A queda do Governo e o Império Romano
1. Quando o Criador, na sua infinita sabedoria, inspirou ao apóstolo a visão tenebrosa do Apocalipse, nunca imaginou vir a ser superado pelos comentadores políticos portugueses na noite do dia 8 de novembro de 2023. Com efeito, os quatro cavaleiros saídos da abertura do primeiro selo do rolo manuscrito na mão de Deus não souberam interpretar devidamente a ira divina, pelo menos quando comparados com a fúria vingadora das redações jornalísticas ultrajadas. Nessa tenebrosa noite, na quadrangulação simétrica do ecrã,

A queda do Governo e o Império Romano
1. Quando o Criador, na sua infinita sabedoria, inspirou ao apóstolo a visão tenebrosa do Apocalipse, nunca imaginou vir a ser superado pelos comentadores políticos
Destaques

Ceroulas par avion
Alemanha e Israel
Na entrada principal do Reichstag, o edifício do Parlamento Federal alemão, o público é recebido por duas obras monumentais de

Alemanha e Israel
Na entrada principal do Reichstag, o edifício do Parlamento Federal alemão, o público é recebido

Ceroulas par avion
“Que nunca nos falte o supérfluo!”, atira a exuberante Val Marchiori, estrela do reality show
Todos os artigos

Nobody’s Perfect
“Nobody’s perfect” é a deixa perfeita, a punch-line derradeira de Some like it hot, considerado por muitos o melhor filme de comédia de todos os tempos e tema principal desta crónica. Não faltam citações da mesma e foi usada inúmeras vezes como lançamento da resposta “but who wants to be a nobody”. É também o nome de uma das biografias de Billy Wilder, o seu realizador e guionista, em co-autoria com o seu cúmplice habitual,

O que é que é normal?
Este texto é sobre normalidade, normalidade estatística e normatividade. Vem a propósito do dia internacional da mulher e das acusações de radicalismo que tendo a sofrer nesta altura por defender a igualdade. Tentarei argumentar que conceitos simples de estatística são úteis para compreender que a normatividade não é “natural”. No dia 15 de Julho de 1940, aos 22 anos de idade, morria nos EUA Robert Wadlow, o homem mais alto do mundo. Por causa de

Teatro Cósmico #5
Parem de nos salvar Num muro junto à Praça do Chile, em Lisboa, alguém escreveu: “Parem de nos salvar. Ass.: Golfinhos”. Associo esta frase a um episódio que um camarada das artes performativas, o André e. Teodósio, me contou. Por altura da estreia do seu espetáculo, que se chamava Metanoite (Fundação Calouste Gulbenkian, 2007), um espectador cruzou-se com ele no final e comentou: “Gostei muito, é desafiante, super experimental, acho muito bem, mas olha…” (e

Rever O Mundo do Silêncio
Há muito que mergulho com uma garrafa de ar comprimido às costas, mas ainda me lembro da primeira vez que respirei por uma na gelada piscina dos bombeiros de Lisboa. Num primeiro instante mais a medo, pois até esse dia sempre bloqueara a respiração para imergir, mas logo veio a festa: “agora ninguém me para!”. E não parou. Esse poderoso aparelho, a que chamamos escafandro autónomo, foi uma daquelas invenções da Segunda Guerra Mundial: Émile

Impressões a partir de Ramiro
Graças a um comentário não sei de quem, a não sei que post de outrem que não retive, soube que a RTP2 tinha – em boa hora – passado cedo e a más horas (5 e tal da manhã!) o filme Ramiro (2017) de Manuel Mozos, que há muito acumulo na minha listinha de filmes “para ver mais tarde”, no Filmin. Não foi tarde, nem foi cedo, sentei-me e vi-o, através das gravações automáticas da

