A Vida de Brian e a JMJ

Este Agosto, enquanto os leitores da Almanaque se deliciam com um novo número, enquanto saboreiam sofisticados cocktails nos mais recônditos e exclusivos lugares paradisíacos do nosso planeta, Lisboa será invadida por uma multidão de jovens e para-jovens, paramentados ou nem por isso, em busca de ver ao vivo, e num palco francamente polémico, o Papa Francisco. É possível que o número supere o milhão e meio de participantes vindos de todo o mundo, espalhados numa área enorme. A enorme complexidade

A Vida de Brian e a JMJ

A Vida de Brian e a JMJ

Este Agosto, enquanto os leitores da Almanaque se deliciam com um novo número, enquanto saboreiam sofisticados cocktails nos mais recônditos e exclusivos lugares paradisíacos do

Destaques

Quem?

Quem?

O pedro-nunismo

Já houve o soarismo, o cavaquismo, o guterrismo, o barrosismo, o socratismo, o passos-coelhismo e vivemos o costismo, mas há

O pedro-nunismo

O pedro-nunismo

Já houve o soarismo, o cavaquismo, o guterrismo, o barrosismo, o socratismo, o passos-coelhismo e

Quem?

Quem?

Não é que esteja a esquivar-me ao assunto. Ou a tentar formar frases para que

Todos os artigos

O ovo da serpente

O ovo da serpente

E quando já tudo havia sido dito e escrito sobre o nazismo e o III Reich, eis que surge um livro como este: A Village in the Third Reich. How ordinary lives were transformed by the rise of fascism (Elliot & Thompson, 2022). A autora, Julia Boyd, que contou com a colaboração da historiadora alemã Angelika Patel, já antes tinha dado à estampa uma obra sobre os viajantes na Alemanha nazi (Travellers in the Third

Encerrar a boca de cena às minorias também é silenciar-lhes a voz

Encerrar a boca de cena às minorias também é silenciar-lhes a voz

O trigger veio do meu amigo Tiago Matias, actor e uma das melhores pessoas que conheço, portanto, realmente interessado em perceber o outro lado da história. O lado das minorias. Perguntava-me de forma directa: “qual a tua opinião sobre o que aconteceu no São Luiz – aproveitando para partilhar o manifesto valente de Keyla Brasil, que começava, naquele dia seguinte, a circular nas redes sociais.  Ao primeiro visionamento, atirei logo “estou absolutamente com ela!”.  Sem

Weimar #5

Weimar #5

CONFISSÃO – AQUÁRIO DIGITAL – EMOÇÕES BRANCAS E VERMELHAS – HOLÍSTICA – PARTIDO DO BEM   CONFISSÃO No futuro, a religião será praticada por dentistas especializados, financiados pelo orçamento do estado. Em cada boca aberta, será colocado um aspirador automático, dois rolos de algodão branco, uma broca grossa e uma fina, e um produto não comestível, que escorrerá da língua para as gengivas e para a garganta, sim senhor. A Confissão será iniciada apenas quando

Bretanha – Casa com vista sobre a cidade

Bretanha – Casa com vista sobre a cidade

Quando vim morar para a Alemanha, em 1989, descobri que deixei parte de mim em Portugal. Sosseguem, não comecem já a revirar os olhos, que isto não é um fadinho e não vou choramingar que “quando parti, meu coração ficou, aaaiiiii…”. Porque não foi o coração – foram os hábitos. Tive essa revelação numa das primeiras manhãs da minha vida nova, quando entrei num autocarro praticamente vazio e me perguntei se devia cumprimentar o motorista,

Tarot Almanaque – Janeiro/Fevereiro 2023

Tarot Almanaque – Janeiro/Fevereiro 2023

Carta V – O casamento heterossexual Lado positivo: união, concretização, amor, paz, tradição, família, estabilidade; contrato. Felicidade? Lado negativo: conservadorismo, rigidez, tédio, cansaço, dependência, prisão.__ No imaginário colectivo, o casamento parece ser um objectivo universal, desejável pela grande maioria e pretendido pelas minorias que dele se vêem excluídas. Nalgumas culturas, tende a ser compulsivo para as mulheres, ou estas sofrerão graves penalizações, físicas, sociais e/ou económicas, e, mesmo naquelas que consideramos serem sociedades próximas e

