já que não meti os papéis para a reforma”, PNS afirmou-se como o líder da ala esquerda do PS e a voz mais independente do partido entre aqueles com aspirações realistas de um dia o liderar. Chegou a ministro em Fevereiro de 2019, com a pasta das Infraestruturas e da Habitação, incluindo o perigoso dossier TAP, promoção que muitos comentadores versados na escola da intriga política logo interpretaram como um presente envenenado de Costa. PNS manteve o cargo após as legislativas de Outubro de 2019 e de Janeiro de 2022, mas viria a marcar a corrente legislatura com dois episódios negativos extraordinários.

O primeiro foi o acto público de contrição que se viu obrigado a fazer em Junho de 2022 para preservar o seu futuro político, alegadamente por causa dos “erros de comunicação e de articulação” que teriam estado na origem do seu anúncio precipitado da localização do novo aeroporto de Lisboa, poucas horas depois anulado por Costa. Não era a primeira vez que Costa desautorizava PNS em público, mas desta vez o resultado fora espectacular. Com outro ministro ainda teria sido um momento único, porque tais actos públicos são mais típicos da sociedade nipónica do que da nossa. Sendo PNS, foi com um misto de vergonha alheia e guilty pleasure que assistimos àquele instante de política pura e original, no sentido primatológico, em que o macho aspirante se humilhou diante de todos depois de ter sido posto na ordem pelo macho alfa.

O segundo episódio foi a sucessão de trapalhadas a propósito da indemnização da gestora da TAP Alexandra Reis, agravada pela sua tomada de posse como presidente da NAV, de que nos fomos inteirando desde a véspera de Natal de 2022 até 16 de Junho de 2023, data da conclusão da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) à Tutela Política da Gestão da TAP criada para discutir o caso. A história tem algo de absurdo à partida, na medida em que outras indemnizações houve da mesma ordem de grandeza e até superiores no banco do Estado (a CGD), mas os 3200 milhões de euros do erário público de apoio à TAP tinham elevado a susceptibilidade nacional quanto a tudo o que dissesse respeito à nossa companhia aérea de bandeira. PNS apresentou a demissão ainda em Dezembro de 2022, “face à perceção pública e ao sentimento coletivo gerados em torno deste caso”. No início, a tal percepção pública era a de que PNS e o seu ministério tinham sido incompetentes na gestão do caso. Mas a percepção foi mudando: além de incompetente, PNS mentira. Em Dezembro de 2022, PNS alegava que não conhecia os contornos da indemnização. E no próprio comunicado da demissão de Dezembro de 2023 podemos ler: “tendo o Ministro tido agora conhecimento dos termos do acordo [de indemnização  de Alexandra Reis]  e perante as dúvidas, entretanto suscitadas, solicitou à TAP explicações em torno deste processo”. Mas poucas semanas depois da demissão, pressionado por Christine Ourmiéres-Widener (a CEO da TAP que pediu a saída de Alexandra Reis), que afirmara ter uma autorização escrita para o valor negociado com Alexandra Reis, PNS admitiu que se esquecera de que sabia da indemnização de 500 mil euros. A autorização escrita, que emergiu tempo depois, era um conjunto de mensagens trocadas entre o secretário de Estado das Infraestruturas e a CEO da TAP, reveladoras de que o ministro discutira e concordara com os 500 mil euros de indemnização. Assim, ter pedido explicações à TAP tinha sido pura encenação. E alegar esquecimento é uma impossibilidade, pois a amnésia, que não é contagiosa, teria de ter atingido também o secretário de Estado e eventualmente outros membros do gabinete. Em Junho, durante a CPI à tutela da TAP, PNS pôs a pedra definitiva sobre o assunto com uma tirada de retórica: “Há verdades, e eu sei disso, que são mais inverosímeis que a mentira”. Eis um não-álibi fascinante. Repare-se: o ónus da prova caía sobre PNS, mas o ex-ministro nem sequer tentou montar uma explicação e teve a lata de fazer desta desistência perante o salto impossível uma demonstração de transparência, sem admitir a mentira, nem resistir a um remate final com a sua arrogância típica: “Os senhores têm de acreditar? Não, não têm. Eu não tenho é de dizer nada diferente do que aconteceu”. Como respeitar um homem que nos pede uma ingenuidade que nem aos entes mais queridos concedemos? Como confiar em alguém que não admite frontalmente as asneiras que comete? Para PNS, o erro é dialéctico. E a culpa nem sequer é dos intervenientes, mas do processo. Houve “erros de comunicação e de articulação”, gerou-se uma “perceção pública” penalizadora, houve o azar de um encadeamento inverosímil de improbabilidades.

