A queda do Governo e o Império Romano

1. Quando o Criador, na sua infinita sabedoria, inspirou ao apóstolo a visão tenebrosa do Apocalipse, nunca imaginou vir a ser superado pelos comentadores políticos portugueses na noite do dia 8 de novembro de 2023. Com efeito, os quatro cavaleiros saídos da abertura do primeiro selo do rolo manuscrito na mão de Deus não souberam interpretar devidamente a ira divina, pelo menos quando comparados com a fúria vingadora das redações jornalísticas ultrajadas. Nessa tenebrosa noite, na quadrangulação simétrica do ecrã,

A queda do Governo e o Império Romano

A queda do Governo e o Império Romano

1. Quando o Criador, na sua infinita sabedoria, inspirou ao apóstolo a visão tenebrosa do Apocalipse, nunca imaginou vir a ser superado pelos comentadores políticos

Destaques

Alemanha e Israel

Na entrada principal do Reichstag, o edifício do Parlamento Federal alemão, o público é recebido por duas obras monumentais de

Alemanha e Israel

Alemanha e Israel

Na entrada principal do Reichstag, o edifício do Parlamento Federal alemão, o público é recebido

Ceroulas <i>par avion</i>

Ceroulas par avion

“Que nunca nos falte o supérfluo!”, atira a exuberante Val Marchiori, estrela do reality show

Todos os artigos

O pedro-nunismo

O pedro-nunismo

Já houve o soarismo, o cavaquismo, o guterrismo, o barrosismo, o socratismo, o passos-coelhismo e vivemos o costismo, mas há pelo menos 5 anos que se anuncia outra coisa. Como os outros termos, designa menos uma mundividência política do que uma falange de apoio e um modus operandi de conquista do poder, porém é o único que inclui um nome próprio no termo. Tomemos por hipótese que o intrusivo “pedro” de pedro-nunismo é mais uma 

Da série personagens do meu país (4): Conceição Carvalho do Ó.

Da série personagens do meu país (4): Conceição Carvalho do Ó.

Advogada lançada nas tarefas ministeriais, benfeitora, mulher de armas, de origem humilde, mas com transcurso brilhante. Ganhou o respeito dos seus concidadãos pela forma abnegada como se empenhou na vida pública e pelo modo recatado como dela se soube retirar. Nasceu em 1950, na Boavista, um pequeno lugar do distrito de Leiria, e cresceu com broa e carapaus secos da Nazaré, que dividia com as quatro irmãs. Diz por isso que aprecia hoje mais os

Simpatia Inacabada #8

Simpatia Inacabada #8

FUGIR AO ASSUNTO Quantos textos haverá no mundo com personagens que têm caderninhos pretos? Num destes dias, ouvindo por acaso uma canção de Nick Cave sobre uma rapariga chamada Bee, lembrei-me de um exercício que entreguei no primeiro ano da faculdade, quando a professora de Inglês pediu aos alunos um texto inspirado por um adágio popular. Entre a lista de adágios propostos, escolhi o pouco empolgante “Variety is the spice of life” (“a diversidade é

Novas do paraíso

Novas do paraíso

Besta de carga é o que mais ouço. Nota-se nesta curvatura do corpo, agora que me vejo caminhando descompassado e um tanto incerto. Já quase me esquecera do tempo ruim que trago inscrito em quase tudo que ainda penso; por isso estas costelas salientes, o pêlo que perdeu o brilho e a cabeça quase sempre baixa. Enfim. De pouco valem lamentações que ninguém ouve e o mundo muda mais rapidamente que o rodopio diário do

Capa do n.º 8 da Almanaque

Capa do n.º 8 da Almanaque

Capa do Nº 8 da Almanaque, Agosto de 2023; ilustração de Lia Ferreira e layout de João Lagido.

O que é uma mulher?

O que é uma mulher?