Em defesa do véu islâmico

Em defesa do véu islâmico

O título chamou-te a atenção, não foi?  Ainda chamaria mais se fosse “Pela ilegalização da homossexualidade”. E se fosse “Manifesto pelo exclusivo da utilização da abóbora-menina nas papas de abóbora”? Aí talvez passasses adiante apenas porque não saberias que a abóbora a utilizar é a abóbora-menina. Abóboras. Experimentemos outra: “Por uma América virgem”. Tenho a leve impressão de que captaria o teu olhar de cenho arreganhado. Sobretudo se não souberes que os nativos norte-americanos não nasceram lá: colonizaram o território

Marco Aurélio <i>at Austin</i>

Marco Aurélio at Austin

Vez por outra, os periódicos publicam artigos de opinião enfeitados com esta oração subordinada adverbial: “Quando eu estava no Estados Unidos a fazer o doutoramento… ” Aqueles de nós que nunca estivemos nos Estados Unidos a fazer o doutoramento, porém sabendo da escola que a oração subordinada, por definição, não prescinde de subordinante, logo pomos os  olhos a correr rápido pelas linhas na expectativa de encontrar coisa de certa magnitude: por exemplo, «tornei-me supremacista branco»

Talvez a superfície seja a essência

Talvez a superfície seja a essência

Texto de Mário A. T. Figueiredo, autor convidado. _ As superfícies, enquanto materiais de suporte e meios de comunicação, são obviamente subjacentes às artes visuais. Os artistas exprimem-se sobre uma enorme variedade de superfícies, desde interiores de cavernas nas pinturas rupestres, ao papel, à madeira, aos têxteis, ao vidro, à cerâmica, à tela e a muitas outras, nelas depositando formas, cores, texturas, construções, relações, representações ou abstracções. No cinema e na fotografia, comunica-se através de

Isto anda tudo ligado #1

Isto anda tudo ligado #1

O Haiti não é aqui, mas é aqui Não é possível entender a política sem entender o poder. Um dos seus mecanismos mais básicos é o medo. O medo é uma reacção instintiva ligada à necessidade de preservação. Temos medo porque queremos sobreviver. Mas é também um estado de alerta de tal forma intenso que nos consegue paralisar. E é por isso que, desde o início dos tempos, o medo foi usado como arma para

A tomada de posse do Exmo. <i>Sr</i>.

A tomada de posse do Exmo. Sr.

Entre a obra queirosiana que o plano nacional de leitura nos dispensa de tresler, esconde-se Alves & C.ª, um curto romance de José Maria de Eça de Queiroz, editado e publicado em 1925 por José Maria de Eça de Queiroz, vinte e cinco anos depois da morte de José Maria de Eça de Queiroz. A igualdade antroponímica da frase anterior, uma jiga-joga capaz de ludibriar o maior dos atilados, é facilmente desconstruída se auxiliada pelos

Aprendo depressa a chamar-te de realidade. Carta de São Paulo

Aprendo depressa a chamar-te de realidade. Carta de São Paulo

Em 2017 passei uma temporada em São Paulo, 20 anos após ter vivido em Paris, um ano e pouco antes do desastre Bolsonaro, entre o impeachment da Dilma e o golpe baixo do Lula preso. Escrevia-se e gritava-se muito “Fora Temer”, o ambiente era politicamente sinistro, não imaginava que podia piorar tanto.  1. Troca de casas entre amigas, apartamento em espelho Penha de França vs. Santa Cecília, com quarto e brinquedos para criança e livros

A monótona vida de Uóchinton Maria, a quem chamavam o Homem Porco

A monótona vida de Uóchinton Maria, a quem chamavam o Homem Porco

«Ergo-me ante o Sol que desce, e a sombra do meu Desprezo anoitece em vós…» Álvaro de Campos   1. Décimo segundo filho de uma numerosa prole de dezoito rapazes, não se pode dizer que Uóchinton Maria fosse um menino feliz. Desde cedo lhe foi detectada uma tendência indómita para a contemplação. Os olhos grandes, esbugalhados, fixavam-se facilmente em qualquer objecto, por mais desinteressante que fosse. O Dr. Aníbal Chimbica, do lugar de Oronhe, freguesia

Simpatia inacabada #3

Simpatia inacabada #3

Apanhar amoras Eu tencionava escrever uma crónica sofisticadíssima, dos pontos de vista literário, filosófico e lexical, mas ocorreu-me que será a primeira Simpatia Inacabada de 2023 e, no início do ano, prefiro dar um passeio. Depois de uma tempestade ou de um ano passar, como um comboio de alta velocidade, deixa incongruências e sinais que parecem dotados de uma história ou de um significado próprios, a que não temos acesso. O mundo está cheio de

Marialvas ou Libertinos?

