A queda do Governo e o Império Romano
1. Quando o Criador, na sua infinita sabedoria, inspirou ao apóstolo a visão tenebrosa do Apocalipse, nunca imaginou vir a ser superado pelos comentadores políticos portugueses na noite do dia 8 de novembro de 2023. Com efeito, os quatro cavaleiros saídos da abertura do primeiro selo do rolo manuscrito na mão de Deus não souberam interpretar devidamente a ira divina, pelo menos quando comparados com a fúria vingadora das redações jornalísticas ultrajadas. Nessa tenebrosa noite, na quadrangulação simétrica do ecrã,
A queda do Governo e o Império Romano
1. Quando o Criador, na sua infinita sabedoria, inspirou ao apóstolo a visão tenebrosa do Apocalipse, nunca imaginou vir a ser superado pelos comentadores políticos
Destaques
Ceroulas par avion
Alemanha e Israel
Na entrada principal do Reichstag, o edifício do Parlamento Federal alemão, o público é recebido por duas obras monumentais de
Alemanha e Israel
Na entrada principal do Reichstag, o edifício do Parlamento Federal alemão, o público é recebido
Ceroulas par avion
“Que nunca nos falte o supérfluo!”, atira a exuberante Val Marchiori, estrela do reality show
Todos os artigos
Temos de Falar
As didascálias podem ser ditas por um ou dois, ou mesmo três narradores. Ou em alternativa, podem ser ignoradas no momento da montagem da peça, correndo o encenador o risco do espectáculo não ser perceptível. Ele está deitado. Dorme. Mas não é noite. Ela entra. Senta-se na cama. Ao lado dele. Ela – Temos de falar. Se calhar não é o momento. Mas nem te sei dizer se o momento certo já passou ou se
Fragmentos do Diário de Rui Teixeira
Hoje, para me certificar de que não voltaria a acordar antes do despertador, adiantei o despertador para as quatro e meia da manhã. Às quatro e meia da manhã, como previra, acordei com o despertador, mas não consegui voltar a adormecer depois de o despertador ter tocado. Levantei-me da cama às sete, sete e cogumelos, enfiei os pés nas babuchas e arrastei-me até à cozinha: nada no frigorífico. Tenho de me lembrar de comprar um
Weimar #1
PARAÍSO – PROGRESSO – LIBERDADE DE EXPRESSÃO – FUTURO – PUROS VERDADE O velho Adão que há em nós continua a fazer das suas. De maçã na boca, tornou-se um dos habitantes mais obscenos do Paraíso, obcecado com a mínima manifestação da juventude feminina. A serpente, Adão apertou-a pelo pescoço e usa a sua pele como cinto ou como um colar, mas só quando sai à noite. O jardim do Paraíso, esse está plano
A Maravilhosa Aritmética da Igualdade (de A a Z)
Nota Introdutória Foi ao título de um livro da mulher que se definia como “negra, lésbica, mãe, guerreira, poeta[1]” que fui emprestar o nome deste nosso encontro aqui na Almanaque, substituindo simplesmente a palavra Distância por Igualdade. Audre Lorde dedicou a sua vida ao combate às injustiças racistas, sexistas, classistas e LGBTfóbicas. A sua luta por convicção e por condição foi emblemática do que chamamos hoje a Interseccionalidade, uma justaposição ou um cruzamento de vários
Quando a Criança Era Criança
A brutal guerra civil na Síria gerou uma terrível crise humanitária. Dos quase 7 milhões de refugiados que abandonaram a Síria, mais de 5,5 milhões encontraram abrigo no outro lado da fronteira, no sudeste da Turquia. Com acesso mínimo a condições dignas, de educação, de assistência médica e outros recursos básicos. Homens, mulheres, crianças, velhos: é da História serem os mais frágeis dos frágeis os que se expõem à vulnerabilidade. Aqui, as crianças. Publicado em
Ladies and Gentlemen, Simon and Garfunkel
Quando tinha 7 anos, e sem nunca ter saído de Portugal, o Central Park do outro lado do Atlântico tornou-se mais familiar que o Parque de Monsanto, mesmo ao lado de casa, em Lisboa. Depois de ver o concerto do Paul Simon e Art Garfunkel na minúscula televisão (provavelmente ainda a preto e branco), passei os anos seguintes a ouvir o LP vezes sem conta, memorizando letras, decorando as frases ditas entre músicas e seguindo
Lo. Lee. Ta
As ilustrações deste artigo, da autoria de Lia Ferreira, foram seleccionadas para Longlist dos World Illustration Awards 2023 Lolita III, ilustração de Lia Ferreira Lolita IV, estudo sobre Lolita, ilustração digital de Lia Ferreira, 2022. Leitura ilustrada do livro Lolita, de Vladimir Nabokov, 1955. O mito de Lolita eu conhecia desde miúda; não sei com que idade, tinha visto o filme de Stanley Kubrick, de 1962, com o mesmo nome. A memória que guardo é
Marialvas ou Libertinos?