O festival de incompetência política que foi o último mandato de PNS tem uma explicação simples: excesso de vontade. A sua naked ambition é tão pornográfica que PNS só devia passar na TV depois da meia-noite, menos por pudor do que pelo risco de desencaminhar as crianças com o mau exemplo. Foi o desejo de protagonismo no dossier TAP/aeroporto que resultou nas desautorizações públicas de Costa. Foi a mesma ambição e instinto de sobrevivência que fizeram com que um arrogante como PNS se submetesse a um pedido de desculpa público impossível de ser feito por outros menos arrogantes e menos dominados por um objectivo de vida grandioso. Foram ainda estas pulsões que o desorientaram no caso Alexandra Reis, levando-o a uma gestão de danos que se foram acumulando sucessivamente. E todos estes erros foram políticos, embora PNS tenha 46 anos e não faça outra coisa desde o liceu, altura em que presidiu à Associação de Estudantes da Escola Secundária Dr. Serafim Leite.

O mais fascinante nesta história de ascensão e queda é a resistência da imagem de PNS e do seu futuro político. Embora José Matos Correia, José Pacheco Pereira e António Lobo Xavier, entre outros, tivessem apontado as falhas de carácter do ex-ministro e a sua “mentira ostensiva”, o seu futuro parece intacto. O jornalismo e comentariado de esquerda, e também os pedro-nunistas confessos com presença nos media, apressaram-se a concluir que a ida de PNS à CPI tinha sido um triunfo, como fez São José Almeida num desconcertante exercício de jornalismo hagiográfico em que louva PNS por assumir “os erros e a verdade”. Logo se explicou que a prestação de PNS na CPI fora uma combinação do seu talento com a vontade de a oposição de direita ver o PS virar à esquerda, o que passa por assegurar o futuro político de PNS. Ninguém sabe, mas com a curta memória dos portugueses, o tirocínio para líder do PS prometido pela SIC, onde passará a ter uma rubrica a partir de Setembro, e a leveza do cargo de deputado da maioria para ir marcando pontos, tudo se vai compondo para PNS. Alguns começarão até a testar a narrativa revisionista de que PNS se livrou in extremis e de modo calculado do risco de exposição ao futuro da TAP e da camisa-de-forças em que Costa o metera.

