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O recém-falecido Martin Amis dizia que a literatura é uma guerra contra os clichés (da linguagem), uma citação tão repetida que se tornou – por definição – muito pouco literária. A grande ciência é uma guerra parecida, mas contra o senso comum. O Sol não gira à volta da Terra, a Terra não é plana, os corpos atraem-se em função da sua massa e da distância que os separa, a luz pode ser uma onda ou uma partícula, o tempo e o espaço não são absolutos, a cauda do pavão e outras exuberâncias anatómicas de machos, bem como os magníficos desenhos na areia do peixe-balão japonês e os rituais de acasalamento cómico-belos das aves do paraíso, são um produto de centenas de milhões de anos de selecção sexual. Foi Richard Dawkins, com o seu talento inigualável para memes, a frisar que estas explicações são deslumbrantes porque o homem retira todas as suas experiências sensoriais da estreita faixa temporal e espacial do Middle Word. Aquém e além do Middle World, no infinitesimamente pequeno mundo dos átomos, partículas subatómicas e fracções de milissegundo, como nas astronomicamente incalculáveis dimensões do espaço sideral e do tempo que já dura o Universo e mesmo a nossa Terra, acontecem coisas mais estranhas do que na Middle-earth de Tolkien. Um adulto educado já não reage com a sensação de incredulidade, desconcerto e maravilhamento das crianças e jovens que aprendem as verdades tão pouco intuitivas que a ciência foi revelando, mas libertos da pressão social para não parecermos ignorantes ou simplórios, facilmente admitimos que são mesmo explicações algo incompreensíveis, que chocam com o senso comum que persiste em cada um. De tempos a tempos, vitaminado pelo ressentimento e antielitismo, este senso comum latente irrompe em bizarras rebeliões. Cientes deste potencial de rebelião, populistas e outros demagogos não se inibem de contrastar a miragem da simplicidade das suas explicações com as teorias complexas e estranhas da ciência, numa exploração perversa da Navalha de Ockham, a heurística que privilegia as explicações menos complexas. O resultado é conhecido: terra-planistas e anti-vaxxers. Mas estes casos de pornografia do senso comum potenciaram uma tendência contrária, de mérito igualmente duvidoso, em que a pureza intrínseca do questionamento periódico do que a sociedade tem por certeza imutável, que é uma das características da ciência e da criança inquiridora, foi sendo inquinada por demagogia mal- ou bem-intencionada. Como se o senso comum fosse invariavelmente enganador, de repente tudo fica em causa, inclusive algumas das mais fundamentais certezas da Biologia que pouco têm de desconcertante. Parece que embalo para uma crítica do pós-modernismo, mas prefiro centrar-me no cúmulo mais recente deste fenómeno, a pergunta que anda a aterrorizar políticos e pretendentes a altos cargos públicos nos países anglo-saxónicos: o que é uma mulher?

Noutros tempos, a pergunta era “o que quer uma mulher?”, na célebre provocação do misógino Freud, uma interrogação com que o adolescente enamorado se confronta e a que não conseguirá responder em tempo útil. A esta velha e à nova pergunta se poderia responder da mesma forma com um jocoso e enfático “quem me dera saber”, mas a guerra cultural anda tensa e já não tolera estas evasivas. Reparemos nas conversas absurdas sobre a definição do termo “mulher”, com a juíza norte-americana Ketanji Brown Jackson a recusar responder e o Primeiro-Ministro da Nova Zelândia a tactear a escuridão da sua cabeça em busca da resposta politicamente inócua. Estas recusas e hesitações estão ligadas à causa dos trans, ainda o grupo mais discriminado entre todas as minorias LGBT+, cujo activismo roubou protagonismo aos homossexuais, agora que os direitos destes estão – pelo menos em teoria – assegurados em grande parte do mundo ocidental. Mas estas conversas absurdas resultam também de uma falácia que remonta pelo menos ao feminismo de meados do século passado, quando se concluiu que as mulheres e os homens só passariam a ser tratados de forma igual pela sociedade se decretássemos que não diferem na biologia além dos papéis na reprodução e das diferenças físicas estatisticamente evidentes que resultam num diferente desempenho desportivo. Quaisquer outras diferenças, nomeadamente as comportamentais e, em particular, as que levam a escolhas profissionais e outras grandes opções de vida distintas, só poderiam resultar do condicionamento social e quem sugerir o contrário será um reaccionário que pretende repor o patriarcado. Não precisava de ter sido assim. No que é essencial para a definição de um cidadão, os homens e as mulheres são indistintos. E fazer a igualdade de direitos entre homens e mulheres refém de uma forjada ausência de diferenças biológicas só torna mais frágeis as conquistas do feminismo. Mas a falácia está tão entranhada na cultura que provavelmente nunca nos livraremos dela, o que assegura um inesgotável arsenal de bom senso aos reaccionários. O que presenciamos hoje é a repetição desta falácia, que no contexto da causa trans tem sido levada a um extremo que nos pressiona a redefinir palavras banais. 

