A Vida de Brian e a JMJ

Este Agosto, enquanto os leitores da Almanaque se deliciam com um novo número, enquanto saboreiam sofisticados cocktails nos mais recônditos e exclusivos lugares paradisíacos do nosso planeta, Lisboa será invadida por uma multidão de jovens e para-jovens, paramentados ou nem por isso, em busca de ver ao vivo, e num palco francamente polémico, o Papa Francisco. É possível que o número supere o milhão e meio de participantes vindos de todo o mundo, espalhados numa área enorme. A enorme complexidade

A Vida de Brian e a JMJ

A Vida de Brian e a JMJ

Este Agosto, enquanto os leitores da Almanaque se deliciam com um novo número, enquanto saboreiam sofisticados cocktails nos mais recônditos e exclusivos lugares paradisíacos do

Destaques

Quem?

Quem?

O pedro-nunismo

Já houve o soarismo, o cavaquismo, o guterrismo, o barrosismo, o socratismo, o passos-coelhismo e vivemos o costismo, mas há

O pedro-nunismo

O pedro-nunismo

Já houve o soarismo, o cavaquismo, o guterrismo, o barrosismo, o socratismo, o passos-coelhismo e

Quem?

Quem?

Não é que esteja a esquivar-me ao assunto. Ou a tentar formar frases para que

Todos os artigos

Simpatia inacabada #6

Simpatia inacabada #6

A História Interminável   Nunca fui muito boa a escrever conclusões. Várias pessoas me disseram isto, no tempo em que tive professores. Por isso, nas respostas do Chat GPT encontro um traço distintivo que me parece invejável: uma estrutura com princípio, meio e fim. Como em muitos textos assim tripartidos, mesmo quando escritos por seres humanos, cada uma destas partes repete a mesma informação, mas com uma perspectiva ligeiramente diferente. É uma forma de simplificação

Weimar #9

Weimar #9

MANUTENÇÃO – PRAZERES PROIBIDOS  – SUPERMERCADO – INFLAÇÃO – BIBLIOTECA MANUTENÇÃO   O único motor do navio não tinha Manutenção há dois mil anos. O navio metia água e os animais estavam inquietos, os que ainda tinham coragem para embarcar. Um par de passarinhos desanimava, vários casais de insetos e um de leões ensaiavam pequenos e grandes motins e um sargento da marinha vestiu umas botas para a chuva. O mais preocupante foi a recusa

Comida: o resto é paisagem

Comida: o resto é paisagem

Poucas coisas terão mudado mais a paisagem do que a obtenção de alimentos pela nossa espécie. A termodinâmica não perdoa: ou entra energia de alta qualidade no sistema – no nosso caso sob a forma de alimentos – ou isto não resulta. Primeiro, a deslocação dos grupos de caçadores–recoletores, e depois, numa escala muito maior, as práticas agrícolas abriram caminho à sedentarização e à vida em aglomerados populacionais maiores, associada a uma enorme transformação da

O ChatGPT responde. Mas sabe perguntar?

O ChatGPT responde. Mas sabe perguntar?

Imagens criadas pelo DALL-E em resposta ao prompt “DALL-E doing chemistry”   Este texto não é sobre os problemas dos modelos actuais de aprendizagem automática, nem sobre enviesamentos e impactos sociais (que são muitos e importantes). É sobre ciência e criatividade e como isso é tão humano.   No passado dia 27 de Março, o senador americano Chris Murphy escreveu mais ou menos assim na sua página do Twitter: “O ChatGPT aprendeu sozinho a fazer

E bem, e o provedor?

E bem, e o provedor?

Um periódico da chamada imprensa regional — impropriamente chamada: a imprensa é por natureza universal, até quando a natureza é ridiculamente local — noticiou, e bem, que Wittgenstein, aquando de breve passagem por Alcochete, foi interpelado por um cidadão anónimo com a insólita pergunta: “— Não concorda que os periodistas de opinião que escrevem nos jornais ou praticam a loquacidade nas rádios e televisões deveriam estar sujeitos a escrutínio, limitados a mandato e designados por

Capa do n.º 6 da Almanaque

Capa do n.º 6 da Almanaque

Abril, águas mil. Capa do Nº 6 da Almanaque, Abril 2023, ilustração de Lia Ferreira e layout de João Lagido.