PNS não se destacou na academia, no mundo empresarial, no activismo ou nas artes e, não sendo um mau tribuno, nem sequer parece ser o melhor da sua geração, perdendo em advérbios para o seu colega Pedro Delgado Alves. A avaliação dos seus anos como ministro estará dependente do futuro da TAP, por muitas voltas que os pedro-nunistas tentem dar. É verdade que a empresa deu lucro em 2022, após 5 anos no vermelho e num ano em que o jetfuel nem sequer esteve barato, mas os 3200 milhões de euros são uma espada de Dâmocles a pairar acima de Costa e PNS. E sendo certo que nos caminhos-de-ferro PNS se multiplicou em iniciativas (o perdão da dívida histórica da CP, a “alta velocidade”, o “comboio português”, etc.), quase todas têm hoje um futuro incerto e exigem outros protagonistas. Por fim, na habitação não há dúvida possível: com a fraca execução dos programas públicos e a implacabilidade do mercado, PNS foi inútil. Terá a pandemia como atenuante, mas não será visto como o Duarte Pacheco da democracia, excepto – talvez – pelo próprio PNS. Assinale-se porém uma área em que PNS se começa a especializar, sem ter rival à altura. É no “andar por aí”. A famosa expressão de Santana Lopes é uma forma de dizer que não se morreu politicamente. Foi o que PNS fez no congresso dos socialistas de 2021, já marcado pelo pedido público de desculpas, quando apareceu atrasado, de calças brancas, ténis amarelos, t-shirt e blazer. Ou quando entrou lentamente na sala da CPI, cumprimentando os presentes com acenos de cabeça, segundo uma qualquer técnica aprendida nalgum sucedâneo do How to Win Friends and Influence People. Ou ainda quando orquestrou o seu regresso à Assembleia da República já depois da CPI, onde foi recebido entusiasticamente pelos pedro-nunistas. Nesta gestão da imagem política, a concreta e não aquela que o comportamento projecta, PNS é muito cuidadoso. Ainda como Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, resolveu vender o Porsche 997 S Cabrio que comprara dois meses antes, por pensar que um estadista de esquerda numa viatura de luxo seria  “um mau sinal”, apesar de “não ter nenhum discurso moralista sobre isso”.  A justificação é contraditória, mas o instinto parece acertado. A própria barba, que terá começado a usar em 2012 ou 2013, acrescenta-lhe gravitas. E reconheça-se que PNS, não tendo sido capaz de garantir os apoios para se decidir de vez onde se construirá o aeroporto, gerou um amplo consenso que vai dos hipsters às mulheres da faixa 30-50 anos sobre as sempre complexas opções capilares.

A bazófia de PNS, notável na última CPI, e a certeza que dele emana quanto à concretização do seu desígnio são simultaneamente cómicas e perversas. A comicidade tende a ser proporcional à diferença entre a imagem que a pessoa tem de si própria e a realidade. Grandes egocêntricos como Ronaldo e Mourinho são pouco cómicos porque forjaram carreiras extraordinárias, mas um egocêntrico de auto-estima inabalável e carreira menos superlativa como José Cid é sempre engraçado. No caso de PNS, o artigo de São José Almeida é involuntariamente cómico, como cómico é o efeito do poder hipnótico de PNS sobre parte do nosso jornalismo, e cómica é a comparação entre o PNS esquerdista nos congressos do PS que arrebata plateias e o PNS governante que tem de despedir trabalhadores e reconhecer que o futuro da TAP passa pela reprivatização.

A perversidade é a possibilidade forte da profecia auto-realizável e de ser PNS quem, afinal, rirá no fim. Não é preciso recorrer a forças místicas, a sociologia explica estes fenómenos. E ele nem precisa de ser tão explícito como o Durão Barroso de «tenho a certeza que serei primeiro-ministro, só não sei é quando», porque dominar o PS é, há duas décadas, a forma segura de chegar a PM e PNS mantém esse capital intacto.

A jornalista Ana Sá Lopes descreve PNS como uma “espécie de predestinado”, alguém com “star quality”. Talvez se José Sócrates não tivesse dado cabo de mais uma palavra (a primeira foi “narrativa”), o que se diria é que PNS tem carisma. Mas será que tem? PNS é há 20 anos uma celebridade numa agremiação e terá apenas umas centenas de apoios relevantes, que tentacularmente lhe darão o domínio do partido. Não há pedro-nunismo fora do PS. E mesmo dentro do PS, PNS não tem grandes apoiantes acima dos 50 anos. Quando polemiza com os parceiros do PS, é com os senadores, remetendo-se os rivais da sua geração a um prudente silêncio. Assim, o pedro-nunismo define-se mais pela fidelidade geracional do que pela robustez e apelo ideológico, de resto ainda por pôr à prova. É essencialmente um movimento de substituição do poder no PS em que os pedro-nunistas apostaram em ir à boleia do sucesso de PNS. O resto não passa de decoração e, num ecossistema de jornalismo político sobredimensionado, assente no modelo barato do comentário e da opinião para ir parindo “conteúdos” a toda a hora, é grande o incentivo ao inflacionamento do talento político e à dramatização dos cenários sobre a futura liderança do PS.

