O romance do amante

L’amant, l’amant, toujours recommencé!

 

O amante da China do Norte se abre com um prólogo em que Marguerite Duras explica logo no primeiro parágrafo a escolha do título: “O livro poderia ter se chamado O amor na rua ou O romance do amante ou O amante recomeçado. Finalmente escolhemos entre dois títulos mais vastos, mais verdadeiros: O amante da China do Norte ou A China do Norte”. Este prólogo, escrito em primeira pessoa, traz em seu final uma data, “maio 1991”, e a assinatura de sua autora. Exatos sete anos o separam da finalização de O amante, que se encerra também com uma data, “fevereiro-maio 1984”, e é narrado em primeira pessoa, numa voz que se confunde com a da autora, já que esta sugere haver algo de biográfico no relato da relação de amor, ambientada na Indochina (hoje, Vietnã) do final dos anos 1920, entre a jovem de quinze anos de origem francesa, até então virgem, e o chinês doze anos mais velho, de família abastada e tradicional, já prometido em casamento a uma moça igualmente chinesa e rica. 

É a este livro anterior que Marguerite Duras se refere quando afirma que O amante da China do Norte poderia ter se chamado ― com uma evidente alusão a um célebre verso de Paul Valéry ― O amante recomeçado. Publicado ainda em 1984, O amante se tornou um dos livros mais vendidos da autora, recebeu o prêmio Goncourt e, em 1991, ganhou adaptação para o cinema por Jean-Jacques Annaud. Em entrevistas concedidas à época, Marguerite Duras não escondeu seu descontentamento com a versão de Annaud para o livro. Em função disso, houve quem atribuísse a escrita de O amante da China do Norte a este descontentamento. E a própria estrutura do livro, concebido em muitos momentos como um roteiro cinematográfico profuso em descrições de cenas e imagens, parece corroborar essa leitura. 

Mas há mais em jogo nesse recomeço do amante e do livro, nessa retomada da história narrada sete anos antes. No prólogo já citado, Duras credita a escrita deste novo livro à morte do amante chinês, ocorrida em maio de 1990: “Abandonei o trabalho que estava fazendo. Escrevi a história do amante da China do Norte e da criança: ela ainda não existia em O amante, não havia tempo”. E, assim, passou um ano dedicada ao livro, “fechada naquele ano do amor entre o chinês e a criança”. “Eu não imaginara absolutamente que a morte do chinês pudesse acontecer, a morte do seu corpo, da sua pele, do seu sexo, das suas mãos. Durante um ano voltei à idade da travessia do Mekong na balsa de Vinh-Long.” Com a morte do corpo, o amante chinês só poderia então restar como imagem. Talvez por isso O amante da China do Norte se apresente como sendo, ao mesmo tempo, um livro e, como diz a própria autora, um filme.   

A história recomeça a partir da perda definitiva, que corresponde ao fim do amor. “Um dia vamos morrer”, diz um dos amantes na narrativa. Ao que o outro responde: “Sim. O amor estará no caixão com os corpos”. A única forma de sobrevivência desse amor é por meio dos livros. Na sequência do diálogo, os amantes afirmam:

 

— Sim. Os livros estarão fora do caixão.

— Talvez. Ainda não podemos saber.

O chinês diz:

— Sabemos sim. Sabemos que haverá livros.

Não pode ser de outra maneira.

 

Não por acaso, nesse recomeço, quem narra a história não é uma voz em primeira pessoa que se confunde com a da autora: “A voz que aqui fala é aquela, escrita, do livro”. A voz do livro que agora estamos lendo, mas, por meio desta, também a voz do livro anterior, que se reescreve. Nesta reescrita, está implicada uma mudança de perspectiva: a jovem de quinze anos não é mais uma simples evocação do passado da narradora, mas passa a ser vista de fora e nomeada “criança”: “Alguém anda à nossa frente. Não é quem está falando. É uma moça bem jovem, ou mesmo uma criança”. 

Lembremos que um dos títulos possíveis de O amante da China do Norte seria O romance do amante. Decisivo aqui é a palavra romance. A ela, Marguerite Duras volta na frase final do prólogo depois de afirmar que permaneceu “dentro da história” com os amantes por um ano inteiro: “Voltei a ser uma escritora de romances”. “Pôr em romance” ― a expressão que está na origem da forma romance ― significa “traduzir em língua vulgar”, isto é, transportar do latim para a língua do povo (que, no contexto medieval, é a língua das mulheres). Mas também implica, como o filósofo Giorgio Agamben bem observa, “a ideia de uma palavra que provém de fora ou de alhures”, muitas vezes de um livro anterior, recebido ou encontrado pelo autor, como no Conte du Graal, de Chrétien de Troyes, romance fundamental da literatura francesa do Medievo. Assim, constitui-se como parte integrante da tradição romanesca essa “ficção de uma palavra recebida, que o autor teria se limitado unicamente a transcrever ou traduzir”

Podemos dizer, portanto, que, em O amante da China do Norte, Duras põe O amante em romance. É um novo livro, em que a “palavra recebida”, a palavra anterior é a sua própria, mas já concretizada num objeto exterior, o livro ― e Duras tem consciência do desafio que se colocou. “Eu recomecei tudo, comecei tudo. Como se fosse a primeira vez”, diz ela numa entrevista. E, de fato, o lugar próprio, mas por isso mesmo arriscado, da escrita deste romance é o intervalo entre recomeço e começo, entre o livro anterior e o livro por vir. Uma ficção da ficção, em suma: como se fosse a primeira vez, mas a partir da consciência de que a primeira vez já está dada de antemão e, portanto, perdida (como o amante morto). Como Duras afirma algum tempo depois no ensaio Escrever: “Escrever ao lado daquilo que precede o escrito é sempre estragá-lo. E é preciso no entanto aceitar isto: estragar o fracasso significa retornar para um outro livro, para um outro possível deste mesmo livro”. E retornar ao livro, qualquer que seja, não é fácil: “Porque um livro é o desconhecido, é a noite, é fechado, é assim”. Com efeito, numa das primeiras cenas de O amante da China do Norte, Duras sintetiza seu romance em três palavras, numa espécie de umbral que dá acesso à narrativa: 

 

Um livro.

    Um filme.

    A noite. 

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