The Coming Storm

Quando soube da notícia de uma ação policial na Alemanha que levou à detenção de 25 pessoas, o meu “sexto sentido” aprumou-se. Por várias razões. Uma, porque nasci na Alemanha, tenho pelo país um carinho muito especial — mesmo sendo português, identifico-me como “um bocadinho alemão” — e, por isso, notícias marcantes vindas de lá captam sempre a minha atenção. Outra, porque a notícia dava conta de que os detidos faziam parte de um grupo

Origamis<br>excerto de espectáculo para ser inserido noutro espectáculo, alternando com outras histórias</br>

Origamis
excerto de espectáculo para ser inserido noutro espectáculo, alternando com outras histórias

O grito – primeiro andamento – moderato A  actriz começa subitamente a gritar. É um longo grito. Não é de raiva nem de pânico, é apenas prolongado. Até que se esgote o ar. No fim, inspira longamente e recomeça. A meio do segundo grito, quando parece adivinhar-se já que os nossos ouvidos vão sofrer este tormento por mais algum tempo, a actriz pára. Começa a fazer um novo origami enquanto narra a história. – Esta

“Na cabaia de veludo/debruada a carmim cru”

“Na cabaia de veludo/debruada a carmim cru”

É lugar-comum que o domínio da roupa e dos tecidos seja tema de mulheres. Não está em causa se a realidade o demonstra ou o infirma – é um tópico literário, por exemplo, dos mais antigos e dos que mais perduram. A Penélope da Odisseia tecia a cada dia a sua espera por Ulisses (tecia depois de desmanchar de noite o tecido, estratagema para enganar os pretendentes que aguardavam a notícia da morte do marido

Teatro Cósmico #3

Teatro Cósmico #3

Identifico-me imenso Na “lição” Plays de Gertrude Stein, em que a escritora americana relata o modo como se foi aproximando e afastando do teatro para finalmente chegar à escrita de peças-paisagem, que parecem não se esgotar, há três ou quatro passagens sobre o verbo “to know” que me divertem muito. Stein descreve um problema de infância com o teatro que expelia familiaridade equiparando conhecer e saber, e que a excluía e angustiava, mas eu lembrei-me

Uma coisa não é só uma coisa

Uma coisa não é só uma coisa

Há factos que hoje tomamos como certos, como sabermos que é a Terra que anda à volta do Sol, que as espécies têm evoluído ao longo do tempo e de acordo com os seus habitats, e que não há geração espontânea de vida. Sabemos também, sem qualquer sombra de dúvida, que só há um novo organismo porque havia um preexistente e não por um qualquer sopro miraculoso. Mas nem sempre foi assim. Durante séculos, a

Weimar #4

Weimar #4

RESSUSCITAR A FERROVIA – SEXUALIDADE – ARCA DE NOÉ – ESTADO  SOCIAL – PRÍNCIPE  ENCANTADO RESSUSCITAR A FERROVIA Desta vez, com alguma surpresa, o Messias ressuscitou a ferrovia. Foi oficial, mais uma vez. Os Messias eram aos montes, há muitos anos. A imprensa verificava os factos cuidadosamente e batia sempre certo: vêm para nos salvar. A verdade era diferente. No caso do Messias da ferrovia, o trabalho era feito por dezenas de milhares de trabalhadores

Harry Todger e o Príncipe Sobressalente

Harry Todger e o Príncipe Sobressalente

Se, como uma sucessão de eventos e “casos de polícia” na política portuguesa tornou patente nos últimos meses, bastam alguns anos passados nos círculos do poder – mesmo nos mais afastados do centro – para inculcar em vulgares plebeus a ideia de que pertencem a uma casta superior, que paira acima da lei e cujo entendimento da “ética republicana” é estritamente subordinado ao proveito pessoal, poderá imaginar-se quão nocivo é para o carácter de um

As coisas mais aborrecidas

As coisas mais aborrecidas

Antes do pódio, as que recebem apenas diplomas mas que com esforço e dedicação podem um dia vir a receber medalhas:     Telemóveis  Nos bons tempos, um tipo podia dizer com simplicidade desarmante: Telefonaste-me? Não estive em casa o dia todo. Hoje, isso é impossível porque nos puseram uma espécie de coleira com GPS. Somos linces ibéricos em extinção, os cientistas sabem sempre de cada passo nosso.   Tenho trabalhado nas contra-medidas, claro. Ter o zingarelho desligado