A mim é que me dói a paciência<sup>[1]</sup>

A mim é que me dói a paciência[1]

“P(h)oder”, do blogue Odeio Ser Mãe (Não considero no retrato as famílias ricas, com dinheiro para pagar todas as pessoas que as substituam nos cuidados, deveres e tarefas familiares: babás, empregadas domésticas, cuidadoras geriátricas, transporte escolar, uber e uber eats. Porque aí também é muito fácil ver mulheres assegurarem que nunca se prejudicaram na carreira por serem mães.) Há uns anos, fiquei muito irritada quando, num tweet, alguém concluía que “as mulheres não se interessam

Da série personagens do meu país (2): António M. Cardoso Fernandes

Da série personagens do meu país (2): António M. Cardoso Fernandes

Teve uma trajectória de vida direita como um fio de prumo. Soldado, político e poeta nas horas de lume, como gostava de cunhar os serões à lareira da sua casa serrana perto do Caramulo. Intransigente na defesa dos valores republicanos, da cidadania e da cultura, como foi dito na homenagem que lhe foi feita precisamente no Caramulo em 1998. António Manuel Cardoso Fernandes nasceu em 1942, em Paranho de Arca, filho de lavradores e primogénito

Autópsia de uma piada

Autópsia de uma piada

Se uma piada chega à mesa de autópsia, podemos ter a certeza de que não haverá erro médico; a piada está mesmo morta, finada, defunta, liquidada. Excluindo o pequeno grupo de estudiosos do humor, que se interessam tanto pela piada falhada como por aquela que gera uma gargalhada, explicar a nossa piada é sempre um exercício penoso em que a expectativa do autor se vai desnudando perante a indiferença da sala. “Era uma piada” nunca

Isto anda tudo ligado #3

Isto anda tudo ligado #3

Trabalhadores a esticar a corda Uma maneira de olhar para a política é imaginar uma arena, onde vários agentes em tensão procuram o seu espaço. Quem tem mais força consegue empurrar os outros para mais longe do centro, aumentando a área disponível. Há, quase sempre, muitas forças antagónicas a empurrar para vários lados, mas é possível simplificar um pouco as coisas e imaginar um mundo dividido entre os que têm mais, e são por isso

O lugar onde os elefantes vão morrer

O lugar onde os elefantes vão morrer

Em Novembro de 1549, chegou à corte espanhola de Valladolid, proveniente de Lisboa, o elefante “Salomão”, acompanhado pelo seu cornaca e por uma comitiva, sob os auspícios do rei João III de Portugal. Os caprichos dos homens e da geopolítica europeia ditaram que “Salomão” empreendesse, menos de dois anos depois, uma viagem bem mais longa e difícil, que o levou até Viena, onde viria a falecer em Dezembro de 1553. As andanças de “Salomão” andaram

Entretanto em Turim...

Entretanto em Turim…

Hoje vamos conjecturar que um benemérito do Norte, fundador de uma IPSS dedicada à educação da infância e juventude, teve a ideia peregrina de reunir num fim-de-semana os companheiros de escola que ainda estivessem convencidos de que os exames são uma abominação. Deve presumir-se que estaria ele mesmo convencido disso mesmo: senão, com que fito havia um benemérito de reunir-se com pessoas de persuasão adversa? Hélas! nenhuma pessoa de persuasão nenhuma lá foi. Sendo aliás

Motim Literário: Zenith contra George<sup>[1]</sup>

Motim Literário: Zenith contra George[1]

Em lugar de ir direto ao assunto, vou à volta. Por isso, peço ao leitor que não desanime. Não tarda nada e conseguirei apanhar a mosca – a chave do grande escândalo, em jeito de motim literário, que acabou de rebentar. José Agostinho de Macedo (1761-1831) foi um dos mais prolixos escritores da cultura portuguesa. Inimigos teve-os às dúzias, ainda mais do que as polémicas em que se viu envolvido em toda a sua vida.