Simpatia inacabada #5
Problemas de tradução (2) Tradutor: imitador; falsário; traidor; criatura abnegada e generosa que cultiva o apagamento. Se incluísse uma entrada dedicada aos tradutores num novo Dicionário das Ideias Feitas, um Flaubert dos tempos modernos teria muito que tomar em consideração. Há séculos de lugares-comuns sobre tradução literária. Estes chavões obscurecem a prática, em vez de a descreverem correctamente, e têm contribuído para a desvalorização e o apagamento do trabalho dos tradutores. Para alguém que começa

Joana d’Arques, a shock jock em lume brando
Na América, por volta das duas da tarde de um tempo que por cá passava da hora, um homem adulto indignou-se. A causa da sua indignação entrara-lhe com estrondo pelo rádio do carro que conduzia, torturando-lhe o filho adolescente, amarrado ao banco pelo cinto de segurança. De pouco lhes valendo o aviso prévio do conteúdo potencialmente ofensivo que se seguia, palavras foram ouvidas, todas ditas num único fôlego, brutalmente encadeadas como uma combinação de Sugar

A Maravilhosa Aritmética da Igualdade (de A a Z) #3
Nota Introdutória. A (cont.) Ali, Mohammed “Não, eu não vou a 10 000 milhas de casa para ajudar a matar e queimar outra nação pobre simplesmente para continuar a dominação dos senhores de escravos brancos sobre pessoas mais escuras no mundo.” Mohammed Ali Num trabalho com os meus alunos sobre figuras importantes da desobediência civil ou de resistência e luta pelos Direitos Humanos, por entre os Martin Luther Kings, Nelson Mandelas, Gandhis

Ancient guilty apocalyptical pleasure
Foi com entusiasmo juvenil que me pus, há semanas, um pouco antes da bronca das partilhas de conta da Netflix, a ver o mais recente frisson de fast-food “histórica” (muito idêntica à original, isto é, gordurosa, nada nutritiva, cheia de emulsionantes e intensificadores de sabor, mas que devoramos avidamente e inundados de guilty pleasure): a série Ancient Apocalypse. Para quem não esteja bem a ver do que se trata, adianto que é uma série da

Pastagem rotacionada
Personagens: 5 ovelhas adultas e duas crianças Época e lugar: Inverno num lugar que já foi outro Ovelha malhada (distraída a roer erva): Que viemos aqui fazer? Ovelha mais ao fundo (compenetrada no comer): Não faço a mínima ideia. Continua a comer que está ali alguém a fotografar. Se te perguntarem alguma coisa, diz mé com um bocadinho de vibrato, pouco. Ovelha malhada (sem parar de roer erva escassa): Mé é o que habitualmente

Meia-De-Leite Escura Em Chávena Escaldada
We’ve become a race of Peeping Toms. What people ought to do is get outside their house and look in for a change. – Stella, Rear Window (1954). Podes fechar a janela? Um pouco mais? Pergunto-te, muda, com um movimento breve de olhos, acreditando em poderes telepáticos, teus, que ainda não mencionaste mas decerto possuis. Pareces anuir a cabeça, mas era um pássaro que parecia dirigir-se à carruagem. Presságios? Recordo-me da pomba morta

A varanda da Maianga
1. “Sete e Meio”, assim ficou conhecido o apartamento na Maianga, em Luanda onde, entre 2005 e 2007, morei com artistas angolanos, Orlando, Kiluanji, Ihosvanny, Yonamine, Francisca e o bebé Njamy, os mais perenes, outros em temporadas de média duração[1]. Ficava num sétimo andar (e meio), num prédio de arquitetura moderna, semelhante aos edifícios da Avenida Estados Unidos da América, em Lisboa, mas degradado pela passagem do tempo e negligente manutenção. Bem localizado, dali podíamos

O ciúme, autópsia breve
A irmã do ciúme, a inveja, é muito mal vista (tanto quanto popular), mas não chega aos calcanhares do mano. In videre, ver demais. Dante, no canto oitavo do Purgatório, cose os olhos (as pálpebras) aos invejosos que ficam como os falcões (com os olhos tapados antes de serem largados na caça). Ché a tutti un fil de ferro i cigli fóra E cusce sì, come a sparvier selvaggio A inveja é chata,