Meia-De-Leite Escura Em Chávena Escaldada

Meia-De-Leite Escura Em Chávena Escaldada

[O]ne person’s ‘barbarian’ is another person’s ‘just doing what everybody else is doing. Susan Sontag   Caro leitor que me olhas do outro lado (da janela do computador, a prótese-extensão que os humanoides carregam constantemente). Tinha pensado em falar-te sobre Viena, desde a última vez: estive lá a primeira vez pelas mãos de um filme, uma trilogia romântica dos anos noventa, daquelas que nos enchem de esperanças para a vida toda (the right place, the

Sobre cânticos negros

Sobre cânticos negros

Numa entrevista a propósito da edição de um disco, Maria Reis afirmava: «Se tu entras na minha vida […] vais estar numa canção», depois de ter assumido que «[t]oda a história da música é isto». Há muitas maneiras de descrever canções e uma das mais originais talvez seja dizer que são «resquícios», como o faz na canção com o mesmo nome em Chove na Sala, Água nos Olhos (2019). A canção acaba com os versos:

Vivos-mortos – até que a vida nos repare?

Vivos-mortos – até que a vida nos repare?

Guardo da experiência várias cicatrizes, uma delas perfeitamente palpável. Lembro-me de que andava entretida com o meu primeiro ano de faculdade e que, até me encontrar naquela sala de espera, nunca me tinha passado pela cabeça outro destino que não fosse viver. Quatro anos de licenciatura pela frente, um emprego com algum conforto financeiro a médio prazo, uma relação bem-amada, quatro filhos para superar a matemática da família nuclear, e, enquanto o futuro se construía

<i>Avatar</i>, história e catarse

Avatar, história e catarse

Conhecem aquelas pessoas que, ao ouvir uma piada, dissecam-na ou divagam a propósito em vez de se rirem? Ou aqueles memes sobre psicólogos, que olham para as reações dos espetadores em vez do écran onde decorre a ação? É mais ou menos o que vou fazer aqui e agora. Em vez de lançar um enorme “uau!” de espanto acerca do grande blockbuster da quadra, Avatar: O Caminho da Água, vou dizer algumas coisas que giram

O folhetim Alberto Manguel

O folhetim Alberto Manguel

Do pouco que se sabe acerca de Alberto Manguel, há dados que necessitam de ser confirmados.  Mas, de modo geral, será sempre necessário escrutinar o figurão em causa, uma vez que lhe foram concedidas condições de privilégio, pelo menos à escala da Câmara Municipal de Lisboa. Os dados mais seguros, e mesmo esses carecem de verificação, são os seguintes: nasceu em Buenos Aires, em 1948, passou a infância em Israel e a adolescência na Argentina; quando

Inventário da vida privada #2

Inventário da vida privada #2

Ganhar a vida 1. Fui levantar dinheiro às quatro da manhã na Rua do Rosário, que por acaso é o nome da minha mãe. Quando saiu o cartão, apareceu um moço por trás que me disse – dá-me o cartão. Não fiquei nervosa, dei-lhe o cartão. Ele inseriu-o na ranhura e pediu o código – trinta, trinta e dois. Eu fiquei sempre ao lado dele, tranquila, esperando o grande assalto. Mas no ecrã apareceu escrito

Capa do n.º 3 da Almanaque

Capa do n.º 3 da Almanaque

Capa do Nº 3 da Almanaque, Janeiro 2023, ilustração de Lia Ferreira e layout de João Lagido. 

Tarot Almanaque – Janeiro 2023

Tarot Almanaque – Janeiro 2023

Carta II – A Mulher Velha Lado positivo: Sabedoria, colo, afecto, cuidado, tranquilidade, confiança. Lado negativo: Fealdade, doença, morte; infertilidade. Inconveniência, indomabilidade.__ A coisa mais punk que Vivienne Westwood (1941 – 29 Dez. 2022) fez foi ser uma velha gaiteira. Até ao fim da vida, aos 81 anos, apresentou-se irreverente, já não por oposição à Rainha de Inglaterra mas ao estigma da mulher velha, com o seu cabelo branco, todas as marcas de um envelhecimento

