Fotografia de Anna Shvets para Pexels

Pode o Museu (ainda) ensinar alguma coisa?

Os museus estão na moda, ou para sermos mais corretos, está na moda falar-se sobre museus. Mas fala-se sobretudo porque, ultimamente, estes têm levantado questões que mexem com questões de identidade, com as tradições ou o património histórico de uma determinada nação, mas também porque podem gerar excedente, num contexto nacional específico muito dependente do turismo. Evidentemente que algumas questões levantadas são válidas, outras (infelizmente a maioria) pouco criteriosas e com falta de sentido crítico, pois, na realidade, o debate sobre estes temas assenta num forte desconhecimento no que diz respeito à história do Museu. As debilidades tornam-se ainda mais evidentes quando notamos que, equivocadamente, se confunde a análise histórica ao Museu com Museologia. A segunda pode de facto compreender também a evolução dos museus, mas é bem mais complexa, abarcando outros elementos. Seguindo o pensamento de André Desvallées, a Museologia é a ciência que estuda a relação específica entre os seres humanos e a realidade tendo como foco o Museu, não é, portanto, apenas determinada pela História, assim como também não depende necessariamente do trabalho prático no Museu. 

O parágrafo inicial é duro, provavelmente até injusto, pois grande parte do desconhecimento em relação ao Museu se deve também ao facto de se saber muito pouco sobre ele. Na verdade, até há relativamente pouco tempo, não existia uma obra completa sobre a história do Museu, refiro-me obviamente à obra de Krysztof Pomian: Le Musée, une histoire mondial, publicado em três tomos entre 2020 e 2022, pela conhecida editora francesa Gallimard que viria a vencer em 2023 o Prémio Europeu da História. Não é desculpa, mas talvez justifique alguma inércia investigativa, numa época de imediatismo, na qual cada vez se dedica menos tempo à pesquisa.

Um maior conhecimento do Museu provavelmente evitaria que este fosse colocado (pelos profissionais das Humanidades) juntamente com a Prisão, o Tribunal e até o Hospital enquanto espaços maiores da coerção do Estado moderno, onde se impunham ideias e se vigiavam os costumes. Contrastando, por exemplo, com a benevolência que se tem em relação à Universidade que, assim, continua a ser vista como um lugar de excelência, relevância, utilidade e até de inovação, conseguindo escapar a todas as críticas pós-modernas, acusando-se facilmente de ressabiamento, aqueles que a ousam questionar. No entanto, a história dos museus demonstra-nos precisamente o contrário, indicando-nos que estes foram durante vários séculos lugares de vanguarda e até de resistência perante uma Universidade dominada pela escolástica medieval que impunha dogmas e impedia o avanço da Ciência. Na verdade, durante praticamente quatro séculos os estudos realizados nos museus e nos seus antecessores (os gabinetes de curiosidades) produziam um conhecimento alternativo em relação ao produzido nas universidades, conhecimento esse que, no século XVIII, chegou inclusivamente a suplantar o das universidades no que diz respeito ao desenvolvimento da Ciência moderna.

Deste modo, falar de Museu é sobretudo falar de uma ideia de uma intencionalidade ou até de uma estratégia didática de entender o Mundo e a Humanidade através da materialidade. Desde sempre, a nossa espécie vinculou-se à matéria, criando e concebendo objetos, alguns de carácter utilitário, outros de carácter ritual, que foi preservando, guardando e passando de geração em geração. Este terá sido provavelmente o princípio que deu origem ao Museu, que no Ocidente se relacionou com a edificação do templo, de um lugar fechado e protegido, mas que em outras partes do mundo se manteve aberto, representado na própria natureza.