Bretanha - Sozinhos em casa

Bretanha – Sozinhos em casa

Onde estava no momento em que lhe anunciaram que ia viver várias semanas em confinamento? Eu estava num lar de estudantes em Brest, a fazer as malas para mudar para um alojamento local onde ficaríamos alguns dias, enquanto esperávamos a data de entrar no apartamento que arrendámos. O telefone tocou. Era o Joachim, a dizer que “fontes próximas do Eliseu” o tinham informado de que o Macron ia fazer um discurso na televisão, para anunciar

<i>Nobody’s Perfect</i>

Nobody’s Perfect

“Nobody’s perfect” é a deixa perfeita, a punch-line derradeira de Some like it hot, considerado por muitos o melhor filme de comédia de todos os tempos e tema principal desta crónica. Não faltam citações da mesma e foi usada inúmeras vezes como lançamento da resposta “but who wants to be a nobody”. É também o nome de uma das biografias de Billy Wilder, o seu realizador e guionista, em co-autoria com o seu cúmplice habitual,

O que é que é normal?

O que é que é normal?

Este texto é sobre normalidade, normalidade estatística e normatividade. Vem a propósito do dia internacional da mulher e das acusações de radicalismo que tendo a sofrer nesta altura por defender a igualdade. Tentarei argumentar que conceitos simples de estatística são úteis para compreender que a normatividade não é “natural”. No dia 15 de Julho de 1940, aos 22 anos de idade, morria nos EUA Robert Wadlow, o homem mais alto do mundo. Por causa de

Teatro Cósmico #5

Teatro Cósmico #5

Parem de nos salvar Num muro junto à Praça do Chile, em Lisboa, alguém escreveu: “Parem de nos salvar. Ass.: Golfinhos”. Associo esta frase a um episódio que um camarada das artes performativas, o André e. Teodósio, me contou. Por altura da estreia do seu espetáculo, que se chamava Metanoite (Fundação Calouste Gulbenkian, 2007), um espectador cruzou-se com ele no final e comentou: “Gostei muito, é desafiante, super experimental, acho muito bem, mas olha…” (e

Rever  <i>O Mundo do Silêncio</i>

Rever O Mundo do Silêncio

Há muito que mergulho com uma garrafa de ar comprimido às costas, mas ainda me lembro da primeira vez que respirei por uma na gelada piscina dos bombeiros de Lisboa. Num primeiro instante mais a medo, pois até esse dia sempre bloqueara a respiração para imergir, mas logo veio a festa: “agora ninguém me para!”. E não parou. Esse poderoso aparelho, a que chamamos escafandro autónomo, foi uma daquelas invenções da Segunda Guerra Mundial: Émile

Impressões a partir de <i>Ramiro</i>

Impressões a partir de Ramiro

Graças a um comentário não sei de quem, a não sei que post de outrem que não retive, soube que a RTP2 tinha – em boa hora – passado cedo e a más horas (5 e tal da manhã!) o filme Ramiro (2017) de Manuel Mozos, que há muito acumulo na minha listinha de filmes “para ver mais tarde”, no Filmin. Não foi tarde, nem foi cedo, sentei-me e vi-o, através das gravações automáticas da

Simpatia inacabada #5

Simpatia inacabada #5

Problemas de tradução (2) Tradutor: imitador; falsário; traidor; criatura abnegada e generosa que cultiva o apagamento. Se incluísse uma entrada dedicada aos tradutores num novo Dicionário das Ideias Feitas, um Flaubert dos tempos modernos teria muito que tomar em consideração. Há séculos de lugares-comuns sobre tradução literária. Estes chavões obscurecem a prática, em vez de a descreverem correctamente, e têm contribuído para a desvalorização e o apagamento do trabalho dos tradutores. Para alguém que começa

Joana d’Arques, a shock jock em lume brando

Joana d’Arques, a shock jock em lume brando

Na América, por volta das duas da tarde de um tempo que por cá passava da hora, um homem adulto indignou-se. A causa da sua indignação entrara-lhe com estrondo pelo rádio do carro que conduzia, torturando-lhe o filho adolescente, amarrado ao banco pelo cinto de segurança. De pouco lhes valendo o aviso prévio do conteúdo potencialmente ofensivo que se seguia, palavras foram ouvidas, todas ditas num único fôlego, brutalmente encadeadas como uma combinação de Sugar