Weimar #3

Weimar #3

POLÍCIA DA MORALIDADE – SALVAR A DEMOCRACIA – DIREITOS HUMANOS – OBSERVATÓRIO DO ÓDIO – PANTEÃO   POLÍCIA DA MORALIDADE  O dia em que se extinguiu a Polícia da Moralidade foi um dia bonito. Na rua, homens de negro, em grupos pequenos, abandonavam as pistolas no chão, o chicote, vários estranhos instrumentos de tortura. Alguns Polícias da Moralidade, de tão contentes, rezavam baixinho, enganando-se de propósito no nome de Deus. À sua volta, as mulheres sorriam,

Porta dos Fundos

Porta dos Fundos

O colectivo Porta dos Fundos fez recentemente 10 anos. A sua origin story, se fosse contada pela Marvel, não podia ser mais edificante, enquanto lenda do humor. Cinco amigos, Gregório Duvivier, Fábio Porchat, João Vicente de Castro, António Tabet e o realizador Ian SBF, fartos de não encontrarem espaço para os seus projectos na TV mainstream brasileira, onde o humor oscilava entre o de talk shows, sitcoms mais ou menos inspiradas e escolinhas do professor

O Mistério

O Mistério

Ao fim de trinta anos desta vida (psicólogo, terapeuta, demiurgo, bruxo, lançador de búzios) ainda me espanto. Como é que as relações sobrevivem? Sabemos por que começam: obrigação, necessidade, tempo livre, casas pequenas. Como raio se prolongam? Não faço caso das terapias conjugais salvo para evitar assassínios ou fogo posto. O conceito de tratar casais, portanto casamentos ou relações, é exótico. Lembro-me sempre das pessoas que querem um cão e depois vão para uma escola

Fernando Pessoa e África: Colonialismo, Escravatura e Racismo <sup>[1]</sup>

Fernando Pessoa e África: Colonialismo, Escravatura e Racismo [1]

À margem das biografias de Fernando Pessoa, há que considerar a inovadora fotobiografia de Maria José Lancastre (1981) e o livro intitulado 33+9 leituras plásticas de Fernando Pessoa (1988) de Alfredo Margarido. Ao exemplar que me ofereceu, este último juntou uma aguarela intitulada “Pessoa e o fantasma sul-africano”. Por razões relacionadas com a estima intelectual e amizade que sempre tive pelo autor, essa imagem não só me emociona como encontro nela formulado um problema pertinente,

Não Sei (Mas…)

Não Sei (Mas…)

Este texto é sobre a importância de dizer “não sei” por três razões: porque nos liberta do fardo de estarmos sempre certos, porque se não sabemos podemos ter o prazer de descobrir e porque a valorização da humildade pode funcionar como defesa contra o totalitarismo. Em 1961, com um império estabelecido durante os anos dourados de Hollywood, Jessie e John Danz criaram um fundo que permitiu à Universidade de Washington organizar uma série de conferências

Como a Música ao Vivo se Rendeu à Estratégia do Enfartamento

Como a Música ao Vivo se Rendeu à Estratégia do Enfartamento

O meio do pop-rock é pródigo em embustes, alguns dos quais constituem crime do ponto de vista legal: é o caso do suborno dos DJs das rádios pelas editoras para que seja dado destaque aos seus discos, uma prática conhecida no mundo anglófono por “payola” e que floresceu nas décadas de 1950 e 1960, mas perdeu relevância na nossa época, em que a música na rádio é apenas um ruído de fundo e poucos ainda

Sombras do Desejo

Sombras do Desejo

À primeira vista, o conjunto escultórico Sombras, de 1952, realizado em gesso e em grandes dimensões, parece ser um desvio no desenvolvimento artístico de Maria Martins. Nele, duas figuras antropomórficas estilizadas aparecem ajoelhadas, sem braços e com as cabeças inclinadas em provável sinal de respeito. Uma delas apresenta duas grandes protuberâncias às costas, que lembram asas. Na outra, duas saliências no peito sugerem se tratar de uma mulher. Quando foi exibida pela primeira vez na

Excerto da “Vida e obra de Orgasmo Carlos Rodrigues” - “Os anos de repartição” - Tomo1 - 3ª parte, 4ª parágrafo.

