Fotografia de Suzy Hazelwood

Prostituição de rua e casas de toleradas

A 9 de Maio de 1947, o capitão Eurico de Castro Zuzarte concluiu o seu relatório sobre a circulação de prostitutas na cidade de Lisboa[1]. Fizera-o na sua qualidade de inspector dos Serviços de Fiscalização do Secretariado Nacional de Informação e Cultura Popular. À testa deste último organismo permanecia António Ferro, também ele interessado no assunto. Na base do relatório, estavam queixas apresentadas por diferentes tipos de comerciantes, proprietários e inquilinos. Da Rua da Glória à Baixa, muitos eram os que se sentiam prejudicados pela presença de prostitutas, nas ruas, prédios ou nas imediações dos seus estabelecimentos. Contudo, o propósito não era acabar com a prostituição. O que se impunha era pôr fim à exibição das prostitutas pelas ruas, tendo em vista defender o bom nome da cidade, numa altura em que se multiplicavam as preocupações em atrair turistas. A Baixa parecia ser a principal área a controlar, mas a presença das prostitutas fazia-se sentir em todos os bairros mais frequentados, “já sem respeito de horas ou quaisquer conveniências”. Lisboa, de um modo geral, tinha “as suas ruas, em especial as principais, infestadas de prostitutas”[2].

A denúncia, fundada numa moral das aparências e do parece bem, reproduzia uma espécie de medo ancestral, que tinha mais de um século. Mas pode ser lida como uma etnografia da prostituição de Lisboa feita na perspectiva normalizadora do Estado Novo. Já em 1841 se classificavam as prostitutas que vagabundeavam pelas ruas, em oposição àquelas que se encontravam recolhidas e mantinham uma vida discreta[3]. Igualmente, em 1864, para resolver o problema das prostitutas de rua, associadas às casas de passe, defendia-se as casas de toleradas – devidamente licenciadas pelas autoridades e onde residiam as “raparigas apatroadas”[4].

Segundo o capitão Zuzarte, seria melhor seguir os exemplos de Casablanca ou Badajoz, onde a prostituição estava confinada a um único bairro. Um confinamento que se impunha nas vésperas de Lisboa vir a ser palco das Festas Centenárias, para as quais se esperavam milhares de estrangeiros. As outras medidas propostas pelo capitão passavam por: impor pesadas licenças às casas de passe ou de pouca permanência (que considerava mais recentes e distintas das antigas casas de toleradas); organizar uma fiscalização por pessoal idóneo, digno e bem pago; e aplicar uma pesada multa a todos os que por palavras ou gestos pudessem ofender as mulheres, na assunção de que as prostitutas estavam por todo o lado.

            Observador no terreno, Zuzarte contou 47 prostitutas pelas ruas de Lisboa, ao passear desde a Avenida Fontes Pereira de Melo e Rua da Assunção, percorrendo a Rodrigues Sampaio e a Eugénio dos Santos. Ao falar com estrangeiros que qualificou de categoria, mais gente marítima, ficou impressionado por os mesmos considerarem que Lisboa era o único porto em que o comércio de mulheres era exercido à vontade pelas ruas. Ainda por cima, era frequente que as mulheres desafiassem os homens, metendo-se com eles, puxando-os pelo casaco ou apalpando-os.

Um dia, pelas três da manhã, na Rua Augusta, Zuzarte assistiu a um cadete a ser atacado por quatro mulheres que o cercaram; sem conseguirem o que pretendiam, acabaram por lhe pedir dinheiro, para um café ou uma cerveja; uma cena considerada um vexame para o brio de português, ostentado pelo capitão. 

            É que as prostitutas suscitavam frequentes conflitos e cenas indecorosas, na sua prática de caça ao homem, que não podiam ser objecto de controlo, pois não se podia colocar um polícia ao lado de cada delinquente. Zuzarte reconhecia, assim, que o Estado não podia dispor de um aparato policial que controlasse tudo e todos, logo, teria de se recorrer a outros instrumentos de regulação e fiscalização que impusessem a ordem. Pior que tudo era que muitos homens se tinham habituado ao trato com as prostitutas, acabando por sujeitar mulheres, que nada tinham a ver com a prostituição, à sua curiosidade de gabirus, bem como a “chufas indecentes”, com propostas que seria indecoroso escrever no próprio relatório.