A Maravilhosa Aritmética da Igualdade (de A a Z) #3

A Maravilhosa Aritmética da Igualdade (de A a Z) #3

Nota Introdutória. A (cont.)   Ali, Mohammed   “Não, eu não vou a 10 000 milhas de casa para ajudar a matar e queimar outra nação pobre simplesmente para continuar a dominação dos senhores de escravos brancos sobre pessoas mais escuras no mundo.” Mohammed Ali   Num trabalho com os meus alunos sobre figuras importantes da desobediência civil ou de resistência e luta pelos Direitos Humanos, por entre os Martin Luther Kings, Nelson Mandelas, Gandhis

Marialvas ou Libertinos?

Ancient guilty apocalyptical pleasure

Foi com entusiasmo juvenil que me pus, há semanas, um pouco antes da bronca das partilhas de conta da Netflix, a ver o mais recente frisson de fast-food “histórica” (muito idêntica à original, isto é, gordurosa, nada nutritiva, cheia de emulsionantes e intensificadores de sabor, mas que devoramos avidamente e inundados de guilty pleasure): a série Ancient Apocalypse. Para quem não esteja bem a ver do que se trata, adianto que é uma série da

Pastagem rotacionada

Pastagem rotacionada

Personagens: 5 ovelhas adultas e duas crianças Época e lugar: Inverno num lugar que já foi outro   Ovelha malhada (distraída a roer erva): Que viemos aqui fazer? Ovelha mais ao fundo (compenetrada no comer): Não faço a mínima ideia. Continua a comer que está ali alguém a fotografar. Se te perguntarem alguma coisa, diz mé com um bocadinho de vibrato, pouco. Ovelha malhada (sem parar de roer erva escassa):  Mé é o que habitualmente

Meia-De-Leite Escura Em Chávena Escaldada

Meia-De-Leite Escura Em Chávena Escaldada

We’ve become a race of Peeping Toms. What people ought to do is get outside their house and look in for a change. – Stella, Rear Window (1954).     Podes fechar a janela? Um pouco mais? Pergunto-te, muda, com um movimento breve de olhos, acreditando em poderes telepáticos, teus, que ainda não mencionaste mas decerto possuis. Pareces anuir a cabeça, mas era um pássaro que parecia dirigir-se à carruagem. Presságios? Recordo-me da pomba morta

A varanda da Maianga

A varanda da Maianga

1. “Sete e Meio”, assim ficou conhecido o apartamento na Maianga, em Luanda onde, entre 2005 e 2007, morei com artistas angolanos, Orlando, Kiluanji, Ihosvanny, Yonamine, Francisca e o bebé Njamy, os mais perenes, outros em temporadas de média duração[1]. Ficava num sétimo andar (e meio), num prédio de arquitetura moderna, semelhante aos edifícios da Avenida Estados Unidos da América, em Lisboa, mas degradado pela passagem do tempo e negligente manutenção. Bem localizado, dali podíamos

O ciúme, autópsia breve

O ciúme, autópsia breve

A irmã do ciúme, a inveja, é muito mal vista (tanto quanto popular), mas não chega aos calcanhares do mano. In videre, ver demais. Dante, no canto oitavo do Purgatório, cose os olhos (as pálpebras) aos invejosos que ficam como os falcões (com os olhos tapados antes de serem largados na caça).   Ché a tutti un fil de ferro i cigli fóra E cusce sì, come a sparvier selvaggio   A inveja é chata,

<i>O Caso Manguel</i>

O Caso Manguel

Regressemos à “Operação Manguel”, o eruditíssimo (dizem-me, quem sou eu para o desmentir) escritor, ensaísta, editor e tradutor nascido em 1948, em Buenos Aires. Que sabemos nós ao certo, hoje, sobre a doação à Câmara Municipal de Lisboa (CML) dos 40 mil livros da biblioteca do argentino e a criação do Centro de Estudos da História da Leitura? Agitemos o sonolento passado recente, reavivemos o fluxo de alguns acontecimentos. A ideia de trazer a biblioteca

A literatura tem de ser um gatinho fofo?