O recém-falecido Martin Amis dizia que a literatura é uma guerra contra os clichés (da linguagem), uma citação tão repetida que se tornou – por definição – muito pouco literária. A grande ciência é uma guerra parecida, mas contra o senso comum. O Sol não gira à volta da Terra, a Terra não é plana, os corpos atraem-se em função da sua massa e da distância que os separa, a luz pode ser uma onda

O Marxismo, tendência Groucho

O Marxismo, tendência Groucho

Groucho Marx, nascido Julius Henry Marx, em Nova Iorque, em 1890, disse um dia que “queria viver para sempre ou morrer a tentar”. Talvez não surpreendentemente, morreu a tentar, em Agosto de 1977. Entre um momento e outro, o tal tracinho que separa as datas de nascimento e morte nos obituários, ficou uma das mais longas, extraordinárias e influentes carreiras na história do humor americano e mundial, já para não falar de ele ser provavelmente

Weimar # 10

Weimar # 10

RITUAL – ESFERA – RABOS – UM POR CENTO – BOA NOVA   RITUAL A verdade, em democracia, incluirá um ritual, um reality show, dos verdadeiros, claro. Governante que tenha o azar de ser criticado duas semanas seguidas irá à televisão vestido de roupa importada, mas sustentável. No primeiro dia, jurará que nada sabia. No segundo, dirá que não se lembrava de que sabia, e no terceiro dia será demitido e pedirá desculpa na televisão,

As quotas de emprego para pessoas com deficiência são como aparelhos nos dentes

As quotas de emprego para pessoas com deficiência são como aparelhos nos dentes

Muitas vezes perguntam-me sobre se não há capacitismo subtil ou discriminação positiva na atribuição de quotas de emprego para a comunidade de pessoas com deficiência. É claro que preferiríamos um Mundo onde a promoção da diversidade fosse real e a inclusão emergisse de forma espontânea, mas se cá nevasse fazia-se cá ski. Não aconteceu desde a Revolução Industrial e – lamento dizê-lo – não aconteceu nunca de forma espontânea nas últimas décadas. Os argumentos repetem-se,

Na Era do Zettabyte pt. 2: Como ler o jornal

Na Era do Zettabyte pt. 2: Como ler o jornal

Em 1831, o erudito e estadista francês Alphonse de Lamartine antevia mudanças dramáticas na comunicação entre os homens: “Antes que este século termine, o jornalismo será tudo o que se imprime, será todo o pensamento humano. Através do prodigioso poder multiplicativo que o engenho concedeu à palavra – e que ainda virá a ser multiplicado por mil –, a humanidade escreverá o seu livro dia a dia, hora a hora, página a página. O pensamento

<i>Descrição do mundo</i>

Descrição do mundo

Procuramos o infinito de maneira obsessional, enquanto que somos nós o infinito. Giordano Bruno   No capítulo XIII do Gênesis, Iahweh diz a um já velho Abraão: «Tornarei a tua posteridade como poeira da terra: quem puder contar os grãos de poeira da terra poderá contar teus descendentes!».[1] Esta frase foi tomada de empréstimo por Roman Opalka para o título de uma de suas águas-fortes, realizada em 1970 – ano em que fez suas últimas gravuras

Desejos compulsivos: os recursos minerais e a transição energética

Desejos compulsivos: os recursos minerais e a transição energética

Demorei alguns anos para conseguir ter uma resposta eficaz, engatilhada, à simples, mas frequente questão: ‘O que é que tu fazes?’. Em resposta, facilmente me perdia nos detalhes e deixava de parte o essencial. As expressões de confusão, e repetidamente de aborrecimento, encontradas no outro interlocutor deixavam-me frequentemente frustrado e com o sentimento de que tinha falhado naquilo que deveria ser a minha missão mais simples, comunicar o que é o meu trabalho de forma

Simpatia Inacabada #7

Simpatia Inacabada #7

Patricia Highsmith Na secção literária do The New York Times, procuro sempre a rubrica “By the Book”, um inquérito sobre leituras de escritores ou pessoas ligadas aos livros. Leio em busca de histórias engraçadas ou referências a autores interessantes que ainda não conheça, mas, entre as perguntas recorrentes, há uma que me dá sempre que pensar: “Um grande livro pode estar mal escrito? Que outros critérios são mais importantes?” Proust escreve bem? Se calhar, a