As guerras culturais e o romance sobre o século XVIII I – O Estado da Arte 1. A revolta contra a domesticação do género masculino foi uma das obsessões do romantismo. Ao longo do século XX, por razões evidentes, mas pouco exploradas, a esmagadora maioria dos especialistas – historiadores, sociológicos, antropólogos, filósofos – chegaram tarde ao debate sobre os modelos de género. Inebriados por barricadas, disparos de artilharia e discursos revolucionários, deixaram cair no
Astória
Não serão abundantes as palavras que suscitam reações tão desiguais e desconcertantes como a palavra História. Há quem a idolatre, a invoque ex cathedra ou a ostente na lapela; alguns usam-na como simples adereço ou adorno descartável, muitos minimizam-na ou ignoram-na. Para não falar de quem a despreza ou renega. Uns consideram que o seu peso é incomensurável, outros ligeiro, outros ainda, irrelevante. Depende. Como pode algo desprovido de massa ter pesos tão distintos? A
A Vida Agitada na Rodela Circulatória
Personagens: 6 perdizes vagamente aparentadas: 3 mais velhas e 3 mais novas Época e lugar: numa semana qualquer, algures no asfalto, numa rotunda próxima de várias autoestradas Perdiz (acabada de chegar à rotunda com o grupo que ficou um pouco mais para trás): Olha que coincidência virmos todas parar aqui! (virando ligeiramente a cabeça e baixando o pio) Quem são aquelas três aqui à frente? Perdiz (a do grupo da frente com peito avantajado
Stranger Things & o Estado da Netflix
O verão é tempo de blockbusters e se isso há uns anos era sinónimo de idas ao cinema para escapar ao torrão do sol e aproveitar filmes de acção, super-heróis ou dinossauros, em 2022 também foi sinónimo de ficar em casa e ver séries pensadas como grandes eventos. Foi o caso de Stranger Things para a plataforma Netflix — que chegou num momento bastante circunspecto da vida desta empresa de Silicon Valley. Stranger Things é
Um Negro no País das Loiras
O meu olhar varreu as estantes. Vi Aquilinos Ribeiro, Vergílios Ferreira, Cardosos Pires, Fernandos Namora, Agustinas Bessa-Luís, Antónios Lobo Antunes… Não sabia por onde começar. Um tipo como eu perde-se num alfarrabista como aquele: uma cave semi-clandestina, escura e húmida, onde é difícil circular, cheia de livros até ao tecto e a todo o comprimento das paredes. Entrei. O dono da loja, uma criatura com barriga de homem sedentário, estreito em cima e bojudo no
Teatro Cósmico
Gravidade, zero Em dezembro de 1999, o encenador Dragan Zivadinov estreia Gravitation Zero – Noordung Biomechanics Theatre, um espetáculo do coletivo esloveno de artistas multidisciplinares Neue Slowenische Kunst (NSK), apresentado, no ar, numa nave de treino russa pertencente ao Centro de Treino de Cosmonautas Yuri Gagarin situado na Cidade das Estrelas, a nordeste de Moscovo. Um voo com 8 espectadores e 7 atores que executam, num ambiente de gravidade zero alcançado em voos parabólicos,
A Coragem que se Aprende com Poetas e Outros Artistas
“Não escrevas sobre actualidades”, tinha-me pedido o Vasco[1], e eu descansei-o, porque nunca tenho opinião formada assim de um dia para o outro. “Se estiveres com bloqueio, podes sempre escrever sobre livros”, o que não me descansou nada, porque há maternidades que não leio. Mas tinha preparado um texto sério, sobre ciência e arte, para ser o meu primeiro aqui na Almanaque, a sério que tinha. Depois pensei em dizer ao Vasco que afinal não
A Auto-Ficção Irrita-me
Não gosto de auto-ficção. Irrita-me a manipulação descarada, ter de pesar demasiadas coisas em conflito. Até assumo que dê jeito que alguém se ofereça à radiografia, que se alcance uma aparente versão destilada da experiência humana. Quem nunca olhou para outro a querer ler o que tinha dentro que atire uma pedra. Eu, se o fizesse sempre, teria de começar um tiroteio de calhaus. O problema é nunca poder desligar-me do x-acto que limita o