O Caso Manguel
Regressemos à “Operação Manguel”, o eruditíssimo (dizem-me, quem sou eu para o desmentir) escritor, ensaísta, editor e tradutor nascido em 1948, em Buenos Aires. Que sabemos nós ao certo, hoje, sobre a doação à Câmara Municipal de Lisboa (CML) dos 40 mil livros da biblioteca do argentino e a criação do Centro de Estudos da História da Leitura? Agitemos o sonolento passado recente, reavivemos o fluxo de alguns acontecimentos. A ideia de trazer a biblioteca

A literatura tem de ser um gatinho fofo?
De repente, o maior perigo que a literatura tem é o de ofender. Noutros tempos, temia-se que não servisse para nada – não no sentido de não ser funcional, instrumental, numa sociedade, mas no de poder não criar impacto. Escrever e não criar um baque, eis o que aterrorizava quem se dedicava à incompreensível mania de inventar histórias. Mas então chegou o século XXI, e com ele, em simultâneo, o medo das palavras e o

0,71 — Braguilhas, armas e Putin. A vida de Steven Seagal
Durante anos, achei Steven Seagal um chato de galochas. Como homem, como actor, como tudo. Tem um ar boçal e pomposo e os seus filmes devem ser muito desinteressantes. Até que tropecei numa notícia e aqui estou para dizer: Steven Seagal é mais do que maçador. Começo pelo sexo para chegar à indústria de armamento e à política internacional. Será rápido. Farei uma ligação provavelmente injusta. Vou arriscar. O hábito é escrevermos sobre o que

Weimar #8
CENTROS COMERCIAIS – ÉTICA DE DINOSSAURO – CORVOS NUM INCÊNDIO – POBRES – BOA MEMÓRIA CENTROS COMERCIAIS Alguns dias depois do Ano Novo, há um momento mágico e anónimo que acontece a meio da noite, longe dos olhos e da luz. É o desligar do presépio nos Centros Comerciais. Testemunhado talvez por um ou dois empregados de limpeza, esse é o instante em que a água seca no poço e os camelos dos reis deixam

A morte tem sempre música de fundo
(breve elegia-reportagem sobre um letão chamado Sergei Zholtok) Aposto que tem música de fundo. Aposto alto: singelo contra dobrado como nos livros do Texas Jack. Burt Bacharach: Casino Royale; Eso Es La Amistad; Promessas, Promessas com textos de New Simond; elevadores subindo e descendo e despejando pessoas a esmo nos foyers frios de hotéis lajeados; That’s What Friends Are For: Dionne Warwick, Elton John, Gladys Knight, Stevie Wonder, também eles subindo e descendo nos

Capa do n.º 5 da Almanaque
Capa do Nº 5 da Almanaque, Março 2023, ilustração de Lia Ferreira e layout de João Lagido.

Weimar #7
SEM-ABRIGO – POEMA AO PAI – MÁQUINAS DE COMPANHIA – GATOS – GRANDE PLANO SEM-ABRIGO Prometido é prometido. A promessa: “ninguém vai entrar na sua casa assim, de qualquer maneira”. Era vê-los, novos e velhos, os proprietários, de cócoras, a farejar o ar para contar quantas visitas tinham em casa, a lavar a roupa à mão na casa de banho, proibidos de usar a varanda, a dormir com o forno ligado para se aquecerem,

Stolen Hours
Alistou-se no exército aos dezasseis anos. Tocou em bandas militares e saiu cinco anos depois. Foi para Los Angeles e conheceu Charlie Parker e Stan Getz, com quem tocou. Isto não é um texto sobre jazz, é um texto sobre um crime. Stolen Hours, Horas Roubadas (1963), é o título de um filme menor. É a história de uma beta a quem é diagnosticado um tumor cerebral com o prognóstico de apenas um ano de vida;