A Maravilhosa Aritmética da Igualdade (de A a Z) #4

A Maravilhosa Aritmética da Igualdade (de A a Z) #4

Nota Introdutória.   A (cont.)   Androcentrismo    “Todos os psicólogos que estudaram a inteligência das mulheres reconhecem que elas representam as formas mais inferiores da evolução humana e estão mais próximas das crianças e dos selvagens do que do homem civilizado. Elas têm a inconstância, a falta de reflexão, a incapacidade para raciocinar. Nas raças mais inteligentes, como os parisienses, existe uma proporção notável da população feminina cujos crânios se aproximam mais pelo seu

Em frente ao vulcão, baleias vivas e mortas

Em frente ao vulcão, baleias vivas e mortas

1. Em 1988, a família rumava ao Faial. O pai contratado para construir a Assembleia Regional, a mãe colocada numa escola secundária ao lado da minha preparatória, o irmão na primária. A casa arrendada ficava no topo da cidade da Horta. Aliás, era uma quintinha: portão, carro sob parreiras, jardins descuidados, ou principescos, depende do grau de fantasia, de onde surgiam fontes de pedra e uma moradia elegantemente decadente. Havia vacas, gatos e cães açorianos.

Teatro cósmico #7

Teatro cósmico #7

O segredo do Bichinho do Teatro   “Bichinho do teatro” é uma expressão usada por pessoas que se sentem próximas do teatro e que gostam de fazer ou de ver teatro. Usa-se para nomear o inefável ou explicar o inexplicável, bem como o que carrega alguma estranheza ou especificidade não familiar e que por isso não tem outra palavra para o descrever. Nesse sentido, aproxima-se da ideia de fantasma ou de ser invisível que contém

<i>Happiness is a warm gun</i>

Happiness is a warm gun

She’s not a girl who misses muchDo do do do do do, oh yeah John Lennon   O poder da arte e da arquitectura na transformação do homem é fonte de suspeita. Já Platão considerava o actor um pernicioso ilusionista da realidade, máscara da verdade. A desconfiança não é nova, portanto. Dado o carácter público da arquitectura é necessário encontrarmos um território comum que nos permita conviver quotidianamente com o mau gosto do vizinho da

Uma beleza mitológica: sobre um concerto dos <i>Big Thief</i> em abril

Uma beleza mitológica: sobre um concerto dos Big Thief em abril

Passei muito tempo fixado na figura de James Krivchenia, colocado numa das pontas do palco, com uma camisa clara e calções, óculos quadrados e barba, careca, e com algum cabelo comprido. Lembra-me a figura de David Berman, vocalista dos Silver Jews, numa fotografia em que este está sentado num sofá, de casaco azul semiaberto, calças bege, e sandálias. Creio que vi a imagem quando li a notícia da sua morte, há uns anos. No entanto,

Isto anda tudo ligado # 5

Isto anda tudo ligado # 5

IA, Inevitabilidade Artificial A política é inseparável da acção. Quando intervimos no mundo, agimos politicamente. As nossas escolhas, mesmo que condicionadas por circunstâncias que não controlamos, produzem efeitos políticos. Isso acontece porque somos animais com capacidade de consciência e porque encontrámos formas de organização comum que se baseiam em entendimentos, tensões e relações de força. A forma como se hierarquizam valores ou se privilegiam determinados tipos de organização em relação a outros é a essência

Tem actualizações pendentes

Tem actualizações pendentes

Gosto de democracia e dedico uma parte substancial do meu tempo a essa causa. Mas, regra geral, aborreço-me ao ler textos sobre ela. Tal como a maior parte das abstracções que reúnem simpatia generalizada entre o público, o tema é um “clássico” para a escrita de textos quando a inspiração escasseia. No artigo deste mês para a Almanaque, vou viver perigosamente. 1. Entre o tanto que se escreve sobre a democracia, raras são as ocasiões

Foreindring

Foreindring

Cícero (De Oratore II, 351) conta que Temistócles disse um dia a um homem que queria aprender a arte de recordar: farias melhor em aprender a arte de esquecer. Sim, mas por acaso está ligada a outra bela arte: a de re-recordar ou, se preferirem, a dupla recordação. A memória é uma construção neuronal e hoje em dia aceitamos três tipos: a sensorial, a de curta duração e a de longa duração. Alguns avanços e