A literatura tem de ser um gatinho fofo?

De repente, o maior perigo que a literatura tem é o de ofender. Noutros tempos, temia-se que não servisse para nada – não no sentido de não ser funcional, instrumental, numa sociedade, mas no de poder não criar impacto. Escrever e não criar um baque, eis o que aterrorizava quem se dedicava à incompreensível mania de inventar histórias. Mas então chegou o século XXI, e com ele, em simultâneo, o medo das palavras e o

0,71 — Braguilhas, armas e Putin. A vida de Steven Seagal

0,71 — Braguilhas, armas e Putin. A vida de Steven Seagal

Durante anos, achei Steven Seagal um chato de galochas. Como homem, como actor, como tudo. Tem um ar boçal e pomposo e os seus filmes devem ser muito desinteressantes. Até que tropecei numa notícia e aqui estou para dizer: Steven Seagal é mais do que maçador. Começo pelo sexo para chegar à indústria de armamento e à política internacional. Será rápido. Farei uma ligação provavelmente injusta. Vou arriscar. O hábito é escrevermos sobre o que

Weimar #8

Weimar #8

CENTROS COMERCIAIS – ÉTICA DE DINOSSAURO – CORVOS NUM INCÊNDIO – POBRES – BOA MEMÓRIA CENTROS COMERCIAIS Alguns dias depois do Ano Novo, há um momento mágico e anónimo que acontece a meio da noite, longe dos olhos e da luz. É o desligar do presépio nos Centros Comerciais. Testemunhado talvez por um ou dois empregados de limpeza, esse é o instante em que a água seca no poço e os camelos dos reis deixam

A morte tem sempre música de fundo

A morte tem sempre música de fundo

(breve elegia-reportagem sobre um letão chamado Sergei Zholtok)   Aposto que tem música de fundo. Aposto alto: singelo contra dobrado como nos livros do Texas Jack. Burt Bacharach: Casino Royale; Eso Es La Amistad; Promessas, Promessas com textos de New Simond; elevadores subindo e descendo e despejando pessoas a esmo nos foyers frios de hotéis lajeados; That’s What Friends Are For: Dionne Warwick, Elton John, Gladys Knight, Stevie Wonder, também eles subindo e descendo nos

Capa do n.º 5 da Almanaque

Capa do n.º 5 da Almanaque

Capa do Nº 5 da Almanaque, Março 2023, ilustração de Lia Ferreira e layout de João Lagido.

Excerto da “Vida e obra de Orgasmo Carlos Rodrigues” - “Os anos de repartição” - Tomo1 - 3ª parte, 4ª parágrafo.

Weimar #7

SEM-ABRIGO – POEMA AO PAI – MÁQUINAS DE COMPANHIA – GATOS – GRANDE PLANO   SEM-ABRIGO Prometido é prometido. A promessa: “ninguém vai entrar na sua casa assim, de qualquer maneira”. Era vê-los, novos e velhos, os proprietários, de cócoras, a farejar o ar para contar quantas visitas tinham em casa, a lavar a roupa à mão na casa de banho, proibidos de usar a varanda, a dormir com o forno ligado para se aquecerem,

Não Sei (Mas…)

Stolen Hours

Alistou-se no exército aos dezasseis anos. Tocou em bandas militares e saiu cinco anos depois. Foi para Los Angeles e conheceu Charlie Parker e Stan Getz, com quem tocou. Isto não é um texto sobre jazz, é um texto sobre um crime.   Stolen Hours, Horas Roubadas (1963), é o título de um filme menor. É a história de uma beta a quem é diagnosticado um tumor cerebral com o prognóstico de apenas  um ano de vida;

A ascensão da Mulher na Europa esclarecida

A ascensão da Mulher na Europa esclarecida

Segunda parte do ensaio Marialvas ou Libertinos: As guerras culturais e o romance sobre o século XVIII (Primeira parte: As guerras culturais e o romance sobre o século XVIII, I – O Estado da Arte) 1. É famosa a frase do filólogo alemão Auerbach (1892-1957): o historiador, na dificuldade de escrever a História, «vê-se muitas vezes obrigado a refugiar-se na lenda». Talvez em nenhum outro assunto se tenham produzido tantas lendas como na história dos géneros.

