Os crimes da imaginação

Em Crime e Castigo, Dostoiévski dedica pouco menos de um sexto do romance à premeditação de Raskólnikov que o conduzirá ao assassínio da sua senhoria: um primeiro sobressalto, o desconforto que a ideia lhe provoca, dois monólogos para frisar a pobreza como catalisador da miséria moral (um na viva voz de um bêbado e o outro, epistolar, da mãe de Raskólnikov), a racionalização de alguém que coloca o valor da vida da senhoria abaixo da de um escaravelho e desenvolve o argumento utilitarista de que o dinheiro da velhota deveria ser distribuído para ajudar muitos, palavras que, por coincidirem com os seus pensamentos, ainda deixaram Raskólnikov mais perplexo. São algumas páginas, mas não tantas assim no tomo do russo e a história só se desenvolve verdadeiramente depois, já consumado o assassínio. Parece haver na ficção uma tendência para se precipitar o crime, como se não se esperasse do leitor ou espectador grande tolerância para o período de incubação de uma ideia pecaminosa. E no entanto os assassinos são raros, mas das ideias pecaminosas ninguém se livra.

Entenda-se por ideia pecaminosa qualquer pensamento, imagem ou impulso, vindo não se sabe bem de onde e capaz de nos perturbar por chocar com os nossos valores morais, como a ideia de matar violentamente um ente querido ou dizimar uma multidão. Quando se torna recorrentemente intrusiva, descrevemo-la como um transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). Agora que eliminar o estigma associado à saúde mental se anuncia como prioridade, bastando pensar na simpatia com que hoje se discute a depressão, a bipolaridade ou o autismo, não surpreende que se faça alguma pedagogia em relação ao TOC, incluindo a variante fobia do impulso (o medo de fazer mal aos outros ou ao próprio). Mas continua a imperar o don’t ask, don’t tell que enclausura estas ideias incómodas na cabeça de cada um. A explicação parece óbvia: o receio de partilhar uma ideia que outros depois não admitirão já ter tido, ou seja, o medo de apostar numa tentativa de empatia que, ao não ser reciprocada pelo nosso interlocutor, depois nos deixará vulneráveis. Não há regras de etiqueta para reagir a uma confissão destas vinda de um amigo. Deverei reciprocar, partilhando uma ideia de gravidade semelhante? Produzir uma teoria reconfortante sobre os pontos de contacto entre a sanidade e a loucura? Ou será mais generoso e corajoso partilhar um pensamento nosso ainda mais abominável, dobrando a aposta, e assim se iniciando uma escalada de confissões? E como distinguir o pensamento intrusivo ocasional, que todos terão, de um TOC? Para resolver a equação que incluirá a frequência, gravidade e grau de controlabilidade destes pensamentos, os profissionais de saúde terão a competência e experiência relevantes, mas não o cidadão comum e os seus amigos. Há um potencial histriónico óbvio neste tipo de interacções, aqui explorado com mestria por Woody Allen, mas, no limite, ninguém se sentirá seguro e o risco de uma tragédia fica a pairar, seja a falar com um amigo ou até mesmo um psiquiatra, se este entender não ser despicienda a probabilidade de alguém passar das palavras aos actos, como já sucedeu a uma mãe que confessou pensar de modo obsessivo em magoar o seu filho pequeno, sendo por isso denunciada pelo psiquiatra aos serviços de protecção de menores. A mera verbalização destas ideias parece sinalizar a sua gravidade. E as confissões públicas e supostamente empáticas de psiquiatras que leio sobre os seus pensamentos intrusivos serão contraproducentes, pois tendem a ser relatos de pensamentos pouco condenáveis ou assustadores, o que só exacerba a preocupação e o isolamento de quem tem pensamentos muito mais perturbadores. 

Da farmacologia às diferentes terapias, como a cognitivo-comportamental ou a de exposição e prevenção de resposta, abundam as soluções para lidar com o TOC e são conhecidas as causas próximas, incluindo o stress, a ansiedade, as alterações hormonais e certos traços de personalidade. A receita que evita ou elimina o TOC funcionará para a vasta maioria das pessoas e é muito simples de enunciar: 1) identificar o pensamento intrusivo e ter presente que não traduz uma intenção real; 2) aceitar o pensamento, evitando resistir-lhe, pois é a melhor maneira de o esvaziar de importância; 3) suspender o julgamento, ou seja, “desvincular a pessoa dos pensamentos”. É uma fórmula bem achada, esta da desvinculação dos pensamentos, mas que choca com o “Confesso a Deus, Pai Todo-Poderoso, e a vós, irmãos, que pequei muitas vezes por pensamentos e palavras, actos e omissões…” A terapia substituiu a confissão, e a desvinculação é um autêntico bálsamo que devolve ao indivíduo a liberdade que a Igreja sempre lhe negou, mas sobra uma dúvida insidiosa: de onde surgem estes pensamentos?