Pequenas doses de literatura

Pequenas doses de literatura

Dificilmente se sente mais a falta de tempo para ler do que em Maio, quando começa a Feira do Livro de Lisboa (e me lembro que na altura em que frequentava a Feira do Livro do Porto, a dificuldade era conseguir fazer as compras durarem mais de um mês…). Mas, na verdade, não é necessariamente uma questão de falta de tempo –- é mais uma questão de falta de tempo garantido, ou seja, de tempo

Bretanha – Guerra e Paz

Bretanha – Guerra e Paz

“Fantástico! Finalmente é segunda-feira, posso voltar ao trabalho!” Imagino que tenha sido este o sentimento de muitos franceses na véspera daquele dia 11 de Maio de 2020, a data marcada para aliviar bastante o pesado confinamento de quase dois meses (*) imposto à população francesa. Nós, não. Foi dia de gazeta ao trabalho, porque valores mais altos se alevantavam: tínhamos de ir fazer uma incursão na paisagem. Escolhemos a península de Crozon, que fica na

Do fim do mundo às portas do Éden: a ascensão de Gabriel Boric

Do fim do mundo às portas do Éden: a ascensão de Gabriel Boric

Texto de Gonçalo de Carvalho Amaro, autor convidado. _   Não foram 30 pesos, foram 30 anos Por volta das onze da noite de 17 de dezembro de 2017, perante um Sebastián Piñera sorridente, um grupo de chilenos entoava o hino do Chile: “Puro, Chile, es tu cielo azulado; puras brisas te cruzan también; y tu campo de flores bordado; es la copia feliz del Edén…”. Seria agora que o Chile se tornaria no paraíso,

Mandar até quando?

Mandar até quando?

Com a desagregação da União Soviética pelo início dos anos noventa do séc. XX, Cuba passou mal, naquilo que ficou conhecido como o período especial. Alguns tentaram a todo o custo sair da ilha. Os que ficaram passaram mal, ou pelo menos pior do que estavam antes. Os mais velhos tiveram mais tolerância. Os mais novos menos. As manifestações de protesto na marginal de Havana ficaram famosas, embora menos do que a crise dos balseros.

Pim, pam, pum

Pim, pam, pum

Ao Afonso Praça e ao Fernando Assis Pacheco  Quando se mata, morre-se? Não. Renasce-se. Porque, na verdade, não fui eu quem morreu  há pouco, quando senti o primeiro coice a atingir-me no ombro. O dedo não parou de dar ao  gatilho, duas, três, mais vezes. Os olhos não pararam de ver enquanto os corpos se erguiam  ou tombavam por entre a névoa. Os ouvidos não pararam de ouvir.  Já tinha escurecido e estava a ficar

<i>First Person / The Assignment</i>

First Person / The Assignment

Porque estamos cada vez mais habituados a olhar para o mundo à nossa volta por uma de duas perspetivas — “nós” e “os outros” —, desta vez trago a este espaço dois podcasts que fazem, ainda que de forma diferente, um trabalho semelhante: olham para os dois lados e tentam que ambos se encontrem “a meio caminho” entre um e outro. Falo de First Person, da secção de Opinião do The New York Times, e

Asininoceno

Asininoceno

– Dizem que o Antropoceno, a idade geológica em que vivemos, é uma engrenagem do tamanho do mundo que funciona ao ritmo do mais desenfreado capitalismo, o mais irresponsável e autodestrutivo, o mais rapina. – Vives nesse terror, primo. Esse Antropoceno é pior que moscas nojentas a entrarem-nos pelos olhos…, mas eu tinha uma vaga ideia de que isso das idades geológicas era apenas assunto de estratigrafia, geologia, vulcões, climatologia e parque jurássico. Pelos vistos

Prostituição de rua e casas de toleradas

Prostituição de rua e casas de toleradas

A 9 de Maio de 1947, o capitão Eurico de Castro Zuzarte concluiu o seu relatório sobre a circulação de prostitutas na cidade de Lisboa[1]. Fizera-o na sua qualidade de inspector dos Serviços de Fiscalização do Secretariado Nacional de Informação e Cultura Popular. À testa deste último organismo permanecia António Ferro, também ele interessado no assunto. Na base do relatório, estavam queixas apresentadas por diferentes tipos de comerciantes, proprietários e inquilinos. Da Rua da Glória