A ascensão da Mulher na Europa esclarecida
Segunda parte do ensaio Marialvas ou Libertinos: As guerras culturais e o romance sobre o século XVIII (Primeira parte: As guerras culturais e o romance sobre o século XVIII, I – O Estado da Arte) 1. É famosa a frase do filólogo alemão Auerbach (1892-1957): o historiador, na dificuldade de escrever a História, «vê-se muitas vezes obrigado a refugiar-se na lenda». Talvez em nenhum outro assunto se tenham produzido tantas lendas como na história dos géneros.

Eixo e antieixo
Augusto de Campos, “Eixo”, 1957 Quando visitei o ateliê de Marcia de Moraes no final de outubro de 2022, havia dois grandes desenhos, presos à parede por fitas adesivas, que roubavam a atenção de quem entrava no ambiente. Eram Pele litoral e Contornos flácidos. O primeiro tornava evidente o que parece ser central na composição de vários de seus desenhos: tudo se organizava a partir de um eixo. Mas não um eixo reto, de acordo

A Coisa

Simpatia inacabada #4
Problemas de tradução Vejo um vídeo com uma entrevista ao artista Jean-Michel Basquiat. Fora de campo, alguém pergunta: “Há raiva dentro de ti?” Ainda muito jovem, como sempre foi, o artista responde calmamente e com toda a naturalidade: “Claro que sim.” O entrevistador tenta então aprofundar: “Estás zangado com quê?” Basquiat cala-se. Atravessam-lhe o rosto toda a espécie de pensamentos amargos e emoções sombrias. A seguir, ainda em silêncio, tenta articular uma resposta. Pelo esforço

Wittgenstein em Alcochette
Não é raro o uso de alegorias fantasiosas para dar inteligibilidade a certos hábitos linguísticos; a origem da perturbação desses hábitos não se explica de outro modo. Nada me autoriza a reclamar a verdade desta proposição; sei que é verdadeira porque aprendi assim. Eis ali o homem com desgosto de amor agravado pela propensão alcoólica: passa as noites nos bares, cotovelos fincados no balcão, a beber e a lastimar-se até o expulsarem; entra no táxi,

Isto anda tudo ligado #2
O que é um fascista? Antes de se converter em acções, a política nasce em palavras. Em política, as palavras contam, porque é essa a matéria de que se fazem as ideias, mas também porque o que se diz estabelece os limites do que se pensa e, em certa medida, do que se pode fazer. Não é por acaso que desde sempre o poder passou pelo controlo do que é dito. Em tempos antigos, a

Os músicos fingem que tocam, nós fingimos que os escutamos
O episódio que se segue não só é verídico como certamente já se repetiu várias vezes, com pequenas variantes, pelo mundo fora: uma banda de adolescentes, em incipiente estado de maturação musical e que nunca saíra da sala de ensaios, recebe uma proposta para tocar numa festa da escola secundária. No derradeiro ensaio antes do Grande Dia, a excitação de subir a um palco pela primeira vez é moderada por alguma lucidez: é óbvio que

Envelhecer nas bancadas
Aceitar sem mais a idade que nos é ditada no registo civil implica uma cobarde cedência aos poderes instituídos. Entre os muitos poderes que nos clamam à capitulação, devemos apontar o dedo à burocracia estatal, a uma noção moderna de tempo linear e, claro, à pressão para festejar aniversários. A ideia de que os aniversários devem ser festejados mais não é do que uma bizarria que nos obriga a declarar publicamente a idade como, ainda,

Princípios de genealogia
Explica-se a coisa com alguma facilidade. Há um problema geracional contra o qual não há nada a fazer. O Dr. A foi guitarra-baixo (uma Fender vermelha) numa banda de garagem que animava bailes nos arredores de S. João do Estoril. Era primo de C, que frequentava um grupo de Belém onde se reuniam D, B, E e F. Bom: F era uma estudante de germânicas, irmã de G, baterista da banda. O que aconteceu foi isto: entre