Escrever Sobre Comédia

Escrever sobre comédia, criticar comédia, não é tarefa a que nos devamos dedicar de ânimo leve, tantas são as coisas que podem correr mal e ser nefastas para a nossa pobre saúde. Começa logo por haver muito boa gente que não vê utilidade no exercício, provavelmente uma das razões por que não existe crítica especializada sobre o assunto por cá.   Isso e, claro está, praticamente não existir crítica, ponto. E a que há, justamente ou

Notas Para um Natal Tão Falho Delas

Notas Para um Natal Tão Falho Delas

1. Na mão esquerda, uma ceira carregada de cravos; na direita, uma escada, uma coluna, uma cruz, uma vara com uma bandeira.  É estranho e bizarro, para dizer o mínimo, pôr uma criança, ademais tão nova, tão pequena, a carregar os artefactos da sua própria morte, mas é isso que sucede nesta estatueta em marfim, de autor desconhecido, vinda da Índia no século XVII e hoje exposta em Coimbra, no Museu Machado de Castro. Não

Regresso a Fargo

Regresso a Fargo

É sempre entre a última de novembro e o dia de fazer a árvore de natal que chega o frio aqui a casa. Saem os agasalhos da arca de fecho de cobre e os cachecóis que deixei de usar quando entrei para a faculdade, com barras de cores alternadas, preto e branco ou amarelo. É sempre nesta altura que me volta a apetecer ver o Fargo, dos irmãos Coen, um filme de 1996. Quando me

Fragmentos do Diário de Rui Teixeira #2

Fragmentos do Diário de Rui Teixeira #2

* Hoje pus a tocar um disco. Já se estava a estragar fora do frigorífico mas ainda cheirava bem. Gosto muito de música; há inclusive uma pessoa que quando me fala me considera um melómano de um certo ponto de vista. Há dias, no trabalho, do outro lado do open space, ouvi a Luísa perguntar o que era aquele som que ainda não tinha parado de tocar desde a manhã, e eu saltei da cadeira,

Le Piano Vache

Le Piano Vache

1. Percorri o solo europeu sobre os carris do interrail, ainda a Chéquia se chamava Checoslováquia. E em 1997, saí do ninho lisboeta para o Erasmus em Paris. Quem podia — a bolsa mal chegava para pagar a renda — erasmava, era parte do ritual de iniciação “devir europeu”. Ter 21 anos em Paris foi um embate de geopolítica existencial, um momento fundador no património de mundividência e ceticismo. Apresentou-me a ambivalente digestão de uma

Teatro Cósmico #2

Teatro Cósmico #2

O Planeta Como Planeta Não foi há muito que, no contexto de um colóquio onde se encontravam pessoas dedicadas a pensar o teatro ou as artes performativas ou as artes vivas ou essa coisa a que se dá nomes vários, mas que tantas vezes fala do mesmo tipo de objetos, Richard Schechner, uma figura reconhecida por essas mesmas pessoas, decidiu, na intervenção de abertura, apelar a que se suspendesse a guerra na Ucrânia, todas as

O PCP e a Guerra da Ucrânia e as Medidas Fiscais da IL. O que Pesquisam os Portugueses Sobre os Partidos?

O PCP e a Guerra da Ucrânia e as Medidas Fiscais da IL. O que Pesquisam os Portugueses Sobre os Partidos?

O termo “Googlar” foi adicionado ao Oxford English Dictionary em 2006 e ao Grande Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora em 2010. O verbo é definido como: “pesquisa na internet usando o motor de busca Google”. Em Portugal, 85% dos internautas dizem fazer pesquisas diariamente. Todos nos habituámos a recorrer ao Google para saber mais sobre um tema que nos interessa e, considerando a escala da plataforma, os dados sobre estas pesquisas são uma

As Quatro Virtudes do Budismo Brasileiro<sup>[1]</sup>

As Quatro Virtudes do Budismo Brasileiro[1]

Uma breve exploração dos preconceitos na minha busca de alguma forma de espiritualidade 1. JoutJout Prazer. É esse o nome do canal Youtube de Julia Tolezano da Veiga Faria, a conhecida vlogger que me levou ao budismo brasileiro. Tudo começou quando uma amiga me sugeriu um vídeo em que Jout Jout (como é conhecida) lia um livro ilustrado. Sugado pelo vórtice do mecanismo de recomendações do YouTube, em breve dei por mim a assistir a