Os três deslizes de Gelsomina Guelgerógio, Infeliz mãe dos irmãos Caramassófe

Os três deslizes de Gelsomina Guelgerógio, Infeliz mãe dos irmãos Caramassófe

1. Gelsomina Duelgerógio, do lugar de Vale de Égua, freguesia do Préstimo, deu à luz dez filhos em duas séries de cinco. Isto é: Gelsomina Duelgerógio pariu cinco gémeos em Outubro de 1973 e outros tantos em Janeiro do ano seguinte.Pode parecer estranho que uma mulher conceba assim gémeos em tão grandes quantidades num tão curto espaço de tempo. Pode parecer e, se calhar, é mesmo.Mas tudo tem explicação. Mesmo em Vale de Égua, freguesia

Capa do n.º 7 da Almanaque

Capa do n.º 7 da Almanaque

Capa do Nº 7 da Almanaque, Junho 2023, ilustração de Lia Ferreira e layout de João Lagido.

Da série personagens do meu país (3) : Joaquim de Carvalho

Da série personagens do meu país (3) : Joaquim de Carvalho

Nome incontornável da poesia portuguesa da segunda metade do século XX, não recebeu o reconhecimento merecido por motivos insondáveis. Relacionou-se com grandes poetas e escritores da sua geração e parecia lançado para o panteão da memória literária nacional, mas a sua obra é hoje  encontrada apenas em  alguns  alfarrabistas de província.  Joaquim Jesus de Carvalho nasceu em Seixas, Caminha, em 1945, numa família de comerciantes abastados. O pai e o avô compravam vinho verde e

Acabe-se com a ideia da presunção de inocência

Acabe-se com a ideia da presunção de inocência

O título é clickbait. Ninguém quer acabar com a presunção de inocência enquanto alicerce do Estado de Direito. Mas espero convencer o leitor de que não uso este truque de modo gratuito, pois o título é uma crítica ao habitual lembrete sobre a presunção de inocência que o fazedor de opinião lusitano sempre apresenta antes de nos dar a substância do seu comentário, que é – invariavelmente  – uma violação da presunção de inocência que

«Humoristas de sucesso? São os gurus de um novo e necessário culto.»

«Humoristas de sucesso? São os gurus de um novo e necessário culto.»

Entrevistámos Pedro Reis Sabido, investigador do Ralston College, especialista em Estudos Portugueses e Brasileiros e Literatura Africana Lusófona, a propósito dos limites do humor e outras questões de linguagem. Falámos sobre os bobos de Shakespeare, os Beatles, o império da família Balsemão (adeus empregos na IMPRESA), gladiadores, gurus espirituais, e ainda, como não podia deixar de ser, o ChatGPT.             A polémica sobre os problemas da linguagem e os limites do humor não parece abrandar,

Corvos imaginários, papagaios estocásticos e outros animais que falam

Corvos imaginários, papagaios estocásticos e outros animais que falam

Há algo de desconcertante em finalmente existir uma máquina capaz de manter um diálogo coerente e informado sobre quase qualquer tópico. As experiências de quem já experimentou usar o ChatGPT (ou sistemas semelhantes) têm levantado questões sobre se estes sistemas poderão (vir a) ter consciência — e, mais fundamentalmente, sobre o que é a consciência. Neste artigo vou apresentar algumas ideias em torno deste tema, tentando ir um pouco além das discussões que geralmente encontramos

O luxo da conversa inteligente

O luxo da conversa inteligente

18 de janeiro de 2007 foi uma quinta-feira. Foi um dos primeiros dias que passei na Universidade de Stanford e a data em que vi pela primeira vez Robert Pogue Harrison. Ouvira falar dele na véspera, quando tudo me era novidade. Os outros professores contavam-me que ele estivera internado, com um grave problema de coração – vim a saber mais tarde que estivera em paragem cardíaca, que roçara a morte e se salvara por um