Teatro Cósmico #4
Andar e cair Quando uma criança cai desamparada na rua (e é frequente as crianças caírem), logo um adulto prestável estende o braço para a levantar, os pais correm para a libertar do chão e a criança atarantada mostra no olhar uma espécie de incompreensão perante a movimentação e a rapidez da reação crescida. Não a deixam estar no chão, deitada, porque a prostração é sinal de dor, de incapacidade ou de vergonha. Reza a

O Maravilhoso Potencial da Inutilidade
Tinha este texto “na gaveta”, mas acaba de ser anunciada uma possível fusão entre o Instituto Gulbenkian de Ciência, da Fundação Calouste Gulbenkian, e o Instituto de Medicina Molecular, da Universidade de Lisboa. A ideia, dizem-me, é criar o maior instituto de ciências da vida da Península Ibérica, com uma forte componente biomédica e ligação ao Hospital de Santa Maria. Uma vez que esta fusão surge na sequência de uma série de outras decisões políticas

Os Enamoramentos
Enamoramientos I, estudo sobre Los Enamoramientos, de Javier Marías, ilustração digital de Lia Ferreira, 2023 Leitura ilustrada do livro Los Enamoramientos, de Javier Marías, 2011. Ouvi esta obra em audiolivro, na língua original, estando disponível a edição (escrita) em português, pela editora Alfaguara, com o título de Os Enamoramentos. Enamoramientos II, estudo sobre Los Enamoramientos, de Javier Marías, ilustração digital de Lia Ferreira, 2023 ___ Esta série de “Leituras Ilustradas”, em que me proponho ilustrar

Desesperadamente à procura de um telemóvel em 1950 (+ -)
Eu tinha 50 anos quando chegaram os telemóveis. Demasiado tarde. É certo, além de telecomunicar, eles vinham com uma fantástica rede de informações e passei a ir menos ao arquivo do jornal para saber como escrever: Khrushchev ou Khrushchov, Yeltsin ou Iéltsin? Vantagem que não era grande coisa porque naquela altura o senhor da Rússia passou a chamar-se Putin, perpétuo de cargo e nome fácil de memorizar. É certo também, sendo aparelho sem fio, que

Crónica
Quando eu andava na escola primária, subia a Rua Arquiteto Paulino Montez e despedia-me da Cláudia um pouco antes de chegar a casa. Não éramos bem vizinhas, porta a porta, mas quase. A Cláudia era irmã do Albertino e de mais três irmãs. A casa era de esquina e tinha um pátio gigante. Naqueles tempos, era um pátio gigante, mas há dias passei por ele e pareceu-me minúsculo. O Albertino, seu irmão, fez-se Beto. Assim

Serotonina: uma história física e moral *
Primeira parte Somos compostos por milhares de moléculas diferentes. Mas se pedirmos a alguém na rua que enumere todas as moléculas que conhece existentes no corpo humano, talvez essa pessoa não chegue às três dezenas. Eis uma lista possível: água, oxigénio, dióxido de carbono, colesterol, triglicerídeos, colagénio, glucose, ADN, ARN, hemoglobina, anticorpos, pepsina, melanina, ATP, dopamina, adrenalina, testosterona, progesterona e estrogénio, oxitocina, várias vitaminas e poucas mais. Nas últimas décadas, uma das moléculas a ter

Fragmentos do diário de Rui Teixeira III
Acabei por desenvolver com o namorado da Luísa uma relação interessante no plano da tépida cumplicidade de género depois de ele ter ficado para almoçar no dia em que me veio visitar com o intuito inaugural de me desfazer o trombil, ainda estou para descobrir se real ou figurativamente, por motivos que se prendiam, grosso modo, com o desconhecimento das minhas verdadeiras intenções para com a sua namorada, motivos que prontamente debelei apresentando-lhe a minha