Eixo e antieixo

Eixo e antieixo

Augusto de Campos, “Eixo”, 1957 Quando visitei o ateliê de Marcia de Moraes no final de outubro de 2022, havia dois grandes desenhos, presos à parede por fitas adesivas, que roubavam a atenção de quem entrava no ambiente. Eram Pele litoral e Contornos flácidos. O primeiro tornava evidente o que parece ser central na composição de vários de seus desenhos: tudo se organizava a partir de um eixo. Mas não um eixo reto, de acordo

A Coisa

A Coisa

Simpatia inacabada #4

Simpatia inacabada #4

Problemas de tradução Vejo um vídeo com uma entrevista ao artista Jean-Michel Basquiat. Fora de campo, alguém pergunta: “Há raiva dentro de ti?” Ainda muito jovem, como sempre foi, o artista responde calmamente e com toda a naturalidade: “Claro que sim.” O entrevistador tenta então aprofundar: “Estás zangado com quê?” Basquiat cala-se. Atravessam-lhe o rosto toda a espécie de pensamentos amargos e emoções sombrias. A seguir, ainda em silêncio, tenta articular uma resposta. Pelo esforço

Wittgenstein em Alcochette

Wittgenstein em Alcochette

Não é raro o uso de alegorias fantasiosas para dar inteligibilidade a certos hábitos linguísticos; a origem da perturbação desses hábitos não se explica de outro modo. Nada me autoriza a reclamar a verdade desta proposição; sei que é verdadeira porque aprendi assim. Eis ali o homem com desgosto de amor agravado pela propensão alcoólica: passa as noites nos bares, cotovelos fincados no balcão, a beber e a lastimar-se até o expulsarem; entra no táxi,

Isto anda tudo ligado #2

Isto anda tudo ligado #2

O que é um fascista? Antes de se converter em acções, a política nasce em palavras. Em política, as palavras contam, porque é essa a matéria de que se fazem as ideias, mas também porque o que se diz estabelece os limites do que se pensa e, em certa medida, do que se pode fazer. Não é por acaso que desde sempre o poder passou pelo controlo do que é dito. Em tempos antigos, a

Os músicos fingem que tocam, nós fingimos que os escutamos

Os músicos fingem que tocam, nós fingimos que os escutamos

O episódio que se segue não só é verídico como certamente já se repetiu várias vezes, com pequenas variantes, pelo mundo fora: uma banda de adolescentes, em incipiente estado de maturação musical e que nunca saíra da sala de ensaios, recebe uma proposta para tocar numa festa da escola secundária. No derradeiro ensaio antes do Grande Dia, a excitação de subir a um palco pela primeira vez é moderada por alguma lucidez: é óbvio que

Envelhecer nas bancadas

Envelhecer nas bancadas

Aceitar sem mais a idade que nos é ditada no registo civil implica uma cobarde cedência aos poderes instituídos. Entre os muitos poderes que nos clamam à capitulação, devemos apontar o dedo à burocracia estatal, a uma noção moderna de tempo linear e, claro, à pressão para festejar aniversários. A ideia de que os aniversários devem ser festejados mais não é do que uma bizarria que nos obriga a declarar publicamente a idade como, ainda,

Princípios de genealogia

Princípios de genealogia

Explica-se a coisa com alguma facilidade. Há um problema geracional contra o qual não há nada a fazer. O Dr. A foi guitarra-baixo (uma Fender vermelha) numa banda de garagem que animava bailes nos arredores de S. João do Estoril. Era primo de C, que frequentava um grupo de Belém onde se reuniam D, B, E e F. Bom: F era uma estudante de germânicas, irmã de G, baterista da banda. O que aconteceu foi isto: entre

Teatro Cósmico #4

Teatro Cósmico #4

Andar e cair Quando uma criança cai desamparada na rua (e é frequente as crianças caírem), logo um adulto prestável estende o braço para a levantar, os pais correm para a libertar do chão e a criança atarantada mostra no olhar uma espécie de incompreensão perante a movimentação e a rapidez da reação crescida. Não a deixam estar no chão, deitada, porque a prostração é sinal de dor, de incapacidade ou de vergonha. Reza a