            Para ilustrar o modo como a Baixa estava a ser invadida por prostitutas, Zuzarte multiplicou, no seu relatório, os dados factuais. Certa noite, à 1.20, na Rua Augusta entre o Rossio e S. Nicolau, constatou a presença de 32 mulheres, que beneficiavam de uma espécie de trânsito livre, a partir da uma da manhã. Tratava-se de um cenário lamentável que, em sua opinião, não se via há quarenta anos. Claro que havia meretrizes sujeitas à fiscalização policial, com uma “patroa” a dirigir a casa e impondo a sua disciplina, mas estas viviam em casas próprias e só ali exerciam o seu triste mister. Estas casas de toleradas vieram mesmo a ser proibidas de exibir qualquer sinal exterior que as pudesse identificar, mas tal não obstava a que continuassem a ter freguesia certa. O que Zuzarte mais elogiava neste modelo era o facto de corresponder a uma prática de prostituição recolhida e controlada, que não se confundia com a situação aberrante e escandalosa que se passava bem à sua frente.

            Por que razão não se voltava, então, a recuperar o modelo da prostituição discreta e recolhida? Perguntou Zuzarte. As casas de toleradas discretas, de onde as prostitutas só podiam sair uma vez por semana, no seu dia de folga, mais as saídas diárias de uma ou duas horas, em casos que a “patroa” julgasse justificáveis, estavam no centro desse modelo, indissociável de referências morais e de uma obsessão pelo controlo. A vantagem estava em sujeitar as prostitutas ao olhar da patroa – concebida como uma espécie de colaboradora da polícia – na certeza de que as mesmas mulheres se portavam, regra geral, bem fora da casa que lhes dava abrigo; sabendo-se, ainda, de antemão que a patroa seria inflexível, se elas praticassem o seu mister por fora, o que implicaria prejudicar o seu próprio interesse.

Com base nesse modelo de recato e vigilância, por submissão à patroa-colaboradora, Zuzarte descreveu uma espécie de tipo-ideal da prostituta. Primeiro, começava por trabalhar na rua, depois, quando começavam as dificuldades, recolhia-se a uma casa de toleradas. Nesta última, usufruía de mesa, aliás, bem substancial, e quarto, mais 50% da receita cobrada pelos serviços, pertencendo outro tanto à patroa. Esta situação, quase ideal, era contrariada pelos adiantamentos feitos às prostitutas ou dívidas por elas contraídas. Por exemplo, para pagar uns vestidos a prestações, a patroa acabava, quase sempre, por guardar a parte de leão das receitas, ficando a mulher impedida de sair de casa até conseguir pagar as suas dívidas.     

O modelo da prostuição de rua, bem como o seu alastramento, incluindo a existência de situações de clandestinidade, que escapavam ao controlo policial, correspondera, segundo Zuzarte, à instituição das casas de passe. Isto é, foi quando estas se instituíram e passaram a pagar licenças e contribuições pelo aluguer de “quartos para visita” ou “pouca permanência”, que se multiplicaram, em número considerado incalculável, por toda a Lisboa, as prostitutas de rua. Sendo uns legais, outros clandestinos, numa gama de quartos pobres, modestos, regulares e de luxo. Por exemplo, estes últimos eram mobilados em estilo rigoroso, dispondo de casa de banho privativa, “apartement” e permitindo escolher a mulher por catálogo fotográfico. Os preços praticados no aluguer dos quartos oscilavam entre uns míseros 2$50 e os 80$00, sendo 10$00 o preço normal. Acrescentando-se que qualquer casal que lhes batesse à porta seria bem recebido, “só havendo alguma hesitação quando a fêmea tem marcado o aspecto de menor”. O pormenor não era um dado neutro, uma vez que revelava não só consciência clara acerca da pedofilia e abuso de menores, mas também um modo de associar à prostituição de rua, com os seus modos de escapar ao controlo policial, a responsabilidade por tais práticas.