Não é de agora a tese do “mito dos dois sexos”. Esta discussão, que tendia a regressar à tona a propósito de alguma desportista com um desempenho desportivo extraordinário e um corpo masculinizado, como a corredora sul-africana Caster Semenya, está hoje invariavelmente associada à causa trans. Frisa-se a sobreposição nas curvas de distribuição dos níveis de testosterona de mulheres e homens e que existem pessoas intersexo, isto é, indivíduos cujas características sexuais não encaixam nas noções típicas de sexo feminino e masculino. Haverá mérito no trabalho de académicos como Judith Butler, que têm propagado as noções de fluidez de género e do género enquanto acto performativo (pura construção social), que se distinguirá do sexo imposto pela biologia, mas quanto ao valor da ideia da fluidez do sexo tenho dúvidas. Artigos em publicações mainstream, como a National Geographic, a Scientific American, a Forbes ou o San Francisco Chronicle, entre outras, têm contribuído para popularizar a ideia de um contínuo de diferenciação sexual, partindo do pressuposto de que o modelo tradicional dos dois sexos dificulta a integração dos trans. E assim, da definição clássica de mulher como um ser humano adulto que é ou seria capaz, não havendo uma doença impeditiva, de produzir oócitos (os gâmetas femininos), chegou-se à definição genérica de mulher como “qualquer pessoa que se identifique como mulher”, passando as mulheres cis a ser “pessoas que menstruam”. Pensar que esta reformulação de conceitos absurda, tautológica e trapalhona era necessária e não irritaria meio mundo, inclusive gente tão insuspeita como J.K. Rowling, ainda me surpreende. 

Seria muito mais simples, rigoroso e politicamente eficaz mas também mais revolucionário reconhecer que uma mulher trans não é uma mulher cis (obviamente), nem uma mulher segundo a definição tradicional. Primeiro, um trans tende a pretender transitar para o outro sexo estereotipado e não para a posição imprecisa de um espectro, o que contraria a ideia do contínuo. Segundo, sabemos que, até há pouco tempo, quem afirmasse sentir-se mulher estava a ser honesto, mas se passa a bastar alguém afirmar-se mulher para ser considerada uma mulher, fica aberta a porta para oportunistas mal-intencionados e gente desequilibrada. Terceiro, tem de haver uma aceitação por parte de todos sobre quem pode usar balneários públicos e ser posto numa prisão de mulheres, não bastando a auto-determinação. Uma mulher cis não precisa de ser uma trans-exclusionary radical feminist (termo algo assustador) para não querer partilhar um balneário com uma mulher trans mais forte e possuidora de um pénis, sendo este um caso claro de direitos conflituantes. Quarto, também em muitos desportos seria injusto e, no caso dos desportos de combate, até perigoso permitir que mulheres trans que fizeram a transição depois da adolescência meçam forças com mulheres cis, por mais apertado que seja o controlo dos níveis de testosterona, como se conclui ao ler sobre os recordes que a nadadora trans Lia Thomas foi batendo e começa a ser reconhecido por muitas entidades que regulamentam o desporto. Sendo uma discriminação, é virtuosa, como virtuosa tem sido a separação entre provas masculinas e femininas. Quinto, embora o objectivo de “passar” pelo género/sexo com que o trans se identifica dificulte transpor para a causa trans a estratégia do “orgulho gay” que funcionou no caso dos homossexuais, talvez  fosse mais avisado apostar no reconhecimento e valorização do percurso diferente dos trans, tipicamente muito mais difícil do que o dos cis, do que a reformulação semântica que tem sido tentada. Enfim,  enquanto homem cis tenho noção do ridículo que é dar conselhos em público aos trans, mesmo quando esta sugestão apenas ecoa a posição de Foucault sobre a homossexualidade, que o filósofo entendia como algo a que se aspira e não que apenas se reconhece. Mas a tese é simples, ainda que paradoxal: manter a definição clássica de mulher é a posição verdadeiramente revolucionária, pois é a única que, pelo contraste entre cis e trans, mantém na linguagem a idiossincrasia trans. Optar por outro caminho seria repetir a falácia feminista que fez a igualdade de direitos depender da desvalorização das diferenças.

Alguém familiarizado com as polémicas trans nas redes sociais poderá pensar que a referência inicial a Dawkins foi uma provocação porque, em 2021, o escritor e cientista perdeu o título de “humanista do ano” à conta dos seus comentários sobre os trans. Na verdade, tratou-se de uma alusão menos gratuita do que parece porque pretendia apenas regressar ao Middle Word de Dawkins na conclusão deste texto. A descrição que Dawkins faz tem uma lacuna óbvia. O seu mundo não é apenas definido por uma estreita faixa que delimita uma estreita parte da escala temporal e espacial, pois também fica de fora do Middle World que forma a nossa mundividência tudo o que é raro, como os trans, que serão menos de 1% da população. A dificuldade da causa trans resulta da raridade deste grupo, da sua marginalização, muito superior à dos homossexuais, e de haver a tentação de realizar o mais cedo possível as intervenções médicas de que alguns trans precisam, apesar de serem parcialmente irreversíveis. É natural que, perante este desafio e uma história de marginalização e violência que persiste até hoje, o activismo trans se afirme radical e desperte algumas simpatias entre trans e cis que potenciam exageros, como sucede com algum activismo cientifico pró-trans pleno de boas intenções mas a prazo contraproducente. Este texto é contra esse excesso de voluntarismo que atropela o bom senso e o rigor, dando armas aos inimigos. 

Se há um contínuo que reconheço é o que se aplica ao desejo de transcender a nossa biologia, inexistente nuns e ardente noutros. Mas nem todo este fogo seduz. Os caprichos egoístas e insistentes dos trans-humanistas que sonham com a imortalidade contrastam com o heroísmo do trans que luta apenas para viver os seus dias como um mortal em harmonia com o seu corpo. Os cis nunca poderão entender inteiramente o que esta luta exige, pois a empatia tem limites, mas a pretensão para que uma pessoa seja tratada de acordo com o sexo/género com que se identifica será em breve entendida pela maior parte da sociedade como legítima e urgente. Assinalar os exageros deste processo revolucionário em curso é uma obrigação dos simpatizantes da causa trans. Para que um dia, tão cedo quanto possível, ninguém hesite ou erre perante a nova pergunta: o que é uma mulher trans?



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Imagem: O Mal de Antíoco, Jean-Auguste-Dominique Ingres, 1840.

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