Na Era do Zettabyte, pt.1: Em toda a parte e em parte alguma

Na Era do Zettabyte, pt.1: Em toda a parte e em parte alguma

Nas televisões, nas newsletters digitais dos jornais, nos news feeds, nos posts, tweets e vídeos nas redes sociais, nos websites dos agregadores de conteúdos, em e-mails reenviados em massa, em split-screen, em janelas pop-up e deslizando em rodapé no écran, desfilam, ininterruptamente e sem ordem, hierarquia ou nexo, atentados terroristas, penáltis por assinalar, interpelações ao Governo pelos partidos da oposição, a fome no Corno de África, a atribuição anual de “estrelas” a estabelecimentos de restauração

O ciúme, autópsia breve

A polarização do discurso sobre a regulação das plataformas só as beneficia a elas

No início do ano em que se assinala a entrada em vigor do Digital Services Act – uma lei europeia de regulação das redes sociais –, o Presidente da Assembleia de República (PAR) provocou reações em diversos quadrantes políticos na sequência das suas declarações sobre o desafio que as redes sociais representam para as democracias.   Augusto Santos Silva destacou que “a  imediaticidade da comunicação, a tendência ao tribalismo, a polarização, a dispensa da mediação

Contra Proust

Contra Proust

Texto de Robert Pogue Harrison, autor convidado.Tradução: Ana Isabel Soares _   Como o programa se chama Entitled Opinions, aqui está uma opinião minoritária sobre literatura. Há 150 anos, no dia 10 de julho, Jeanne Clemence Proust deu à luz um rapaz que haveria de acarinhar e amimar, alimentando nele um feroz egoísmo que se veria forçada a transigir, a negociar e a gerir. Infundiu nele o amor pelas artes e em 1905, quando morreu,

Isto anda tudo ligado #4

Isto anda tudo ligado #4

O fim da imaginação A imaginação é essencial à política. Só faz sentido agir politicamente quando se acredita que há a possibilidade de mudar o mundo. A ideologia é, em certo sentido, um mapa para se chegar a uma forma de sociedade imaginada que acreditamos ser a melhor. Mesmo os mais conservadores estão agarrados a uma ideia imaginária sobre outro mundo possível que pode ou não ter já existido. Não faz sentido desligar o exercício

Paul Auster, desarmante

Paul Auster, desarmante

         Enquanto comecei a pensar neste texto e depois o escrevi, ocorreu mais um grande massacre nos Estados Unidos, daqueles cuja notícia corre o mundo e atravessa o Atlântico, seja pelo número inusitado de mortos, seja pela idade precoce das vítimas, seja, enfim, por um qualquer pormenor mais horrível e escabroso, que as agências e os jornalistas consideram ser digno de realce, porque, e apenas porque, será impressionante para um auditório sedento de ser impressionado.

A água

A água

Tinha a certeza. Desde sempre acreditara que, com o passar dos anos e a aproximação da morte, as pessoas mirram, perdem volume, encolhem. Quase como se pedissem licença antecipada para partirem, deixando um espaço vazio. Retirando-se com delicadeza, reduzindo aos poucos a sua presença, o seu lugar. Foi nisso que pensou quando o viu. Estava ali a prova. E tão estranha surgiu a constatação, tão contraditória com o medo que de si se apossava, que

O empadão de esparguete dos avós em Benfica

O empadão de esparguete dos avós em Benfica

1. O avô morreu na passagem de ano de 2007-8. O meu pai passou a noite, mão na mão, com o seu pai. Apesar de já ter visto esta imagem milhares de vezes, não sei exatamente o que será consolar alguém nos momentos finais. Menos ainda sei o que é morrer. Quando os avós desaparecem dá-se a nossa primeira orfandade, dizem. Perde-se o vínculo aos últimos representantes próximos de universos e referências que demonstram a

Teatro Cósmico #6

Teatro Cósmico #6

Um espetáculo não é um espetáculo   Tenho uma amiga que me diz com alguma frequência que o que mais gosta de ver num teatro são bons espetáculos. Completa geralmente a afirmação com a descrição desse prazer que é único e por isso tão especial. Embora ela nunca tenha feito essa associação, imagino que a raridade é fundamental para o prazer, porque para a qualidade do espetáculo contará o fator surpresa. Isto significa que imagino,