Embora sendo clara nas recomendações práticas, a literatura recente é muito parca quanto à génese dos pensamentos intrusivos. Talvez isto suceda por, ao longo dos séculos, terem sido estudados no contexto de uma doença e não como manifestações ocasionais em indivíduos saudáveis. Ou então este desinteresse actual pelas causas últimas surge ainda como reacção à figura tutelar de Freud e às suas teorias pseudocientíficas, optando-se pelo silêncio quando não é possível investigar o fenómeno com as ferramentas da ciência. Segundo o pai da psicanálise, os comportamentos incontroláveis (o TOC) resultam de um conflito na vida psíquica entre os impulsos inconscientes, de cariz sexual ou agressivo, e os constrangimentos conscientes impostos pelas regras de convivência em sociedade. Se esta explicação, mesmo no contexto exclusivo da doença, nos soa suspeita, a verdade é que não foi ainda substituída por outra no imaginário popular. Uma pessoa saudável fica assim forçada a aceitar que o seu pensamento intrusivo ocasional é natural (no sentido de comum) mas misterioso.

Uma disciplina com origens no século XIX e que ganhou força sobretudo a partir dos anos setenta do século passado na academia e na imprensa generalista foi a Psicologia Evolutiva (PE). Os seus proponentes defendem que a mente humana, tal como o corpo, foi forjada pelos mecanismos da evolução das espécies. A mente será composta por um conjunto de módulos que surgiram para conferir competências específicas, como a aquisição da linguagem, a selecção de parceiros sexuais, o estabelecimento de relações no seio da família e de alianças, e a arte de escapar aos predadores, entre outras exigências impostas pelos milhões de anos que os nossos antepassados viveram como caçadores-recolectores. Há essencialmente dois tipos de críticos, os que vêem na PE uma forma de determinismo genético legitimadora de ideias conservadoras, como o patriarcado, e os que criticam o peso excessivo que a PE dá às adaptações seleccionadas pela evolução, que a uns lembra o fervor ignorante dos recém-convertidos. Este debate em torno do adaptacionismo precede e transcende a discussão em torno da PE, colocando em confronto as teorias adaptacionistas, que privilegiam as explicações com base na selecção natural das variações mais benéficas e na atomização do organismo nas suas partes, cada uma seleccionada para uma função, e a visão mais plural que considera ainda o acaso (a deriva genética) e a contingência, e vê o organismo como um todo em que as partes se relacionam umas com as outras pelos constrangimentos impostos pela genética e a biologia do desenvolvimento. Esta é a visão defendida num artigo clássico de Stephen Jay Gould e Richard Lewontin dos anos setenta, que crítica o “programa adaptacionista” então dominante na Biologia e na PE, e hoje já só seguido por um grupo de ortodoxos. Gould e Lewontin lembram que o próprio Darwin foi menos darwinista do que os adaptacionistas seus contemporâneos no sentido em que considerou outros mecanismos. Mas no universo da cultura popular e da pop science recorrer à selecção natural para explicar as nossas qualidades e defeitos tem ainda um poder de sedução irresistível pois fornece explicações simples, giras para partilhar num jantar com amigos, e dificilmente refutáveis, sobretudo em contextos pouco propícios para a experimentação, como é o caso da história evolutiva das nossas capacidades mentais. É ao abrigo desta longa ressalva que prosseguirei.

Ao longo dos tempos, a lista do que distingue os seres humanos dos outros animais tem vindo a encurtar. A visão secular dominante descartou o nosso estatuto privilegiado dado pela religião e pela mitologia, aprendemos que o domínio do fogo não é um exclusivo nosso, pois algumas aves de rapina também controlam parcialmente os incêndios para expor as suas presas, que os corvídeos são exímios na manipulação de ferramentas, que no seu ritual de acasalamento o peixe-balão japonês faz desenhos na areia de uma complexidade e simetria impossíveis de igualar por gente sem formação em artes plásticas ou queda para o desenho, que o uso do sexo apenas para prazer já foi relatado em fêmeas e machos de dezenas de espécies, que a transmissão de cultura foi demonstrada em orangotangos, que há complexas hierarquias sociais em espécies tão díspares como as formigas e as orcas, manifestações de empatia e nobreza testemunhadas por  qualquer dono de um cão, e um apurado sentimento de injustiça no macaco capuchinho que recebe um insípido naco de pepino como recompensa em vez da uva açucarada que é dada ao macaco vizinho como prémio  pela mesma tarefa. Apenas a complexidade da nossa linguagem e outras capacidades mentais e comportamentais parecem resistir enquanto características únicas, mas é preciso complexificar a definição cada vez mais para manter um estatuto de exclusividade que não resulte apenas de diferenças de grau, talvez para facilitar a distinção moral e legal entre os seres humanos e os outros animais que muitos (incluindo a filósofa Martha Nussbaum) hoje contestam. Entre estas características, estando a inteligência ameaçada pelos desenvolvimentos extraordinários na inteligência artificial, o homem volta-se para a criatividade e imaginação com a urgência do náufrago em braçadas até à única bóia à vista capaz de adiar o afogamento. Ninguém duvida de que a nossa extraordinária capacidade de testar o futuro pela produção de cenários e de gerar na cabeça o que ainda não existe deu-nos uma vantagem sobre todas as outras espécies e, em larga medida, fez o mundo em que hoje vivemos. Não é preciso pensar nas grandes obras de arte ou nos feitos da ciência e da tecnologia, que são as conquistas icónicas da imaginação. Porque a imaginação está em todo lado. Por exemplo, vista da outra margem do Tejo, a Grande Lisboa que se estende de Oeiras ao Terreiro do Paço é um festival da imaginação e da vontade. A cada edifício, cada arruamento, cada jardim e cada praça, das grandes volumetrias à escala dos parafusos e das dobradiças, podemos associar actos criativos originais ou copiados de alguém que, ao longo dos séculos, foram fazendo o edificado. 

