Fotografia de Joana Sá

Pequenas doses de literatura

Dificilmente se sente mais a falta de tempo para ler do que em Maio, quando começa a Feira do Livro de Lisboa (e me lembro que na altura em que frequentava a Feira do Livro do Porto, a dificuldade era conseguir fazer as compras durarem mais de um mês…).

Mas, na verdade, não é necessariamente uma questão de falta de tempo –- é mais uma questão de falta de tempo garantido, ou seja, de tempo que sei que vai ser meu e que posso usar sem interrupções. Uma amiga disse-me que tinha passado a ler poesia, porque, muitas vezes, 10 minutos não chegam para ler um capítulo com calma, mas sobram para ler e até reflectir sobre um poema. Eu, que não sei ler poesia, ocupo muitas vezes esses tempos curtos com artigos, pequenos ensaios ou, mais frequentemente do que gosto de admitir, posts nas redes sociais, que raramente promovem o deleite literário. A boa literatura tem de nos fazer apreciar o momento de leitura, mas também continuar connosco depois de fechado o livro. É preciso poder “entrar” e, pelo menos para mim, isso só se faz com tempo e com expectativa de tempo.

Parece-me que há apenas uma excepção, que é a literatura infantil. Há livros que são pequenas maravilhas de 5 minutos, com a vantagem de poderem ser partilhados enquanto se lêem em voz alta e discutidos enquanto se vestem pijamas. Segue-se um resumo e a crítica de uma dúzia dos meus preferidos, com alguns dos que lamento não serem de leitura recomendada para adultos ocupados e não só. Até porque, convenhamos, representam um investimento significativamente menor do que o Guerra e Paz e ligeiramente menos culpa do que o tempo passado no Twitter. Aqui ficam, por ordem de data de publicação, e com o mínimo possível de “spoilers”, 12 com menção a mais alguns.

 