“nus ou vestidos e com sapatos na mão”
Ia escrever que o primeiro pedaço de Brasil que vi foi (pela janelinha de um avião que não descontinuava a carreira de arranha-céus) o céu de São Paulo – mas é mentira. Não foi nas vizinhanças do Frei Caneca, suores frios no corpo e o meu desprezo pelos avisos de um amigo, que aquele bairro era perigoso, que me mudasse para zona menos off da cidade (que off!, foi amores à primeira vista), como se
Dois Contos (I)
Construído por um conjunto de entradas de diário, o conto «I Can’t Breathe» (1929), de Ring Lardner, descreve os dias que uma rapariga de dezoito anos passa numa estância de férias com os tios, idosos «com pelo menos 35 anos, talvez até mais», e onde se entretém a jogar golfe, durante o dia, e a dançar, à noite, no salão de baile animado por uma orquestra. Obrigada a viajar com os tios por os pais
Simpatia Inacabada #1
CORRESPONDÊNCIAS Num dia destes, num programa de música na rádio, perguntaram à cantora Adrianne Lenker, vocalista dos Big Thief, o que ouvia em criança. Fiquei à espera de que Lenker descrevesse as canções que ouvia nessa época, mas ela respondeu qualquer coisa como: ouvia os meus pais; o som dos insectos; a mobília que tínhamos em casa; os cantos mais pequenos e escuros da sala (queria saber o que se passava lá). Pensei imediatamente no
Regresso à Bretanha
Ultimamente dou comigo a sentir uma saudade física da Bretanha. Dentro de mim algo se inquieta e foca numa imagem concreta, e de repente vejo-me nas escadas do meu prédio, ou na rue de Pontaniou em frente à casa cujo intercomunicador avariado cumprimentava todos os passantes, ou a entrar no supermercado. Não são as praias belíssimas, as ilhas e o perfil doce das rochas, o marisco, os enclos, os menires. Nestas pontes involuntárias para os
Meia-De-Leite Escura Em Chávena Escaldada
Tudo me é difícil dizer. Não sou um Deus. Homero Convidam-te para escrever. Uma crónica. Sobre o que quiseres. O terrível exercício da liberdade : poderia escrever sobre o que faço, sobre o sic transit gloria mundi, ou ingloriamente tentar ser uma espécie de Nuno Rogeiro, comentador que sobrevive a todas as hecatombes, comentando-as como quem despedaça um pedaço de carne fresca. Escrever. Escrever – que não é a coisa cimeira em minha
Crónica do Mindelo com uns Anos de Atraso
1. Em 2004 aterro, com curiosidade e disponibilidade, na ilha de São Vicente, Cabo Verde. Tenho 28 anos, convencida de que a alegria, inclusive a excentricidade, fermentam numa ilha, ainda que árida. Os dedos abrem-se a novos ventos e areias. Já vivi nos Açores e reconheço o poder transformador das ilhas, o seu horizonte incerto, contingente e criativo; a sua beleza presidiária. Num pedaço de terra de meio habitante por quilómetro quadrado, onde os primos
O “Problema” da Deficiência
“Qual é o seu problema?”– perguntou-me, quando percebeu que eu pertencia àquele grupo, num misto de admiração e curiosidade pela invisibilidade da minha deficiência. Fiquei ali a remoer no facto de a jovem psicóloga usar de forma leviana a palavra, com toda a carga emocional e simbólica que a mesma acarreta e toda a contribuição para o estigma histórico desta comunidade. Depois fiquei a cismar na quantidade de vezes que as pessoas, ao saberem que
O Massacre da Autenticidade
Há um capítulo de Venomous Lumpsucker, o novo livro de Ned Beauman, em que o panda Chiu Chiu — último da sua espécie — morre, e todas as crianças da China ficam inconsoláveis. “Em termos de pura tonelagem emocional”, escreve Beauman, “a morte de Chiu Chiu pode ter sido uma convulsão sem precedentes na história da humanidade, o maior número de pessoas multiplicado pela mais profunda sinceridade”. Após o frenesim habitual de gemidos e mortificação, o partido