Simpatia Inacabada #2

Simpatia Inacabada #2

MONSTERAS NA BIBLIOTECA Um dos meus parágrafos preferidos de Walden, talvez o preferido, é este, na secção “Economia”:  “Há muito tempo perdi um cão de caça, um cavalo baio e uma rola; procuro-os até hoje. Falei com muitos viajantes sobre eles, descrevendo os seus percursos habituais e os chamamentos a que respondiam. Um ou dois tinham ouvido o cão, o galope do cavalo e até visto a rola desaparecer atrás de uma nuvem, parecendo tão

Senhor Doutor Couto

Senhor Doutor Couto

Escritório do Senhor Doutor. O Senhor Doutor Couto come uma banana. Entra Asdruval a correr.    Asdruval – Doutor, Doutor, Doutor Couto dá licença?  Dr.Couto – Ah é você Asdruval! Entre, entre. Estava precisamente a pensar em si. Asdruval parando de correr – Ai é? Doutor Couto, mas eu não fiz nada de errado! Dr.Couto – Não, Asdruval claro que não. Eu também não penso só nos meus trabalhadores quando eles fazem alguma coisa errada.

Estou Cansada

Estou Cansada

“A mulher que não gosta de ações de sensibilização com cadeiras de rodas!” – anunciou o moderador, entre o divertido e o irónico, perante uma plateia de pessoas que me iam ouvir a falar sobre deficiência, a propósito do Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, que se assinala (não se comemora,  há muito pouco para comemorar neste campo) a 3 de dezembro e cujas ações se estendem entre duas semanas antes e duas semanas depois

As Lentes da História

As Lentes da História

Há fascínios que vêm de criança. O meu, por História, começou pelos impérios da Antiguidade, mais especificamente por Roma, romanos e Império Romano. Não havia então internet mas havia Astérix. Comprei o primeiro álbum (“Astérix Gladiador”, ed. Bertrand) em 1974, na Papelaria Mimo em Mem-Martins, hoje desaparecida. Outros se seguiram. Custavam 75$00 e ainda os tenho todos. Vi o Ben-Hur e o Quo Vadis vezes sem conta, no cinema da Praia das Maçãs. Era um

<i>Andor</i>, a Lufada de Ar Fresco que Poucos Sentiram

Andor, a Lufada de Ar Fresco que Poucos Sentiram

Depois de escrever sobre Stranger Things de um ponto de vista mais lato, tendo em conta visões de um ecossistema de streaming que não só tem mudado muito como continua em constante ebulição — e sim, em breve gostaria de pegar na arrepiante ligação com o mundo das salas de cinema —, desta feita, apraz-me cantar as pequenas glórias de Andor, uma série que se passa no universo da Disney+ e de Star Wars, talvez

Conversas da Puericultura Enlouquecida

Conversas da Puericultura Enlouquecida

Personagens: 5 cegonhas em cuidados com a criação Época e lugar: num condomínio aberto sobre estacas, com vistas e muita aragem   Cegonha (a última, ainda sem filhos): Não há meio de me nascerem as crianças. Estou farta de estar sentada sobre estes três ovos aquecidos sem uma única rachadela, sem sinal algum de que o que tenham lá dentro se mexa. Cegonho (o do meio): O cegonho que te galou terá alguma responsabilidade nisso.

Marialvas ou Libertinos?

Pessoa – a Primeira ou a Terceira

A escolha da voz deve ser o maior desafio de quem se prepara para mergulhar numa narrativa longa. Ali, está grande parte do que o romance poderá vir a ser: a primeira pessoa é tecnicamente mais fácil, a terceira mais desafiante; a primeira é mais íntima, a terceira mais abrangente. Quem escreve na terceira pessoa pode pôr o narrador com rasgos aleatórios sem ter de os explicar. Pode surgir a palavra «sinalagmático», pode aparecer uma

<i>Everything is Alive</i>

Everything is Alive

Poucos segundos depois de o programa começar, Sean, o entrevistado, revela que um dia normal na sua vida é incrivelmente longo — começa exatamente «à meia-noite e um segundo» — e, basicamente, consiste em «ir ali e voltar, ir ali e voltar, ir ali e voltar, ir ali e voltar, ir ali… e voltar, ir ali e voltar, ir ali e voltar… e é fantástico!» Num dia normal, Sean vê imensa gente, que parece sempre