Teria sido através da difusão dessa prática de aluguer de quartos que tudo teria começado a mudar. A mulher passou a procurar o seu cliente na rua e a levá-lo para as casas de passe. A ponto de aquelas que ainda esperavam o cliente discretamente em casa, ao fim de duas ou três horas sem cliente, acabavam por ir dar uma voltinha a ver se tinham sorte. A ajudar à festa da prostituição de rua, estiveram, ainda, alguns comerciantes pouco escrupulosos que viram na frequência das suas casas pelas prostitutas um modo de aumentar os consumos. Foi o que sucedeu em leitarias, casas de chá, pastelarias e restaurantes que se converteram em agências de prostitutas.

Dobrado de etnógrafo, o capitão Zuzarte reconstituiu a linguagem utilizada da prostituta de rua que vagueava para “engatar um”, para depois o receber ou ir “fazer o cabrito” na referida casa de passe. A repressão da polícia que as multava e levava para a esquadra afigurava-se inútil. Impondo-se, isso sim, atacar o caso das ruas de Lisboa pejadas de prostitutas: nos seus “poisos” ou estabelecimentos comerciais, pelas ruas onde vagueavam e nas casas de passe.

Zuzarte propôs, então, uma série de medidas concretas contra as casas de passe e as suas implicações. Primeiro, as mulheres não podiam andar pelos referidos poisos desacompanhadas de um homem sério, sob o risco de os proprietários serem multados ou mesmo verem os seus estabelecimentos encerrados por um curto prazo. O encerramento era, aliás, considerado justo, pelo facto de estar em causa “uma actividade bem contra a economia moral da Nação”.

Depois de cinco dias, durante os quais as prostitutas nos seus poisos seriam postas a par da vigilância pessoal, passar-se-ia a prender qualquer prostituta que vagueasse pelas ruas de Lisboa. Ficariam presas de 3 a 15 dias, consoante o grau de reincidência, e numa quarta vez seriam remetidas para uma casa de correcção.

Para efeitos de “saneamento social e de prestígio do bom nome da nossa moral”, retirar-se-iam as licenças às casas de passe.  Esta era a medida mais radical, destinada a impedir que a casa de passe fomentasse, propagasse e incitasse à prostituição (por vezes admitindo um homem acompanhado de duas mulheres) e suscitasse a prostituição clandestina. Mas a principal solução estava em recuperar o antigo modelo das casas de toleradas, responsabilizando a patroa “que só poderia permitir o exercício da prostituição às mulheres que fizessem parte do cadastro da sua casa”. Impedindo, com multas coercivas, que as casas de toleradas admitissem desconhecidas e funcionassem como casas de passe.  Só através deste conjunto de medidas se acabaria com a prostituição de rua, levando a que as mulheres que atacavam em público buscassem meios honestos de ganhar a vida ou, então, que se acolhessem às casas de toleradas. É que, pelos menos estas últimas, embora pudessem ser alvo de censura à luz da boa moral, sempre eram palco de uma vida “suportável”.

Como já é possível de constatar, o relatório do capitão Zuzarte apresenta-se como uma mina de informações. À sua volta, foram chamadas a pronunciar-se outras figuras do Estado Novo, como o próprio António Ferro. Neste sentido, trata-se de um documento – mais um – com base no qual será possível abrir uma brecha na compreensão demasiado centrada nos domínios da alta política e das instâncias oficiais do salazarismo. Como outrora muitos inquisidores, Zuzarte também foi obrigado a dobrar-se de etnógrafo e, sem nunca sair do seu papel meio-policial, meio-reformador, recolheu uma informação única sobre Lisboa vista a partir do seu amplo mercado da prostituição.