0,71 — O homem é “sedutor”, a mulher é “oferecida”
Uma mulher culta, linda e divorciada disse-me qual a razão do súbito desinteresse do homem com quem saíra três ou quatro vezes: — Fui demasiado oferecida. — Oferecida…? — Sim, ele percebeu que eu estava interessada. Esta conversa foi em 2022, não nos anos 1930, quando as minhas avós passavam horas à janela, em Castelo Branco e no Porto, à espera que os namorados passassem para as seduzir — namorados com quem casaram, naturalmente. Na
Pai
Entorno-me, torturo-me, afogo-me em ternura. O peito dói-me como se tivesse um torno a apertar-me as costelas, as mãos tremem-me e não sei o que fazer com elas. E agora, pai? Onde vou pousar todo este carinho, todo este amor que, de tempos a tempos, me esqueci de quão grande ele era? Diz-me, pai Afonso. Tu que me ensinaste sempre tudo e tinhas respostas prontas para as perguntas mais difíceis, estás tão profundamente calado. Nunca
TMI (Too Much Information) – Porque Quero Falar de Perda Gestacional
Os números variam de acordo com o país e metodologia, mas são todos invariavelmente altos: dez a quinze por cento das gravidezes terminam num aborto espontâneo, na esmagadora maioria dos casos durante o primeiro trimestre. Aconteceu-me a mim. Por estes dias, teria nascido o meu terceiro filho. Infelizmente, algures entre as 10 e as 12 semanas de gravidez, o embrião deixou de se desenvolver e morreu. Nunca conheceremos os motivos, mas o mais provável é
Um Certo Tipo de Relação
No passado mês de Abril, dois psicólogos e académicos, Andrew Devendorf e Sarah Victor, publicaram no The Conversation, uma plataforma ( é assim que se diz não é?) que começou na Austrália, um artigo sobre o coming out proud dos psis. É melhor nem traduzir. O assunto? A saúde mental dos técnicos da dita. Mil e setecentos psicólogos foram inquiridos (embora muitos fossem apenas académicos, não psicoterapeutas): 80% assumiram problemas de saúde mental e 48%
Porque Esta Crónica Talvez Não Devesse Existir
O meu gosto pela discussão pública é de facto inexistente. […] A ideia básica é que […] já se atingiu um estado de hipertrofia de interacção social. Não se deve por isso colaborar numa expansão desta hipertrofia […] – M. S. Lourenço The real opposition is the media. And the way to deal with them is to flood the zone with shit. – Steve Bannon Publicar textos com regularidade é algo que, na minha
O Bafo Atmosférico
As ideias voejam na atmosfera? Ainda antes das alterações climáticas, uma linhagem de espíritos superiores, de Sterne a Calisto Elói, já atribuía à atmosfera o poder do esclarecimento. Se lá chegavam de mais alto, as ideias de lá se lançavam em baforadas; sem destino determinado ou favorecendo alguém, apanhavam-se como quem respira. O firme fundamento desta crença deve-se à ousadia do latino que equiparou o bafo do entusiasmo à trivial inspiração; não tendo propriamente descoberto
Almanaque, Passado e Presente, Talvez Futuro
Nos idos de 1959, um grupo de notáveis, talvez então ainda não tão notáveis assim, lançou a revista Almanaque, uma aventura financiada por Joaquim Figueiredo Magalhães, editor da Ulisseia. José Cardoso Pires, Luís de Sttau Monteiro, Alexandre O’Neill, Augusto Abelaira, Baptista-Bastos, Augusto Abelaira, Vasco Pulido Valente e José Cutileiro, a redacção de luxo da revista, talvez não se lembrassem ou sequer soubessem que, seis décadas atrás, Eça de Queirós escrevera um extenso texto, à laia
Capa do n.º 1 da Almanaque
Capa do Nº 1 da Almanaque, Novembro 2022, ilustração de Lia Ferreira e layout de João Lagido. Arranque; cá vamos nós!