A História Universal de Mel Brooks, Parte I

“Quem vendeu a minha pátria?”
1. A certa altura do governo Sócrates, por via das robustas bolsas INOV-Art*, houve debandada de jovens do setor cultural. Como o país não tinha (tempo verbal hesitante) muito para oferecer a esta gente, a atriz Beatriz Batarda esteve bem quando, no lançamento oficial do programa, aconselhou os bolseiros: “Vão e não voltem”. Então, de Nova Iorque ao Cairo, em versão culti do programa “Os Portugueses no Mundo”, ei-los que partiam novos, e de facto

0,71 — Ela entrou e disse: “Tu usas fuck-me shoes?!”
Os sapatos vermelhos são uma coisa nos pés de uma menina e outra completamente diferente nos pés de uma mulher. Aos cinco anos, são a melhor escolha para ir a uma festa de família ou à Missa do Galo. A partir dos 20, roçam o mau gosto. Se forem de salto alto, são provocadores. Se forem de salto-agulha — os stiletto —, abre-se a porta do herético. Chegados aqui, há duas possibilidades: se a mulher

Da série personagens esquecidas de Portugal (1): Eduarda D’Orey e Abreu
Figura incontornável da pós-modernização portuguesa. Lisboeta de pouso, nascida no Ribatejo (Santarém, 1961) e em berço fidalgo, cedo arregaçou as mangas. Foi para Londres estudar arte de rua e de instalação com apenas dezoito anos. Ungida desde cedo com preocupações sociais, recusou candidatar-se a bolsa ou sequer receber ordenado. Numa entrevista à revista K, conduzida por Rui Zink (1991), explicou: ”Com tantos desempregados e imigrantes, não creio ter o direito de roubar o pão a quem dele precisa” (as citações

És Um Jardim Fechado, Minha Irmã E Minha Esposa, Um Jardim Fechado, Uma Fonte Selada.*
O jardim não é, pois, a pequena forma de paisagem, ele tem o seu esquema simbólico próprio. Na perspectiva do otium, ele não é a redução, à escala humana, da generosa Natureza, não mais do que uma metábole ou sinédoque pela qual ela se apresentaria. Muito pelo contrário, é através de uma separação dela que ele se constitui – e quase em sentido oposto. Anne Cauquelin, A Invenção da Paisagem Aderimos à tese de

Aventuras da Bélinha e do cão preto
Personagens: um cão de guarda e uma voz humana Época e lugar: lugar sagrado embutido num muro Cão (momentaneamente sentado por cima das Alminhas): O mundo é um aborrecimento. Quase ninguém passa por este lugar. Contam-me os antepassados que houve tempo em que havia missa todos os dias naquela capela e terço ao fim da tarde; tocava a sineta e quando calhava havia festa e procissão. À vista do nicho aqui por baixo, toda

Weimar #6
ALTARZINHO – MENTIRA – ANDAR A PÉ – ÓRGÃOS – TRABALHO DIGNO ALTARZINHO A ideia de um Altarzinho acabou por fazer o seu caminho. Agradava a todos. Longe iam os dias em que o altar era uma nave suspensa num palco imenso, longe iam as plataformas no céu, para sentar os dignitários políticos e espirituais, longe as cascatas povoadas por peixes vermelhos chegados do Japão, longe as bailarinas seminuas, sincronizadas e louras ao som

Capa do n.º 4 da Almanaque
Capa do Nº 4 da Almanaque, Fevereiro 2023, ilustração de Lia Ferreira e layout de João Lagido.

A Maravilhosa Aritmética da Igualdade (de A a Z) #2
Nota Introdutória. A (cont.) Afro-europeia/Afropeia “Não poderemos continuar a significar humanidade nesta linguagem senão não nos livraremos da violência que ela carrega. Precisamos de novas palavras para expressar o que somos agora, o que queremos ser. Teremos de nos libertar. (…) Afropeia vem abrir as portas da prisão. Para que a reclusão acabe, será preciso repudiar os padrões induzidos pela ocidentalidade.” Léonora Miano, Afropea – Utopie post-occidentale et post-raciste, Paris, Grasset, 2020, p.

