Por palmas, quem é que daqui vive num mundo pós-fictício?

Entre os pensamentos lançados pelo humorista Jack Handey em Deep Thoughts, a sua obra popularizada nos intervalos dos sketches do Saturday Night Live, destaca-se o seguinte clássico:

 

“Qualquer homem, na situação certa, é capaz de matar. Mas nem todo o homem é capaz de ser um bom campista. Portanto, matar e acampar não são coisas tão semelhantes como se possa imaginar.”

 

Não sei ao certo quantos quartos de hora tenho passado a pensar nisto, e já nem sequer consigo dizer se percebo a dedução de Handey. À primeira vista, parece lógico entender que a piada está no seu final: o autor aposta na inversão, criando um mundo fictício feito de pessoas que levam a sua vida sem questionar o axioma de que matar e acampar são acções idênticas, ignorando tudo o que possa significar a sua clara oposição. Porém, no nosso mundo, para quem queira tentar defendê-lo, o argumento de que matar e acampar são coisas muito semelhantes implicará hoje o mesmo grau de dificuldade de conseguir convencer alguém a guardar dinheiro dentro dos livros. Por certo, matar e acampar são coisas tão diferentes que jurar sob “palavra de escuta” não tem sustentação legal. Deste modo, o epílogo do humorista norte-americano tem o condão de traçar simetrias, ainda que estas possam ser invisíveis, ridículas ou praticamente inexistentes:

 

  1. em ambas, o sucesso depende da escolha do melhor local;
  2. em ambas, pessoas aproximar-se-ão da sua natureza;
  3. em ambas, é importante que no fim tudo fique aparentemente como estava antes, sem vestígios de passagem.

 

Indo mais a fundo, Handey admite que matar é uma faculdade ao dispor de qualquer um. Tal é tratado como uma relação estabelecida entre factores bióticos e cuja concretização se encontra pendente de um alinhamento que perfaça uma situação certa, com a devida licença do momento, seja ele mais ou menos excepcional: envenenar um assaltante que nos entre pela casa dentro, dar um tiro a uma melga que se passeie pelo quarto, sacrificar uma sogra, esborrachar um bode. No entanto, em parte, por só o podermos executar na situação certa, essa escolha não se mostra disponível sempre que um homem quiser, sendo que é o próprio que se disponibiliza perante a chance de representar o herói de ocasião. Para isso, segundo Handey, basta existir e aguardar, mesmo que sem saber ao certo quando poderá chegar esse momento.

Por outro lado, ser um bom campista apresenta-se como uma verdadeira escolha, uma decisão autónoma, um luxo tão desnecessário à nossa sobrevivência que serve apenas para distinguir quais dos homens capazes de matar são também capazes de se sujeitar à extrema influência dos factores abióticos: a luz, a chuva, o vento, a temperatura, a humidade, o solo, a pressão. Assim sendo, e perante uma racionalidade assente numa prática que levará à perfeição, a única exigência dessa iniciativa é a sua repetição obstinada: ser um bom campista implica ter acampado um sem-número de vezes, algumas delas sem repelente de insectos, outras sem sombra nas horas de maior calor. Ao trilhar esse caminho, encontrar-se-ão alguns bons campistas com dezenas de anos e centenas de histórias para partilhar, outros campistas que aproveitam as fogueiras dos primeiros, e ainda uns tantos que se julgam bons campistas desde o segundo em que compraram um kit. Para quem procura por referências, saber identificar estes tipos torna-se no foco da seguinte análise combinatória: de quantas maneiras diferentes pode um campista dominar a arte num festival empoeirado, distinguindo-se dos empoeirados inábeis, arrimados no campismo de um parque Orbitur?

 

No recente documentário sobre os quarenta anos d’ O Tal Canal, Herman José conta como, na altura, a sua excitação gordalhufa destruía adereços de valor incalculável  sem demonstrar grande preocupação pelo prejuízo causado à RTP. As valiosas camas, móveis e candeeiros, escangalhados por personagens como Marilú e o menino Nelito, representavam um caos nietzschiano que provocava um profundo riso do público, feliz nesse presente, uma dádiva que permitia esquecer por completo um passado com pouca ou nenhuma graça. No testemunho de Herman, o humorista imbuía-se de um espírito de missão: ele “partia o que tivesse de partir” e as angústias de tal improviso ficariam para os responsáveis de produção. Era o momento certo – a situação certa – para matar o antigo ideário nacional e dar primazia à criatividade e à “liberdade não panfletária”; ao mesmo tempo, ali estava alguém capaz de se alojar nas células de um corpo novo e de por lá ficar durante décadas, reproduzindo-se estaminalmente e criando uma linhagem de descendentes celulares diferenciados até aos dias de hoje. Agora, ao bom campista, parece ter chegado o tempo de receber as suas flores, hoje tão unânimes que condecoradas por quem outrora as censurou.

 

Não sendo uma observação cativante, o humor em Portugal foi crescendo como uma marca fundamentalmente alterada através de vários rótulos de relações, compromissos e influências. Desse modo, conclui-se que o mesmo não é passível de salvar ou de arruinar um povo porque nunca conseguiremos saber o efeito de tantos contributos e correcções. Não obstante, se olharmos para o crescente interesse do público pelos códigos e estruturas do humorismo, é evidente que o seu actual estado de graça é, em grande parte, resultado das obras dos seus bons campistas. Assentes numa fidelidade rara que se alimenta de nostalgia e de um sentimento de comunidade, os espectadores apanham todas as referências e sabem que, por regra, neste universo não paira apenas uma pergunta, mas sim três: duas perguntas contundentes que definem a nossa realidade, e uma última que subverte quaisquer que sejam as respostas às perguntas anteriores.