O olhar parcial de Zuzarte, assumidamente exterior a esse mercado, não é diferente daquele que Eduardo Malta apresentara duas décadas antes, num livro com pretensões literárias, no qual descreveu a ida às putas de um grupo de jovens escritores e artistas (No Mundo dos Homens, 1937). Em ambos os casos, adopta-se, como ponto de vista, um único ângulo: o do reformador e zelador da ordem pública (no caso de Zuzarte); ou o da boémia dos jovens intelectuais (no livro de Malta). O olhar das prostitutas, os seus itinerários e os condicionalismos em que trabalhavam só muito marginalmente são referidos por Zuzarte – a respeito do ciclo da dívida e, logo, da escravização pelas patroas a que ficavam sujeitas as mulheres das casas de toleradas, bem como o modo, tão despudorado quanto desesperado, com que as prostitutas de rua atacavam os homens em público, nem que fosse por uma cerveja ou um café.

Acerca de uma etnografia que, de tão parcial e limitada, nunca chega a penetrar no mundo dos que sofrem ou são vítimas de abjectas injustiças, e se reduz a reconstituir a perspectiva de intermediários e testemunhas, Mario Vargas Llosa escreveu uma lúcida página (Historia secreta de um romance, trad. António José Massano, Dom Quixote, 2002, p. 65). É que também ele compreendeu que – pelo menos do ponto de vista literário – existiam limites para penetrar nos submundos dos desclassificados e do sofrimento. Estes tanto podiam ser os da Casa Verde ou das prostitutas de Piura, dos mundos mafiosos e extremamente violentos de exploração da borracha, ou o das irmãs da caridade católica que procuravam com boas intenções, nos confins da Amazónia peruana, educar as raparigas, mas acabavam apenas por favorecer o processo da sua destribalização, enviando-as sem querer para as cidades, como criadas de servir ou prostitutas. 

O capitão Zuzarte registou, ainda, os principais poisos ou estabelecimentos comerciais onde paravam as prostitutas de rua. Esclareceu que a polícia já dispunha do registo das diferentes casas de passe. Assim, no que respeitava aos poisos não era só a Baixa a estar contaminada ou infestada de prostitutas. Eles espalhavam-se pelas grandes avenidas da capital: Almirante Reis, Duque de Loulé, Fontes Pereira de Melo, Liberdade e Praça Marquês de Pombal; Bairro Camões, Bairro Alto, São Pedro de Alcântara, Rua da Glória e adjacências, o Conde Barão e São Paulo, o Cais do Sodré, a Mouraria, etc.

Na Rua dos Correeiros, havia uma casa de toleradas com tabuinhas verdes nas janelas, onde as mulheres não vinham à rua. Em comparação, passaram a existir quatro casas de passe, com movimento permanente de mulheres na rua, a dar à volta pela Baixa em busca de clientes. Esta circulação prejudicava as actividades comerciais e industriais da área, nomeadamente os hotéis Duas Nações, Francfort, Pensão Leiriense, que eram os de maior nomeada, mas também todos os hotéis, pensões e casas de hóspedes da Baixa. As famílias chegadas a Lisboa tinham vergonha de se instalar em tais hotéis.

Muitas vezes, os polícias encurralavam as prostitutas nas casas de passe, pretendendo prendê-las para as multarem. Mas elas próprias ali se refugiavam e, quando os guardas viravam as costas, voltavam a ir para a rua. Na Rua do Crucifixo, existia um dos maiores poisos na Antiga Vacaria Áurea. Nela, era tão grande a frequência das prostitutas que Zuzarte, uma vez, contou lá dentro 45, que acamaradavam com marítimos, operários, pequenos empregados e muita chularia. A maioria das mulheres que frequentavam tal poiso tinham frequentado uma casa de passe que fora fechada pelo advogado Herlander Ribeiro, cujo escritório funcionava no mesmo prédio. As mesmas prostitutas passaram a ir em cortejo seguidas pelos seus clientes a outras casas de passe situadas noutras ruas da Baixa.

Mas o maior poiso de Lisboa parecia ser a Leitaria Globo, na Rua dos Condes. Assim sucedia desde o encerramento para obras da Chic, ao lado da futura sede do SNI. O seu horário era bem revelador, porque só fechava entre as 6 e as 7 da manhã. Uma vez, logo pela manhã, Zuzarte contou 52 mulheres e, num outro dia, pelas 11 da noite, 107. O mais escandaloso era o trânsito que tinham de fazer, atravessando a Avenida da Liberdade para a Rua da Glória e imediações, bem como para o Jardim do Regedor, Eugénio dos Santos, etc.