Não Sei (Mas…)

O Maravilhoso Potencial da Inutilidade

Tinha este texto “na gaveta”, mas acaba de ser anunciada uma possível fusão entre o Instituto Gulbenkian de Ciência, da Fundação Calouste Gulbenkian, e o Instituto de Medicina Molecular, da Universidade de Lisboa. A ideia, dizem-me, é criar o maior instituto de ciências da vida da Península Ibérica, com uma forte componente biomédica e ligação ao Hospital de Santa Maria. Uma vez que esta fusão surge na sequência de uma série de outras decisões políticas

Os Enamoramentos

Os Enamoramentos

Enamoramientos I, estudo sobre Los Enamoramientos, de Javier Marías, ilustração digital de Lia Ferreira, 2023 Leitura ilustrada do livro Los Enamoramientos, de Javier Marías, 2011. Ouvi esta obra em audiolivro, na língua original, estando disponível a edição (escrita) em português, pela editora Alfaguara, com o título de Os Enamoramentos. Enamoramientos II, estudo sobre Los Enamoramientos, de Javier Marías, ilustração digital de Lia Ferreira, 2023 ___ Esta série de “Leituras Ilustradas”, em que me proponho ilustrar

Desesperadamente à procura de um telemóvel em 1950 (+ -)

Desesperadamente à procura de um telemóvel em 1950 (+ -)

Eu tinha 50 anos quando chegaram os telemóveis. Demasiado tarde. É certo, além de telecomunicar, eles vinham com uma fantástica rede de informações e passei a ir menos ao arquivo do jornal para saber como escrever: Khrushchev ou Khrushchov, Yeltsin ou Iéltsin? Vantagem que não era grande coisa porque naquela altura o senhor da Rússia passou a chamar-se Putin, perpétuo de cargo e nome fácil de memorizar. É certo também, sendo aparelho sem fio, que

Crónica

Crónica

Quando eu andava na escola primária, subia a Rua Arquiteto Paulino Montez e despedia-me da Cláudia um pouco antes de chegar a casa. Não éramos bem vizinhas, porta a porta, mas quase. A Cláudia era irmã do Albertino e de mais três irmãs.  A casa era de esquina e tinha um pátio gigante. Naqueles tempos, era um pátio gigante, mas há dias passei por ele e pareceu-me minúsculo. O Albertino, seu irmão, fez-se Beto. Assim

Serotonina: uma história física e moral *

Serotonina: uma história física e moral *

Primeira parte Somos compostos por milhares de moléculas diferentes. Mas se pedirmos a alguém na rua que enumere todas as moléculas que conhece existentes no corpo humano, talvez essa pessoa não chegue às três dezenas. Eis uma lista possível: água, oxigénio, dióxido de carbono, colesterol, triglicerídeos, colagénio, glucose, ADN, ARN, hemoglobina, anticorpos, pepsina, melanina, ATP, dopamina, adrenalina, testosterona, progesterona e estrogénio, oxitocina, várias vitaminas e poucas mais. Nas últimas décadas, uma das moléculas a ter

Fragmentos do diário de Rui Teixeira III

Fragmentos do diário de Rui Teixeira III

Acabei por desenvolver com o namorado da Luísa uma relação interessante no plano da tépida cumplicidade de género depois de ele ter ficado para almoçar no dia em que me veio visitar com o intuito inaugural de me desfazer o trombil, ainda estou para descobrir se real ou figurativamente, por motivos que se prendiam, grosso modo, com o desconhecimento das minhas verdadeiras intenções para com a sua namorada, motivos que prontamente debelei apresentando-lhe a minha

“Quem vendeu a minha pátria?”

“Quem vendeu a minha pátria?”

1. A certa altura do governo Sócrates, por via das robustas bolsas INOV-Art*, houve debandada de jovens do setor cultural. Como o país não tinha (tempo verbal hesitante) muito para oferecer a esta gente, a atriz Beatriz Batarda esteve bem quando, no lançamento oficial do programa, aconselhou os bolseiros: “Vão e não voltem”. Então, de Nova Iorque ao Cairo, em versão culti do programa “Os Portugueses no Mundo”, ei-los que partiam novos, e de facto

0,71 — Ela entrou e disse: “Tu usas fuck-me shoes?!”