O ovo da serpente
E quando já tudo havia sido dito e escrito sobre o nazismo e o III Reich, eis que surge um livro como este: A Village in the Third Reich. How ordinary lives were transformed by the rise of fascism (Elliot & Thompson, 2022). A autora, Julia Boyd, que contou com a colaboração da historiadora alemã Angelika Patel, já antes tinha dado à estampa uma obra sobre os viajantes na Alemanha nazi (Travellers in the Third

Encerrar a boca de cena às minorias também é silenciar-lhes a voz
O trigger veio do meu amigo Tiago Matias, actor e uma das melhores pessoas que conheço, portanto, realmente interessado em perceber o outro lado da história. O lado das minorias. Perguntava-me de forma directa: “qual a tua opinião sobre o que aconteceu no São Luiz – aproveitando para partilhar o manifesto valente de Keyla Brasil, que começava, naquele dia seguinte, a circular nas redes sociais. Ao primeiro visionamento, atirei logo “estou absolutamente com ela!”. Sem

Weimar #5
CONFISSÃO – AQUÁRIO DIGITAL – EMOÇÕES BRANCAS E VERMELHAS – HOLÍSTICA – PARTIDO DO BEM CONFISSÃO No futuro, a religião será praticada por dentistas especializados, financiados pelo orçamento do estado. Em cada boca aberta, será colocado um aspirador automático, dois rolos de algodão branco, uma broca grossa e uma fina, e um produto não comestível, que escorrerá da língua para as gengivas e para a garganta, sim senhor. A Confissão será iniciada apenas quando

Bretanha – Casa com vista sobre a cidade
Quando vim morar para a Alemanha, em 1989, descobri que deixei parte de mim em Portugal. Sosseguem, não comecem já a revirar os olhos, que isto não é um fadinho e não vou choramingar que “quando parti, meu coração ficou, aaaiiiii…”. Porque não foi o coração – foram os hábitos. Tive essa revelação numa das primeiras manhãs da minha vida nova, quando entrei num autocarro praticamente vazio e me perguntei se devia cumprimentar o motorista,

Tarot Almanaque – Janeiro/Fevereiro 2023
Carta V – O casamento heterossexual Lado positivo: união, concretização, amor, paz, tradição, família, estabilidade; contrato. Felicidade? Lado negativo: conservadorismo, rigidez, tédio, cansaço, dependência, prisão.__ No imaginário colectivo, o casamento parece ser um objectivo universal, desejável pela grande maioria e pretendido pelas minorias que dele se vêem excluídas. Nalgumas culturas, tende a ser compulsivo para as mulheres, ou estas sofrerão graves penalizações, físicas, sociais e/ou económicas, e, mesmo naquelas que consideramos serem sociedades próximas e

Em defesa do véu islâmico
O título chamou-te a atenção, não foi? Ainda chamaria mais se fosse “Pela ilegalização da homossexualidade”. E se fosse “Manifesto pelo exclusivo da utilização da abóbora-menina nas papas de abóbora”? Aí talvez passasses adiante apenas porque não saberias que a abóbora a utilizar é a abóbora-menina. Abóboras. Experimentemos outra: “Por uma América virgem”. Tenho a leve impressão de que captaria o teu olhar de cenho arreganhado. Sobretudo se não souberes que os nativos norte-americanos não nasceram lá: colonizaram o território

Marco Aurélio at Austin
Vez por outra, os periódicos publicam artigos de opinião enfeitados com esta oração subordinada adverbial: “Quando eu estava no Estados Unidos a fazer o doutoramento… ” Aqueles de nós que nunca estivemos nos Estados Unidos a fazer o doutoramento, porém sabendo da escola que a oração subordinada, por definição, não prescinde de subordinante, logo pomos os olhos a correr rápido pelas linhas na expectativa de encontrar coisa de certa magnitude: por exemplo, «tornei-me supremacista branco»