O valor evolutivo da imaginação é um dado adquirido. Terá algum efeito negativo? Talvez os pensamentos incómodos que por vezes nos assolam e em alguns casos levam a um TOC sejam simplesmente o preço a pagar pela prodigiosa inventividade da nossa espécie, uma consequência inevitável da nossa capacidade de produzir as associações de ideias mais inusitadas, que será tão mais poderosa quanto mais livre de constrangimentos morais e outros estiver. Esta será uma interpretação nada adaptacionista, que vê os pensamentos intrusivos como efeitos secundários de algo (a imaginação) que a selecção natural apurou. Mas também se pode admitir uma explicação ao jeito da PE. Assim, talvez os pensamentos intrusivos sejam um teste que fazemos periodicamente às nossas convicções morais, thought experiments íntimas que precedem em centenas de milhares de anos os populares trolley problems da Filosofia Experimental. Não tenho recursos para preferir uma destas duas teorias à outra.

Seja qual for a génese dos pensamentos intrusivos, a imprensa do crime e a ficção (cinema, televisão, videojogos, artes gráficas, canções e livros), ainda que de um modo imperfeito, talvez acidental e nunca abertamente assumido, parecem ter uma função social útil na gestão dos pensamentos intrusivos que não lhes reconhecemos dado o mediatismo dos casos de copycat, aquelas situações em que o criminoso replica o que viu no cinema ou leu num livro. Mas estas são situações raríssimas. A esmagadora maioria das pessoas que assistem ao The Texas Chain Saw Massacre não corre apressadamente para o Leroy Merlin em busca de uma serra eléctrica. Da mesma forma, não existe entre os criadores destas obras com cenas horrendas uma particular predisposição para a maldade, pelo que a função social que proponho não é um qualquer tipo de sublimação que socializa ou domestica um impulso criminoso. Refiro-me apenas à inscrição no espaço público da imensa colecção de horrores vindos das notícias de crimes violentos e sobretudo da ficção. É verdade que vários estudos sugerem uma associação entre a violência nos media e comportamentos agressivos e haverá boas razões para retardar nas crianças a exposição a cenas violentas. Mas a partilha de cenas horrendas também esvazia de relevância pensamentos que, na ausência dessa partilha, seriam vistos como originais e, por isso, muito mais perturbadores. Porque a originalidade dá um cunho de autoria e até de revelação que dificulta a “desvinculação”. Quando reconhecemos no pensamento intrusivo o eco de algo já visto, é mais fácil sacudi-lo com um encolher de ombros. 

Desde há uns três anos, as minhas filhas (hoje com oito anos) contam-me esporadicamente que tiveram um pensamento mau. Quando hesitam em descrevê-lo, penso se não lhes terá passado pela cabeça uma qualquer das ideias abomináveis que associamos à fobia do impulso. Mas quando finalmente desabafam, logo descanso com a candura do que vai naquelas cabeças povoadas por bruxas e enredos assustadores, em que elas surgem como vítimas e nunca na pele das criaturas maldosas, e pelo natural medo e perplexidade que a finitude da vida lhes causa. É o descanso do idiota, claro, porque o horror do pensamento intrusivo pode já povoar a cabeça das duas, sem que elas tenham o à-vontade para desabafar, tal a vergonha. Mas não há solução. Não as posso interrogar, sob pena de criar um problema que, afinal, ainda não existia. Nem tudo se resolve à conversa e sobre este assunto recomenda-se mesmo algum pudor. Brodsky escreveu que a consciência começa quando contamos a primeira mentira. Embora seja a passagem que mais vezes cito, soa a boutade sem grande sustentação empírica e não me recordo da minha primeira mentira como um instante fundador. Estou mais certo de que o primeiro pensamento intrusivo e inconfessável é, pelo menos entre as crianças amadas, o contacto inicial com a inexpugnável solidão que temos de suportar se nos quisermos manter livres. 

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