  1. Em 1957, aparece pela primeira vez O Urso Pequeno, escrito por Else Holmelund Minarik e ilustrado por Maurice Sendak. Este último foi “pai” de muitos grandes personagens, sendo talvez o mais famoso o Maior-Monstro-de-Todos, chamado Max, mas, não sem alguma vergonha, será a partir de agora preterido a favor do Urso Pequeno. O Urso Pequeno consegue voar para baixo e um pouco para o lado, faz a melhor sopa de aniversário do mundo (porque existia um risco real de a Mãe Ursa, que é muito pouco mãe-ursa, se ter esquecido da data) e tem uma amiga que fala através da boneca, ou talvez seja ao contrário. Misturei aqui uma série de histórias, mas valem todas a pena, pelo humor, pelos desenhos, pela ternura, pela cadência. Se lidos em voz alta e em português, recomendo que se use um ligeiro sotaque do Porto.
  2. Escrito por David McKee e publicado em 1968, Elmer é o único elefante da manada que nasceu colorido e que tenta tanto, tanto, ficar cinzento como os outros. É um livro que apanha o espírito da época, mas que se mantém actual porque não é nem piegas nem literal. Celebra a diferença e a diversidade (que pode ser cultural, étnica, de género, …) e ninguém me convence de que o Dia do Elmer não inspirou as Pride Parades (pelo menos, inspira-nos a passar uma tarde a tentar fingir que o mundo é menos cinzento).
  1. (e picos). Também publicado em 1968, A Floresta, de Sophia de Mello Breyner Andresen, continua a ser o meu preferido, apesar de não ser o melhor. É mais longo do que o resto da selecção porque gosto de ler só a primeira parte, desde a descrição do jardim (agora Jardim Botânico do Porto e que também terá inspirado A Noite de Natal, O Rapaz de Bronze e A Fada Oriana) até ao dia em que Isabel e o anão ficam amigos. O meu chapéu de crítica literária nada especialista diz-me que é porque celebra gerações de crianças que constroem pequenas casas à sombra de grandes carvalhos. Crianças que sabem que a comida que desapareceu não alimentou só formigas e que não duvidam que “algo” dormiu naquela cama. Tudo o resto, sobre ouro e poetas, já entra no campo da fantasia e, por isso, é menos interessante.
  1. O trabalho de Gyo Fujikawa foi dos primeiros a incluir personagens de diferentes etnias e a desafiar abertamente estereótipos. Oh, What a Busy Day!, publicado originalmente em 1976, segue um grupo de crianças ao longo do dia, começando com um maravilhoso pequeno-almoço, passando por rimas e lengalengas, brincadeiras em dias de chuva, zangas, animais, histórias tristes, muita lama, pequenas lições de gentileza, profissões, incluindo um “Quanto a mim, quero ser EU”. Só conheço uma adaptação para português, feita pela Verbo em 1981, com o título Um Dia em Cheio! Foi o meu livro preferido durante anos, mas foi preciso chegar a adulta para perceber o contraste entre a modernidade do livro e o reaccionarismo da tradução. Na versão portuguesa, “a medical doctor”, sorridente de blusa e laço rosa, aparece como “médico”, uma criança que, de saia azul, aponta um dedo autoritário a um triste tigre é apresentada como “o domador”, entre outros exemplos. Mas o livro original é tão inspirador que nem essa tradução, que daria um ensaio sociológico, nos tira a vontade de viver um dia (ou vida) tão cheios. Se conseguirem, leiam o original.
  1. e 6. Gosto de todos os livros do Manuel António Pina e acho que deveriam ser lidos antes dos do A. A. Milne (O Sr. Pina julgava-se o maior fã do Joanica Puff, a.k.a., Winnie the Pooh, por vezes também confundido com Xi Jinping). Um dos meus preferidos é O Têpluquê que, como todos os bons livros para crianças, fui apreciando cada vez mais com a idade. É n’ O Têpluquê que ficamos a conhecer o escaravelho da batata chamado Bocage, a revolução das letras e aprendemos o truque para derrotar homens maus que pensam que são donos das florestas. Mas os poemas que sei de cor (muito graças à Suzana Ralha e aos Gambozinos, que os musicaram) são maioritariamente d’ O Inventão e d’O Pássaro da Cabeça. Eternamente grata ao Sr. Pina e ao seu amigo Álvaro Magalhães, a construírem campos de aviação dentro da minha cabeça, pelo menos desde 1981.
  1. Publicado pela primeira vez em 1994, com texto de Trish Cooke e desenhos de Helen Oxenbury, SO MUCH é simultaneamente um livro e uma música. À medida que viramos as páginas, vamos alternando entre um lentíssimo “estavam ali, sem fazer nada (…), sem fazerem mesmo nada…” e um “Quando, de repente… DING! DONG!” e surge um ritmo caribenho, cheio de beijos e colos e lutas e danças. À apoteose da festa e da birra, segue-se o maior dos calores. Recomendado a famílias nórdicas, TANTO, TANTO!, na versão portuguesa da GATAfunho, está esgotado há anos e tem fita-cola em cada página.
  1. , 9. e 10. Ao longos dos últimos 20 anos, tornaram-se cada vez mais frequentes os livros com cariz ecológico. Alguns valem a pena só pelas ilustrações, com páginas gigantes cheias de árvores, cogumelos, peixes, conchas ou abelhas. Entre os literários não-moralistas também não é fácil escolher. Fui obrigada a ler dezenas de vezes A Escavadora e a Flor (Joseph Kuefler, Editorial Bizâncio, 2018) perfeitamente apropriado a crianças obcecadas por veículos. A portuguesíssima editora Planeta Tangerina tem vários e valem todos a pena. Destaco dois: o Cem sementes que voaram, de Isabel Minhós Martins e Yara Kono, 2017, e O Livro dos Quintais, também de Isabel Minhós Martins e explosão de cor de Bernardo P. Carvalho, 2010. Poderão dizer-me que este último é mais sobre vizinhança mas, se não fosse o amor aos jardins e às hortas, queria ver se acabava tão bem como acaba. O meu preferido é talvez A Árvore da Escola, de Antonio Sandoval e Emilio Urberuaga, 2016, editado pela Kalandraka. É uma história de desobediência infantil, sobre o impulso de abraçar ramos fininhos como arame e com cientistas que se maravilham com o que não sabem. Tal como n’O Livro dos Quintais, há um gato preto que é preciso encontrar a cada página (mas que poderia facilmente ter sido um cão branco).
  1. Em 2012, Chris Haughton começou uma série de livros de filosofia e moral para crianças muito pequenas. O tema tinha tudo para dar errado, mas não deu. Em Oh não, Sebastião, publicado em Portugal pela Orfeu Negro, um cão tenta com todas as suas forças portar-se lindamente e não comer terra dos vasos, nem bolos inteiros, nem destruir a casa toda. Ohnãosebastião é também a palavra que passei a dizer diariamente, quando não me consigo governar a mim própria.
  2. Por fim, o mais recente e mais saudosista. Uma última carta, de Antonis Papatheodoulou, foi escrito originalmente em galego e publicado pela Kalandraka, em 2016, mas passa-se numa quente ilha grega, durante o último dia de trabalho do carteiro Sr. Kostas (ou Costas). Ao longo de 50 anos, levou boas e más notícias a todos os habitantes da ilha e, com essas palavras, ajudou a desenhá-los. É um livro sobre um tempo que já passou e sobre pequenas bondades intemporais. Se chegarem à última página sem o mínimo de embargo na voz, leiam o Olá, Farol!

 

Um dia destes, faço uma série sobre livros para pré-adolescentes (incluindo principalmente aqueles que parecem escritos para os pais). E em vez de me lamentar por todos os filmes de autor e séries premiadas que não vi e provavelmente não verei, irei escrever sobre episódios de desenhos animados com menos de 10 minutos. Se não conhecem a Bluey ou o Hey Duggey! não sabem o que perdem.

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