Talvez a superfície seja a essência
As superfícies, enquanto materiais de suporte e meios de comunicação, são obviamente subjacentes às artes visuais. Os artistas exprimem-se sobre uma enorme variedade de superfícies, desde interiores de cavernas nas pinturas rupestres, ao papel, à madeira, aos têxteis, ao vidro, à cerâmica, à tela e a muitas outras, nelas depositando formas, cores, texturas, construções, relações, representações ou abstracções. No cinema e na fotografia, comunica-se através de (ou sobre) superfícies: ecrãs, papel, metal. As esculturas, embora

Isto anda tudo ligado #1
O Haiti não é aqui, mas é aqui Não é possível entender a política sem entender o poder. Um dos seus mecanismos mais básicos é o medo. O medo é uma reacção instintiva ligada à necessidade de preservação. Temos medo porque queremos sobreviver. Mas é também um estado de alerta de tal forma intenso que nos consegue paralisar. E é por isso que, desde o início dos tempos, o medo foi usado como arma para

A tomada de posse do Exmo. Sr.
Entre a obra queirosiana que o plano nacional de leitura nos dispensa de tresler, esconde-se Alves & C.ª, um curto romance de José Maria de Eça de Queiroz, editado e publicado em 1925 por José Maria de Eça de Queiroz, vinte e cinco anos depois da morte de José Maria de Eça de Queiroz. A igualdade antroponímica da frase anterior, uma jiga-joga capaz de ludibriar o maior dos atilados, é facilmente desconstruída se auxiliada pelos

Aprendo depressa a chamar-te de realidade. Carta de São Paulo
Em 2017 passei uma temporada em São Paulo, 20 anos após ter vivido em Paris, um ano e pouco antes do desastre Bolsonaro, entre o impeachment da Dilma e o golpe baixo do Lula preso. Escrevia-se e gritava-se muito “Fora Temer”, o ambiente era politicamente sinistro, não imaginava que podia piorar tanto. 1. Troca de casas entre amigas, apartamento em espelho Penha de França vs. Santa Cecília, com quarto e brinquedos para criança e livros

A monótona vida de Uóchinton Maria, a quem chamavam o Homem Porco
«Ergo-me ante o Sol que desce, e a sombra do meu Desprezo anoitece em vós…» Álvaro de Campos 1. Décimo segundo filho de uma numerosa prole de dezoito rapazes, não se pode dizer que Uóchinton Maria fosse um menino feliz. Desde cedo lhe foi detectada uma tendência indómita para a contemplação. Os olhos grandes, esbugalhados, fixavam-se facilmente em qualquer objecto, por mais desinteressante que fosse. O Dr. Aníbal Chimbica, do lugar de Oronhe, freguesia

Simpatia inacabada #3
Apanhar amoras Eu tencionava escrever uma crónica sofisticadíssima, dos pontos de vista literário, filosófico e lexical, mas ocorreu-me que será a primeira Simpatia Inacabada de 2023 e, no início do ano, prefiro dar um passeio. Depois de uma tempestade ou de um ano passar, como um comboio de alta velocidade, deixa incongruências e sinais que parecem dotados de uma história ou de um significado próprios, a que não temos acesso. O mundo está cheio de

The Coming Storm
Quando soube da notícia de uma ação policial na Alemanha que levou à detenção de 25 pessoas, o meu “sexto sentido” aprumou-se. Por várias razões. Uma, porque nasci na Alemanha, tenho pelo país um carinho muito especial — mesmo sendo português, identifico-me como “um bocadinho alemão” — e, por isso, notícias marcantes vindas de lá captam sempre a minha atenção. Outra, porque a notícia dava conta de que os detidos faziam parte de um grupo