No Rossio, no pequeno poiso que era a leitaria do n.º 75, era comum haver prostitutas disfarçadas de senhoras que vinham às compras. O mesmo sucedia pelas paragens dos eléctricos, onde esperavam pelo cliente. O mesmo sucedia na Rua da Madalena, onde o poiso era a cervejaria Boémia. Outros poisos existiam, incluindo na Confeitaria Nacional e na Confeitaria Aliança, esta na Rua 1.º de Dezembro, ambas frequentadas por mulheres que se apresentavam com um certo luxo. Na Praça dos Restauradores, a Taverna Imperial era outro dos poisos de “prostitutas de boa apresentação que fazem carreira de preferência para a Zita na Rua do Regedor e para a Luísa Miranda na Rua Eugénio Santos de fronte da Arcádia”. Na Avenida da Liberdade, contavam-se a Pastelaria Baiana e a Leitaria Pomarense. No Parque Mayer, assinalava-se o Vitória Bar. Na Rua da Glória, para a qual havia um rodopio permanente entre as 16.00 e as 7 da manhã, havia casas de toleradas, casas de passe e o principal poiso estava no Lusitânia Bar.

Sem preocupações de esgotar todas as referências aos sítios onde se encontravam prostitutas, Zuzarte descreveu os locais em torno da Praça Marquês de Pombal. As prostitutas deambulavam por ali e no início da Avenida Fontes Pereira de Melo, a partir das 23.00. Estavam em grupos de duas a seis, na esquina da Fontes Pereira de Melo com a Rua Camilo Castelo Branco, tendo como poisos certos as leitarias Liz e Silex Bar, na Rua Rodrigues Sampaio. Já na esquina da Fontes Pereira de Melo com a Avenida António Augusto Aguiar, entre a 1.00 e as 3.00 da madrugada, notava-se a presença de prostitutas muito bem vestidas que serviam clientes de automóvel. Havia, ainda, outras leitarias e casas de passe que Zuzarte elencou nas ruas Gomes Freire, Gonçalves Crespo, bem como os grandes poisos do Cais do Sodré. A respeito deste último, sublinhou, “por estas imediações, desde o anoitecer, o circular numeroso e muito ordinário mulherio assume o aspecto de praga”.

Zuzarte passou em claro a informação precisa de que dispunha sobre poisos, casas de passe e de toleradas na Mouraria, Rua da Palma, Almirante Reis, Alcântara, Bairro Alto, S. Pedro Alcântara, Conde Barão, Rua da Graça e imediações. A razão para tal omissão no relatório prendeu-se com o facto de ter recebido ordem para proceder à entrega imediata dessa informação. Já em locais como os “dancings”, a razão para sua exclusão era outra: no seu entender, eles preenchiam funções que não deveriam ser postas em causa. Funcionavam como “centros de variedades artísticas e, se prostitutas por lá vão, têm muita clientela, incluindo do sexo feminino, que lá vai pelo simples prazer coreográgico e distrair-se com a música e apreciação dos artistas, casas que têm a sua função própria na vida noturna duma cidade cosmopolita como já é a nossa Lisboa”. Isto é, os dancings faziam parte de uma cultura nocturna que se queria cosmopolita, correspondiam a uma procura artística (coreográfica e musical), além de proporcionarem aos homens e mulheres (cujos prazeres se julgava terem de ser satisfeitos e que podiam frequentar tais centros) um contacto com prostitutas. 

Com base no resumo das informações do Capitão Eurico Zuzarte, um indiscutível colaborador do regime de Salazar, será possível retirar algumas conclusões. Em todas elas, há uma preocupação sociológica que José Machado Pais formulou, a respeito de uma história da prostituição, mas para um período anterior: “em que medida os submundos de uma sociedade permitirão chegar a um melhor entendimento das suas estruturas?”[5].