0,71 — Ela entrou e disse: “Tu usas fuck-me shoes?!”

Os sapatos vermelhos são uma coisa nos pés de uma menina e outra completamente diferente nos pés de uma mulher. Aos cinco anos, são a melhor escolha para ir a uma festa de família ou à Missa do Galo. A partir dos 20, roçam o mau gosto. Se forem de salto alto, são provocadores. Se forem de salto-agulha — os stiletto —, abre-se a porta do herético. Chegados aqui, há duas possibilidades: se a mulher

Da série personagens esquecidas de Portugal (1): Eduarda D’Orey e Abreu

Da série personagens esquecidas de Portugal (1): Eduarda D’Orey e Abreu

Figura incontornável da pós-modernização portuguesa. Lisboeta de pouso, nascida no Ribatejo (Santarém, 1961) e em berço fidalgo, cedo arregaçou as mangas. Foi para Londres estudar arte de rua e de instalação com apenas dezoito anos.  Ungida desde cedo com preocupações sociais, recusou candidatar-se a bolsa ou sequer receber ordenado. Numa entrevista à revista K, conduzida por Rui Zink (1991), explicou: ”Com tantos desempregados e imigrantes, não creio ter o direito de roubar o pão a quem dele precisa” (as citações

És Um Jardim Fechado, Minha Irmã E Minha Esposa, Um Jardim Fechado, Uma Fonte Selada.*

És Um Jardim Fechado, Minha Irmã E Minha Esposa, Um Jardim Fechado, Uma Fonte Selada.*

O jardim não é, pois, a pequena forma de paisagem, ele tem o seu esquema simbólico próprio. Na perspectiva do otium, ele não é a redução, à escala humana, da generosa Natureza, não mais do que uma metábole ou sinédoque pela qual ela se apresentaria. Muito pelo contrário, é através de uma separação dela que ele se constitui – e quase em sentido oposto. Anne Cauquelin, A Invenção da Paisagem    Aderimos à tese de

Aventuras da Bélinha e do cão preto

Aventuras da Bélinha e do cão preto

Personagens: um cão de guarda e uma voz humana Época e lugar: lugar sagrado embutido num muro   Cão (momentaneamente sentado por cima das Alminhas): O mundo é um aborrecimento. Quase ninguém passa por este lugar. Contam-me os antepassados que houve tempo em que havia missa todos os dias naquela capela e terço ao fim da tarde; tocava a sineta e quando calhava havia festa e procissão. À vista do nicho aqui por baixo, toda

Weimar #6

Weimar #6

ALTARZINHO – MENTIRA – ANDAR A PÉ – ÓRGÃOS – TRABALHO DIGNO   ALTARZINHO A ideia de um Altarzinho acabou por fazer o seu caminho. Agradava a todos. Longe iam os dias em que o altar era uma nave suspensa num palco imenso, longe iam as plataformas no céu, para sentar os dignitários políticos e espirituais, longe as cascatas povoadas por peixes vermelhos chegados do Japão, longe as bailarinas seminuas, sincronizadas e louras ao som

Capa do n.º 4 da Almanaque

Capa do n.º 4 da Almanaque

Capa do Nº 4 da Almanaque, Fevereiro 2023, ilustração de Lia Ferreira e layout de João Lagido.

A Maravilhosa Aritmética da Igualdade (de A a Z) #2

A Maravilhosa Aritmética da Igualdade (de A a Z) #2

  Nota Introdutória. A (cont.) Afro-europeia/Afropeia   “Não poderemos continuar a significar humanidade nesta linguagem senão não nos livraremos da violência que ela carrega. Precisamos de novas palavras para expressar o que somos agora, o que queremos ser. Teremos de nos libertar. (…) Afropeia vem abrir as portas da prisão. Para que a reclusão acabe, será preciso repudiar os padrões induzidos pela ocidentalidade.” Léonora Miano, Afropea – Utopie post-occidentale et post-raciste, Paris, Grasset, 2020, p.

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