São os protagonistas destes fenómenos irrepetíveis, até então do tempo da produção fictícia e da difusão em massa, que têm posto a sua fiabilidade paralitúrgica ao serviço de anos e anos de entrevistas onde explicam como o riso é uma condição colectiva para uma sociedade mais saudável, como o humor nos poupa ao desgaste exigido pela dor, como a comicidade “disto” é sempre o melhor dos lados. Se tudo isto é verdade? Provavelmente sim. Se tudo isto é uma panaceia? Provavelmente não tanto, dado que tudo estará mais próximo de um paracetamol. Se tudo isto é também um processo ufano de sacralização do humor que, se elevado a truísmo, corre o risco de pôr fim a um fascínio que se quer rebelde e que bem dispensava sentir as pressões exorcizantes que vêm a reboque de uma suposta predisposição superlativa? Uhh, I prefer not to speak; if I speak I’m in big trouble… and I don’t want to be in big trouble.

 

Como membro da geração mais qualificada de sempre – e que por isso sei que “geração mais qualificada de sempre” é o cognome mais irónico desde D. Sebastião, o Desejado –, interpreto com um grão de sal qualquer elogio que não se deixe combater. Nos últimos anos, a nova geração de humoristas, enquadrada na jurisdição do digital, tem sido caracterizada como um grupo de humoristas-marketers. O conceito abrange os que dominam todas as estratégias de optimização de métricas de redes sociais (número de impressões, interacção média por publicação, dados demográficos agregados por fuso horário dos países elegíveis para se ir de Erasmus), e elogia a polivalência exigida a um criador de conteúdos humorísticos, concentrando-se a responsabilidade de uma só pessoa – ou  de uma pequena equipa – de produzir, editar e divulgar algo que se quererá notável, actual e partilhado em todas as plataformas.

 

De facto, esta nova postura profissional na gestão de uma conta verificada demonstra um planeamento de carreira que anteriormente o humor se gabava de desprezar. Daí que o mesmo elogio não deixe de conter uma crítica encapotada. De certa forma, mesmo que inadvertida, existe uma tentativa de redução da espontaneidade do trabalho artístico do humorista a um mero calculismo orientado pela ditadura dos números. O problema com essa rasteira é a transformação do humorista num cientista de dados que se cinge a identificar os tópicos relevantes, cruzá-los com o seu modelo preditivo e padronizá-los com a colectânea de alusões à pop culture do seu estrato. Ora, se esta crítica fosse justa, então a mesma teria de ser alargada a todas as gerações anteriores, dado que as mesmas funcionaram exactamente da mesma forma. Porém, nunca se disse que Herman José era um humorista-marketer por ter adaptado o sketch de A Última Ceia em 1996 – cuja versão original passara na Rádio Comercial no ano anterior – para “caber” em televisão; nem nunca se disse que os Gato Fedorento só queriam saber das audiências televisivas por a dado momento se terem recusado a competir no horário dos Morangos com Açúcar. Ainda assim, um dos maiores triunfos do humor é o de tornar mais fácil subsistir com um público específico e estabelecer um nicho onde se possa finalmente assumir que ninguém é para todos e não precisa de o ser. Em simultâneo, uma das maiores derrotas do humor é a de tornar ainda mais fácil entender que a oferta no mercado é tão elevada que a única esperança reside em esperar que gente entendida como Phyllis Diller tenha razão quando dizia “There will never be enough comedy; it is always at a premium”.

 

Caso nunca haja comédia suficiente, precisaremos sempre da entrada de novos, bons campistas. Por cá, as últimas colheitas revelam que a unanimidade sentida nos anteriores vultos poderá não ser atingida, mas garantem-nos que o muito que se tem lançado está tão longe de ser anódino, como perto de se encaminhar para uma situação certa. Sem grandes booms, obedecendo à lógica de afeição pelos seus respectivos nichos, os humoristas utilizam o humor como uma ferramenta multiusos, articulando-se numa espécie de resistente tenaz, tão capaz de apertar, como de estender, cravar, cortar, torcer ou distorcer a relação com a sua plateia. Nesse sentido de proximidade, esta é a primeira geração em que se nota que os humoristas nunca saíram da audiência, partilhando com ela as mesmas preocupações. São exemplos disso Red Flag, o mais recente solo de Manuel Cardoso, que confirmou ser capaz de entregar as diáforas e a polissemia dos seus textos de humor de observação, tal e qual como o faz nos seus guiões e crónicas de jornais; os reels de Luana do Bem na sua página de Instagram, oriundos da sua participação no programa Irritações, que viralizam pontos de vista que invariavelmente relembram o dito de Jonathan Swift (“está bem observado, digo eu quando leio de um autor uma passagem em que a opinião dele concorda com a minha”); ou as séries auto-referenciais de Carlos Coutinho Vilhena, e também a mais recente de Guilherme Geirinhas, que permitem entender melhor uma geração que se vê numa macro-narrativa onde existir é um problema constante, recorrendo ao humor sarcástico e desapegado para lidar com os anseios dos momentos que vão acontecendo entre um ontem que é passado e um amanhã que não chega.

 

Conclui-se, então, uma quarta simetria no pensamento de Handey:

  1. em ambas, a tarefa é muito mais complicada para quem ainda não sabe usar a internet.

 

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