Bretanha – Concarneau, ou: Disfunção Cognitiva

Bretanha – Concarneau, ou: Disfunção Cognitiva

Quem seria capaz de ter a estranha ideia de se ir alojar, depois de velho, num lar de estudantes? Nós. Enfim, nem tão velhos como isso, mas já com idade para ter juízo. No entanto, instalámo-nos num lar de estudantes que tinha o charme dos anos sessenta, vista para o parque de estacionamento e para a faculdade de Direito, Economia e Gestão de Brest, para os estudantes que passavam –  quase sempre debaixo de bátegas

Weimar #2

Weimar #2

VERDADE – CRUELDADE – NATAL – FIM DO MUNDO – ANIMAIS   VERDADE  A Verdade deve ser mantida no congelador, entre 0 e – 14 graus celsius. A Verdade deve ser embrulhada, para se evitarem  cheiros vizinhos, a alho, a frango estragado. Recomenda-se retirar a Verdade do congelador um dia antes de ser cozinhada. Afogue-se a Verdade num prato raso, mergulhada em molho de limão azedo, salpicada de pimenta e sim, alho. A Verdade pode

Os Ciúmes Assassinos do Doutor Jivago

Os Ciúmes Assassinos do Doutor Jivago

Desconfio que o ciúme é um sentimento adolescente. Comecei a desconfiar quando percebi que nunca me passou pela cabeça ter ciúmes da Michelle Pfeiffer e que os meus sentimentos já amadureceram muito desde os primórdios da Debra Winger, apesar de ainda ter ficado absolutamente convencido de que aquele sorriso estonteante de felicidade da Gwyneth Paltrow na Paixão de Shakespeare – This is a new world!, era dedicado em exclusivo ao estonteado senhor do assento G18

0,71 — A Minha Mãe É Misógina

0,71 — A Minha Mãe É Misógina

Espero que o título tenha cumprido a sua função e passo a informar que não vou falar sobre a minha mãe. A mãe desta história é uma amiga de Nova Iorque a quem a filha adolescente disse há dias: — Eu e a minha psicóloga achamos que tu és uma misógina inconsciente. Todas as noites, mãe e filha discutem ao jantar. Os homens da casa também participam, mas num registo fleumático. São debates “acesos”, “desgastantes”,

O Casal Pragmático

O Casal Pragmático

Uma relação obrigatória, a prazo mas definitiva, uma das partes tinha dupla personalidade, a outra tinha milhares. Durou anos e ainda hoje não se sabe se tiveram filhos. Há um viúvo alegre e um morto contrariado. Dito assim talvez o leitor tenha dificuldade em imaginar que relação foi esta. Se acrescentar mais uns detalhes talvez seja mais fácil. Estávamos no dito período revolucionário. A concordata ( isto de casalinhos devia sempre aos padres no antigamente)

Quadros da Luta de Classes em Portugal (2020-2021)

Quadros da Luta de Classes em Portugal (2020-2021)

Em Óbidos, no Folio de 2021, entre momentos com e sem máscara, encontrei-me com Jung Chang. Tinha sido infectada logo na segunda vaga de Covid, em 2020. “Não diga a ninguém mas nem tudo foi desagradável. Fiquei dois meses em casa, a ler, tranquilamente, e a tomar chá. Não tinha muito apetite, por causa da Covid, e emagreci bastante”, ela contava isto enquanto comia com à vontade um peixe grelhado antes de atacar um caldo

Futebol: O Inferno do “Paraíso” Regulatório

Futebol: O Inferno do “Paraíso” Regulatório

Os escândalos que rodearam o Campeonato do Mundo no Qatar (da corrupção e espionagem de Estado às violações dos direitos humanos) são apenas os últimos capítulos nos inúmeros episódios que têm afetado a credibilidade do futebol (e do desporto em geral), de tal forma que começam a multiplicar-se as séries documentais que transformam o desporto em entretenimento policial. A grande maioria destes episódios são dignos das melhores séries criminais. Os escândalos de corrupção detetados no

Fragmentos do Diário de Rui Teixeira

Satyagrahaha — o Superior Alívio da Incongruência

Certa vez, contaram-me que durante uma semana de Março de 1969, enquanto a Administração Nixon arrancava com o novo processo de vietnamização, dezenas de lentes de jornalistas enfiados num quarto de hotel aguardavam que John Lennon e Yoko Ono começassem a fazer sexo. Porém, ludibriada pelo desejo tórrido aparentado no sugestivo convite para a lua-de-mel dos recém-casados, a atenção mediática viu-se envolvida na pior festa do pijama jamais realizada em Amesterdão desde os tempos devastadores

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