A Cultura confinada no Castelo

A Cultura confinada no Castelo

Texto de Gonçalo de Carvalho Amaro, autor convidado. _ Uma Cultura medievalizante? Em 1922, numa Áustria ainda a recuperar do fim do império, cerca de duas décadas após a obra seminal de Riegl, O Culto Moderno dos Monumentos, Franz Kafka, já debilitado, escrevia O Castelo, um dos melhores retratos sobre a burocracia e como a mesma pode ser, ao mesmo tempo, uma arma contra a Cultura e um instrumento para quem aprecia o controlo férreo e integral

<i>Habla comigo</i>

Habla comigo

Cidades, muros (urbs), igrejas, religiões, livros impressos, estradas, navios, comboios, telégrafo, telefone, carros, aviões, autoestradas, internet, telemóveis. Tudo o que temos feito é para comunicar, cada vez mais, uns com os outros. Não por acaso, somos o animal mais aperfeiçoado na arte da carnificina. Esta natureza obsediante rima com intrigante. Os elefantes vivem em grupos estáveis e se é certo que de vez em quando fazem uns congressos, mantêm o grupo. Os leopardos, ao contrário

Simpatia inacabada #6

Simpatia inacabada #6

A História Interminável   Nunca fui muito boa a escrever conclusões. Várias pessoas me disseram isto, no tempo em que tive professores. Por isso, nas respostas do Chat GPT encontro um traço distintivo que me parece invejável: uma estrutura com princípio, meio e fim. Como em muitos textos assim tripartidos, mesmo quando escritos por seres humanos, cada uma destas partes repete a mesma informação, mas com uma perspectiva ligeiramente diferente. É uma forma de simplificação

Weimar #9

Weimar #9

MANUTENÇÃO – PRAZERES PROIBIDOS  – SUPERMERCADO – INFLAÇÃO – BIBLIOTECA MANUTENÇÃO   O único motor do navio não tinha Manutenção há dois mil anos. O navio metia água e os animais estavam inquietos, os que ainda tinham coragem para embarcar. Um par de passarinhos desanimava, vários casais de insetos e um de leões ensaiavam pequenos e grandes motins e um sargento da marinha vestiu umas botas para a chuva. O mais preocupante foi a recusa

Comida: o resto é paisagem

Comida: o resto é paisagem

Poucas coisas terão mudado mais a paisagem do que a obtenção de alimentos pela nossa espécie. A termodinâmica não perdoa: ou entra energia de alta qualidade no sistema – no nosso caso sob a forma de alimentos – ou isto não resulta. Primeiro, a deslocação dos grupos de caçadores–recoletores, e depois, numa escala muito maior, as práticas agrícolas abriram caminho à sedentarização e à vida em aglomerados populacionais maiores, associada a uma enorme transformação da

O ChatGPT responde. Mas sabe perguntar?

O ChatGPT responde. Mas sabe perguntar?

Imagens criadas pelo DALL-E em resposta ao prompt “DALL-E doing chemistry”   Este texto não é sobre os problemas dos modelos actuais de aprendizagem automática, nem sobre enviesamentos e impactos sociais (que são muitos e importantes). É sobre ciência e criatividade e como isso é tão humano.   No passado dia 27 de Março, o senador americano Chris Murphy escreveu mais ou menos assim na sua página do Twitter: “O ChatGPT aprendeu sozinho a fazer

E bem, e o provedor?

E bem, e o provedor?

Um periódico da chamada imprensa regional — impropriamente chamada: a imprensa é por natureza universal, até quando a natureza é ridiculamente local — noticiou, e bem, que Wittgenstein, aquando de breve passagem por Alcochete, foi interpelado por um cidadão anónimo com a insólita pergunta: “— Não concorda que os periodistas de opinião que escrevem nos jornais ou praticam a loquacidade nas rádios e televisões deveriam estar sujeitos a escrutínio, limitados a mandato e designados por

Capa do n.º 6 da Almanaque

Capa do n.º 6 da Almanaque

Abril, águas mil. Capa do Nº 6 da Almanaque, Abril 2023, ilustração de Lia Ferreira e layout de João Lagido.