A primeira e mais evidente conclusão é a de que uma ordem social, concebida a partir das famílias e da moral católica de santificação da mulher – cujas raízes recuavam  aos “projectos de regulamentação da prostituição propostos por burgueses conservadores e moralistas”, desde a segunda metade do século XIX”[6] – se articulava com o mercado da prostituição, desde que este não estivesse presente nas ruas e fosse exibido de modo escandaloso. Desde que, também, se evitassem as sobreposições, como por exemplo todos os que frequentavam as casas de passe ou de pouca permanência não contribuíssem para “cenas de amoralidade e o completo desrespeito por todos e tudo, sem a menor atenção por senhoras, mesmo da maior honorabilidade” (como se dizia num outro documento do Secretariado, anexo ao parecer).  Ou seja, a adesão ao salazarismo não implicava excluir do seu horizonte o mercado da prostituição. Família e prostitutas, longe de se excluírem mutuamente, coexistiam desde que estas últimas fossem mantidas de forma discreta, confinadas às suas casas e, se possível, a um único bairro. E, ainda, desde que os seus clientes mantivessem a sua duplicidade, de maneira bem hipócrita. Na linguagem do já referido sociólogo, Machado Pais, o relatório de Zuzarte confirma a ideia de um esbatimento das fronteiras que separavam “a Lisboa boémia da Lisboa respeitável”[7]

Aliás – a ter em conta o esbater dessas fronteiras entre a Lisboa da boémia e a do respeitinho pela ordem e as aparências, num quadro caracterizado pela duplicidade e uma certa permissividade –, é mais difícil reconhecer a existência de relações de homologia entre a prostituta e o vadio-mendigo, como sugeriu Susana Trovão. É que, à luz do relatório de Zuzarte, só a custo se podem retirar dessas relações de homologia conclusões acerca do “‘estado de perigosidade social’, enquanto alteridade poluente, nódoa e chaga do corpo social” que o salazarismo atribuía tanto aos vadios como às prostitutas, em especial às clandestinas[8]. Preferível, porque mais pertinente, será considerar o que a socióloga Inês Brasão escreveu acerca da moral do Estado Novo a respeito do sexo e do corpo, nomeadamente o da mulher, pois nele existem traços de uma evidente duplicidade: “o quadro moral restritivo sobre o sexo mantém-se, considerando-o uma dimensão sagrada, embora tolere os prazeres silenciosos e silenciados. A outra ideia está relacionada com a imagem da prostituta: ela é tolerada mas apenas nas franjas do indizível, dos risos e das vergonhas caladas, dos trunfos de uma juventude ansiosa. O seu nome é proibido, aquilo que o seu corpo pode dar é proibido, mas é, ao mesmo tempo, acessível, demasiado acessível para um poder capaz de chegar à devassa da privacidade das pessoas se estas se revelassem contrárias ao ‘espírito’ do Governo”[9].     

Em segundo lugar, o modo de conceber o mercado da prostituição passava pela sua regulação. Esta era concebida, por um lado, como um projecto de confinar as prostitutas num único bairro, com o objectivo de fazer com que não se exibissem, nem infestassem as ruas de Lisboa, mantendo-se assim a imagem de uma cidade cosmopolita. Por outro lado, a mesma regulação dependia do papel controlador e de vigilância exercido pelas patroas das casas de toleradas, que se responsabilizariam por retirar as prostitutas das ruas, com o único senão de controlarem as suas subordinadas em excesso, mantendo-as endividadas.

O quadro desenhado por Zuzarte das prostitutas “apatroadas” e registadas pela polícia afigura-se bem mais positivo e integrador do que as outras representações da anormalidade das mesmas prostitutas propostas, pela mesma altura pelo médico Alfredo Tovar de Lemos. Escreveu este último – com igual consciência de que os resultados da exploração a que as prostitutas estavam sujeitas pelas patroas eram os mesmos que os apontados por Zuzarte – recorrendo a uma linguagem da biopolítica centrada na separação entre o normal e o anormal: “As mulheres que se entregam a esta vida, está provado em trabalhos científicos, são em grande número anormais sob o ponto de vista psíquico, atrasadas, e, dada a insuficiência da sua instrução e educação, raras são as capazes de se governarem por si sós. São na maioria boçais, rudes e inexperientes. Daí o procurarem as facilidades que a casa de toleradas lhes dá quanto aos problemas da vida diária, habitação, alimentação, vestuário, etc., não obstante ficarem sempre prejudicadas pela exploração de que são vítimas”[10].