Ao longo dos séculos, primeiro com os antiquarii[1] e depois com os colecionadores iluministas, os objetos presentes nos gabinetes de curiosidades e mais tarde nos museus serviram como potenciadores para o desenvolvimento de várias disciplinas, sendo estes espaços locais de aprendizagem, investigação e experimentação. Vários autores têm apontado para a importância da criatividade científica baseada na acumulação aleatória de factos. Note-se que muitas disciplinas académicas tiveram origem em tentativas de encontrar uma lógica subjacente à organização de coleções públicas e privadas. Carolus Linnaeus (1707-1778), Johann Joachim Winckelmann (1717-1768) e Christian Thomsen (1788-1865) eram todos eles museólogos. Os seus princípios de classificação em botânica e zoologia (Linnaeus), escultura clássica grega e romana (Winckelmann) e pré-história europeia (Thomsen) continuam a ser largamente válidos ou, pelo menos, amplamente aplicados. Torna-se assim uma evidência histórica a ligação estreita entre o nascimento das Ciências e o Museu.

A Universidade livresca e teórica temia este interesse pela materialidade, por exemplo, o primeiro professor de História de Cambridge foi afastado em 1627, pois os seus comentários a Tácito foram considerados perigosos, por serem baseados no antiquarismo. Não fossem precisamente os antiquários e, provavelmente, ainda hoje continuávamos a seguir os modelos bíblicos de temporalidade e a acreditar que o planeta Terra teria surgido apenas há 4004 anos, segundo a proposta do arcebispo James Ussher (1581-1656) que, aliás, foi amplamente aceite pela maioria das universidades. A sua desconstrução viria a ocorrer precisamente por alguém ligado à cultura material, ao naturalismo e à experimentação: o autodidata escocês James Hutton (1726-1797).

Durante séculos, a teologia académica das universidades constituiu uma forte resistência às propostas naturalistas. Pelo contrário, as salas e museus de química e de física, onde se mostravam e recompilavam dados, objetos e se catalogavam variadas coleções de espécimes do mundo natural, impulsionaram o desenvolvimento científico e acabaram gradualmente por obrigar a Universidade a modernizar-se e, no caso das Faculdades de Ciências, a adotar, inclusivamente, os mesmos métodos e a transportar o conceito de laboratório do Museu para a Universidade. Mas o que aconteceu às Humanidades, que antes se articulavam com as Ciências, precisamente no Museu? 

Neste quadro, parece-me fundamental voltar a trazer as aulas para o Museu, testar, catalogar, desenhar, observar, conhecer fisicamente o objeto de estudo. Pomian, no livro já aqui mencionado, refere, na sua introdução, que o Museu habita num território incerto, pois não necessitamos propriamente dele para a nossa sobrevivência (ao contrário, por exemplo do Hospital), mas também não conseguimos viver sem ele, atrevo-me a ir mais além: tal como para os iluministas o Museu era vital para o desenvolvimento da Ciência, hoje é vital para a sobrevivência das Humanidades perante a mecânica da inteligência artificial e o crescimento universitário da teoria sem fundamentação prática e na realidade. 

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[1]  De acordo com Arnaldo Momigliano, a palavra antiquário (antiquarius em latim) já teria o seu uso na Idade Média, particularmente na península itálica, para identificar alguém que se interessava por investigar o antigo. Contudo, como se sabe, torna-se sobretudo comum a partir do Renascimento. Inicialmente os antiquários estavam muito centrados em Roma, e nos estudos clássicos, mas rapidamente, no século XVI, foram-se expandindo por todo o continente europeu, existindo sociedades de antiquários desde Portugal à Suécia. Estes estudavam a antiguidade (o passado) através dos seus vestígios materiais bem como através dos vestígios escritos. Este era o método para o estudo da História que se manteria estável desde o século XV até ao século XVIII quando o Iluminismo “impôs” um método científico e acabou por separar esta proposta de estudo em duas especialidades: os historiadores (dedicados ao estudo das fontes escritas) e os arqueólogos (dedicados ao estudo das fontes materiais). Na China, no século X, o jinshi xue também poderia ser considerado um movimento semelhante ao antiquarismo.

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