A mim é que me dói a paciência<sup>[1]</sup>

A mim é que me dói a paciência[1]

“P(h)oder”, do blogue Odeio Ser Mãe (Não considero no retrato as famílias ricas, com dinheiro para pagar todas as pessoas que as substituam nos cuidados, deveres e tarefas familiares: babás, empregadas domésticas, cuidadoras geriátricas, transporte escolar, uber e uber eats. Porque aí também é muito fácil ver mulheres assegurarem que nunca se prejudicaram na carreira por serem mães.) Há uns anos, fiquei muito irritada quando, num tweet, alguém concluía que “as mulheres não se interessam

Da série personagens do meu país (2): António M. Cardoso Fernandes

Da série personagens do meu país (2): António M. Cardoso Fernandes

Teve uma trajectória de vida direita como um fio de prumo. Soldado, político e poeta nas horas de lume, como gostava de cunhar os serões à lareira da sua casa serrana perto do Caramulo. Intransigente na defesa dos valores republicanos, da cidadania e da cultura, como foi dito na homenagem que lhe foi feita precisamente no Caramulo em 1998. António Manuel Cardoso Fernandes nasceu em 1942, em Paranho de Arca, filho de lavradores e primogénito

Autópsia de uma piada

Autópsia de uma piada

Se uma piada chega à mesa de autópsia, podemos ter a certeza de que não haverá erro médico; a piada está mesmo morta, finada, defunta, liquidada. Excluindo o pequeno grupo de estudiosos do humor, que se interessam tanto pela piada falhada como por aquela que gera uma gargalhada, explicar a nossa piada é sempre um exercício penoso em que a expectativa do autor se vai desnudando perante a indiferença da sala. “Era uma piada” nunca

Isto anda tudo ligado #3

Isto anda tudo ligado #3

Trabalhadores a esticar a corda Uma maneira de olhar para a política é imaginar uma arena, onde vários agentes em tensão procuram o seu espaço. Quem tem mais força consegue empurrar os outros para mais longe do centro, aumentando a área disponível. Há, quase sempre, muitas forças antagónicas a empurrar para vários lados, mas é possível simplificar um pouco as coisas e imaginar um mundo dividido entre os que têm mais, e são por isso

O lugar onde os elefantes vão morrer

O lugar onde os elefantes vão morrer

Em Novembro de 1549, chegou à corte espanhola de Valladolid, proveniente de Lisboa, o elefante “Salomão”, acompanhado pelo seu cornaca e por uma comitiva, sob os auspícios do rei João III de Portugal. Os caprichos dos homens e da geopolítica europeia ditaram que “Salomão” empreendesse, menos de dois anos depois, uma viagem bem mais longa e difícil, que o levou até Viena, onde viria a falecer em Dezembro de 1553. As andanças de “Salomão” andaram

Entretanto em Turim...

Entretanto em Turim…

Hoje vamos conjecturar que um benemérito do Norte, fundador de uma IPSS dedicada à educação da infância e juventude, teve a ideia peregrina de reunir num fim-de-semana os companheiros de escola que ainda estivessem convencidos de que os exames são uma abominação. Deve presumir-se que estaria ele mesmo convencido disso mesmo: senão, com que fito havia um benemérito de reunir-se com pessoas de persuasão adversa? Hélas! nenhuma pessoa de persuasão nenhuma lá foi. Sendo aliás

Motim Literário: Zenith contra George<sup>[1]</sup>

Motim Literário: Zenith contra George[1]

Em lugar de ir direto ao assunto, vou à volta. Por isso, peço ao leitor que não desanime. Não tarda nada e conseguirei apanhar a mosca – a chave do grande escândalo, em jeito de motim literário, que acabou de rebentar. José Agostinho de Macedo (1761-1831) foi um dos mais prolixos escritores da cultura portuguesa. Inimigos teve-os às dúzias, ainda mais do que as polémicas em que se viu envolvido em toda a sua vida.

Bretanha - Sozinhos em casa

Bretanha – Sozinhos em casa

Onde estava no momento em que lhe anunciaram que ia viver várias semanas em confinamento? Eu estava num lar de estudantes em Brest, a fazer as malas para mudar para um alojamento local onde ficaríamos alguns dias, enquanto esperávamos a data de entrar no apartamento que arrendámos. O telefone tocou. Era o Joachim, a dizer que “fontes próximas do Eliseu” o tinham informado de que o Macron ia fazer um discurso na televisão, para anunciar

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