Desde Max Weber[1], há cerca de 100 anos, não se avançou muito na análise do poder do carisma na política. O termo “carisma”, uma palavra de origem grega originalmente usada para descrever o “dom da graça”, no Antigo Testamento e no Novo Testamento adquiriu uma dimensão divina. Quando Weber levou a palavra da Teologia para a ainda incipiente Sociologia, preservou-se algum misticismo, no sentido de ainda hoje nos dizerem que é difícil explicar o que é o carisma. Outros discordarão, indo ao ponto de sugerir que o carisma se pode aprender e treinar, tese que tem apelo científico e comercial, tendo em conta o efervescente mercado do melhoramento pessoal. Permitam-me porém sugerir que a tese da intangibilidade do carisma não será nunca destruída pela ciência, porque é uma manifestação de pudor. Não vale a pena complicar: de uma pessoa carismática emana um traço de personalidade que, mais do que admirar, invejamos. O alegado mistério surge apenas para evitar embaraços, porque invejar é pecado e o objecto da nossa inveja nem sempre faz de atenuante, podendo até tornar tudo ainda mais vicioso. Mas Weber facilita-nos a vida ao frisar, por mais de uma vez, que usa o termo carisma sem qualquer conotação valorativa. Exemplificando: podemos afirmar que uma figura intragável como Donald Trump tem carisma sem corrermos o risco das chamas eternas do inferno.

Há duas características mencionadas por Weber muito pertinentes para a discussão do pedro-nunismo: a autoridade carismática tende a ser instável e revolucionária. A instabilidade explica-se porque o carisma “é uma qualidade intrinsecamente individual (…), delimitada a partir de dentro e não por uma imposição externa” e também porque quem depende dele para ter poder conquista e mantém a sua autoridade dando mostra das suas capacidades. “Tem de fazer milagres, se pretende ser um profeta. Tem de assegurar feitos heróicos, se quer liderar um exército”. Mas sobretudo, tem de dar provas trazendo bem-estar aos seus seguidores, ao contrário de um rei ou ditador. Nesta necessidade de agradar, a autoridade carismática é tão instável como a autoridade democrática, embora não se confundam, pois quem tem carisma “não baseia as suas pretensões na vontade dos seus apoiantes, como sucede numa eleição; ao invés, é uma obrigação destes reconhecer o seu carisma”. Sucede apenas que esse reconhecimento é caprichoso e tem de ser alimentado em permanência. Weber não infantiliza os seguidores, como parece, pois quando a seguir nos explica a estrutura social do domínio carismático parece que lemos as notas de um antropólogo nalgum congresso do PS: “… a autoridade carismática não pressupõe uma condição amorfa; pelo contrário, implica uma estrutura social definida, com um staff e um conjunto de serviços e meios materiais que servem a missão do líder. O staff pessoal é composto por uma aristocracia carismática, um grupo selecto de apoiantes unidos pela disciplina e lealdade”. É esta estrutura que explica que PNS tivesse resistido à exposição pública das suas insuficiências técnicas, emocionais e de carácter. Porque a adesão ao pedro-nunismo associa o destino do líder ao dos seus seguidores dentro do partido, o que reforça a lealdade, mesmo quando o carisma é beliscado. Só o tempo dirá se Duarte Cordeiro, Alexandra Leitão, Maria Begonha e pedro-nunistas mais discretos continuarão com ele, mas tudo leva a crer que as falhas morais e emocionais de PNS foram toleradas, talvez também porque a fragilidade do líder é um momento em que se testa a fidelidade dos seus apoiantes. No regresso de PNS ao Parlamento, um deputado do PS terá ironizado: “Ainda não fui ao beija-mão. Espero não vir a ser prejudicado no futuro”. É um comentário – anónimo, claro – que capta o essencial.