A relação existente entre criada e prostituta era alvo de outros tratamentos, sobretudo, em meios católicos. Por exemplo, em 1936, a Associação Católica Internacional para Obras de Protecção às Raparigas, que funcionava no âmbito da Junta Diocesana de Lisboa, estimava que 85% das prostitutas tinham sido criadas de servir “caídas em desgraça”. No juízo que se fazia, considerava-se também que andavam as raparigas expostas em permanente risco de se perderem, em parte, devido ao facto de as suas colocações não serem estáveis. De qualquer modo, a necessidade de criação de uma escola profissional com apoios do Estado, para formação de criadas, impunha-se para resolver o seguinte problema que se constatara nos anos anteriores: dos 239 pedidos de criadas por parte de senhoras, tinham-se oferecido 1334 raparigas, mas destas só 603, ou seja, menos de metade, tinham sido colocadas, “por falta de habilitações ou por serem pouco recomendáveis moralmente”[11]

Em terceiro lugar, destaca-se todo um sistema classificatório, que se dispunha de forma hierárquica, o qual era utilizado para traçar a história das mudanças no mercado da prostituição lisboeta[12]. Neste sentido, há que reparar: no contraste entre mercado lícito, controlado pela polícia, e clandestino que se admitia estar em expansão; nas diferenças criadas por prostitutas de luxo ou bem vestidas e dos seus clientes quando surgiam ao volante dos seus carros; bem como na tipologia dos locais frequentados por prostitutas, os quais se encontravam divididos entre casas de toleradas, casas de passe (que ficavam na mira do ataque de Zuzarte) e os poisos, constituídos por bares, cafés, casas de chá, restaurantes e leitarias. À margem desta tipologia, encontravam-se os dancings associados às artes coreográficas e musicais, envolvendo o gosto das classes altas. A este último respeito, diga-se de passagem que, ao considerar válida a ideia de uma Lisboa boémia, conotada com “o quotidiano de gente ordinária – prostitutas, fadistas, proxenetas, chulos, marialvas, marinheiros, etc.” –, terão de se considerar muitos outros grupos sociais que ultrapassam a ideia de uma história “vista de baixo”[13].

   Em quarto lugar, um pequeno pormenor não pode passar despercebido, pois é revelador de um outro tipo de duplicidade. Trata-se do modo natural com que é referido o facto de mulheres, com um certo estatuto subentenda-se, poderem frequentar os dancings. Esse dado indicará uma aceitação de lesbianismo, justificado por um gosto artístico e extravagante? De qualquer modo, a questão comporta uma forma de permissibilidade – talvez só acessível às classes altas – que só por si põe em causa as leituras em bloco de controlo sobre os costumes e a cultura do salazarismo.   

Por último, será necessário utilizar o mapeamento da prostituição pelas ruas e pelos bairros de Lisboa como resultado de uma prática que não corresponde necessariamente ao olhar do polícia ou ao do médico, mas que responde a uma preocupação pelas aparências e imagem da cidade[14]. Um mundo de aparências que, longe de se esgotar em bairros confinados ou marginalizados, trazia para as principais artérias o espectáculo da prostituição, provocando uma reacção de repulsa nos meios oficiais. É que “o mundo social pode ser pronunciado e construído de diferentes formas”, como sustentou Pierre Bourdieu; e o “mapeamento do espaço simbólico no espaço social, possibilitando identidades partilhadas e espoletando a formação de grupos, nunca é perfeito, devido à elasticidade semântica da realidade social”[15]. O que estava em jogo era a representação de uma distinção social feita a par de um modo de estigmatização social, suscitado pela pressão do turismo, numa ocasião específica em que iriam ter lugar as festas da cidade. Mais: se a Lisboa boémia e da prostituição da segunda metade do século XIX, estudada por Machado Pais, surgira associada às tabernas, aos toiros e às casas de fado, já em 1947, uma outra configuração existia que, sem negar a anterior, também incluía as leitarias, os bares e, no topo, os dancings[16].