Mais interessante é o carácter revolucionário do carisma. Na sua forma pura, a autoridade carismática “não conhece leis abstractas ou regras”, pois para a glorificação do “ethos profético e heróico genuíno” é preciso rejeitar toda a ordem externa. Weber vai ao ponto de descrever o carisma como a “força criativa revolucionária da História”, capaz de mudar a partir das entranhas, de algum modo recuperando a teoria dos grandes homens como motores da História, muito em voga no século  XIX e que Tolstói  tentou rebater de forma explícita naquela parte do Guerra e Paz que já ninguém tem fôlego para ler. Porém, nos nossos dias, o único exemplo de carisma puro será o líder de alguma seita que cria uma sociedade fechada, com ou sem desfecho em suicídio colectivo.  Porque a racionalização e burocratização das democracias liberais modernas foram excluindo a autoridade carismática pura. Persistem apenas uns atavismos, como as amnistias, que serão formas de “carisma despersonalizado” encaradas com desconforto pelo cidadão moderno, munido de um radar apuradíssimo para detectar as arbitrariedades. Naturalmente, existiram e existirão líderes carismáticos em democracias consolidadas, seja pela força das suas convicções (Margaret Thatcher) ou eloquência e simbolismo (Barack Obama), entre outras virtudes e também outros vícios, mas foram e serão raros. Já a guerra é uma incubadora de carisma, bastando pensar em Churchill, Charles de Gaulle, Jonas Savimbi ou no actual Volodymyr Zelensky, tal como os grandes movimentos independentistas e de conquista de direitos cívicos (Mahatma Gandhi, Martin Luther King Jr., Simone de Beauvoir, Nelson Mandela, etc.) É também esta dependência do contexto que ajuda a esvaziar de estados de alma a habitual comparação entre os políticos portugueses do início da nossa democracia e os que vieram a seguir. Porque independentemente do carisma inegável de Álvaro Cunhal, Mário Soares e Francisco Sá Carneiro, o seu tempo era muito mais propício ao biopic do que o nosso, sem que haja aqui qualquer erro de paralaxe que leve a uma idealização do passado. Os nossos tempos (em Portugal) não são interessantes. Será talvez uma sorte nossa, porque os tempos interessantes são de privação e desafios terríveis. Vivemos em liberdade e em paz, somos hoje mais livres e menos miseráveis, estamos entorpecidos pelo relativo conforto e a perda de soberania imposta pela União Europeia e a globalização, e nada realmente nos mobiliza a favor ou contra, ganhando terreno o individualismo. Nos anos setenta, estava tudo por fazer, até uma Constituição. E havia uma memória, viva e de adulto, das agruras do Estado Novo, que intensificava a experiência da liberdade. O meu pai formou-se durante a ditadura e foi mobilizado para a Guerra Colonial, tal como um tio meu que andou perdido nos matos de Angola, onde levou um tiro de que se safou. Que aventura de juventude tenho eu para contar? O interrail. Que aventura contarão os alunos que ensino na universidade? Um combate de tunas? Insisto, não se trata de glorificar o passado, e muito menos uma guerra ignóbil causadora de mortes e traumas, mas apenas de constatar uma evidência: que o tão notado défice de brilhantismo e de mundo entre a nossa elite política é apenas um reflexo da sociedade actual. No seu modo descarado de projecto de poder narcísico sem rasgo, o pedro-nunismo não podia ser outra coisa, porque está alinhado com o tempo aborrecido (pacificado, burocratizado, domesticado e globalizado) que vamos vivendo em Portugal.
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[1] As passagens são traduzidas para português por mim a partir de Economy and Society,  tradução de 1978 para inglês do original Wirtschaft und Gesellschaft, Grundriss Der Verstehenden Soziologie, de Max Weber, quarta edição, editada por Johannes Winckelmann, Tübingen (1956), sendo o original de 1922.

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