 


Publicado no jornal Contacto, 7 e 14 de Abril, 2023

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[1] ANTT, Governo Civil de Lisboa, Correspondência recebida/expedida, n.º 126 (PT/TT/AC/GCL/E-B/003/0126)

[2] Acerca da prostituição nocturna nas ruas da Baixa, ver Lino de Macedo, A Bandeira (Estudo psychologico d’uma desequilibrada) Lisboa: Companhia Nacional Editora, 1897), p. 38.

[3] Francisco Inácio dos Santos Cruz, Da Prostituição na Cidade de Lisboa (1841), pref. Joaquim Machado Pais (Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1984), pp. 74-79.

[4] Francisco Pereira e Azevedo, Historia da Prostituição e Policia Sanitaria no Porto (Porto: Em Casa de F. Gomes da Fonseca, Editor, 1864), p. 38 [“As raparigas apatroadas vivem em casas toleradas (…). As casas de toleradas, em número de trinta no Porto, são todas habilitadas por uma licença passada pela Administração do respectivo bairro, e por isso chamadas casas de tolerância; não são permitidas, antes condenadas as casas de sono ou de passe”]. No Regulamento policial das meretrizes e casas toleradas da cidade de Lisboa – Em 30 de Julho de 1858 (Lisboa: Imprensa Nacional, 1865), pp. 7-8, eram chamadas “directoras ou donas de casas toleradas”. 

[5] José Machado Pais, A prostituição e a Lisboa Boémia do século XIX a inícios do século XX (Lisboa: Ambar, 2008; 1.ª ed., 1995), p. 11.

[6] Ibidem, p. 13.

[7] Ibidem, p. 12.

[8] Susana Trovão Pereira Bastos, O Estado Novo e os seus vadios: contribuição para o estudo das identidades marginais e da sua repressão (Lisboa: Dom Quixote, 1997), p. 223.

[9] Inês Brasão, Dons e disciplinas do corpo feminino: os discursos sobre o corpo na história do Estado Novo (Lisboa: Deriva, 2017), p. 214. Em 1941, além da idoneidade cívica e política, exigia-se que todos os candidatos a promoções dentro da função pública fizessem prova e informação ou atestado dos directores e chefes de serviço da sua idoneidade moral. Assim, no caso concreto das enfermeiras, visitadoras, vigilantes, dactilógrafas e até serventes dos estabelecimentos de assistência e outros serviços, estipulava-se e chamava-se a atenção para aquelas que se apresentassem “com vestuário, arrebiques ou pinturas, que desdizem por menos higiénicos ou modestos, da função misericordiosa e humanitária a exercer junto de pessoas experimentadas pela dor ou indigência, e da própria seriedade da função pública”. Directores gerais e demais chefes deveriam ter em conta tais “desmandos” que deveriam ser “rigorosamente coibidos”, ANTT, Arquivo Salazar, IN-9A, cx. 305, capilha 11 (TT/AOS/D-G/001/0002/00011), fls. 337-339, maxime fl. 339

[10]  Alfredo Tovar de Lemos, Inquérito acerca da prostituição e doenças venéreas em Portugal: 1950 (Lisboa: Direcção Geral de Saúde, Dispensário Social de Lisboa, Editorial Império, 1953), pp. 71-72. Anteriormente, pelo menos em 1929, a Liga Portuguesa de Profilaxia Social procurou reprimir a prostituição, posta ao mesmo nível da pornografia e do aborto; integrava-se tal combate numa campanha de educação profiláctica antivenérea, prevenindo-se os soldados e as raparigas que se viessem inscrever como prostitutas, junto das autoridades policiais, dos perigos da sífilis, blenorragia; e procurou-se assustar as mesmas raparigas, na altura da inscrição, com os fantasmas das doenças cruéis que iriam contrair e transmitir aos seus filhos, “tornando-os cegos, aleijados, doidos”, Boletim da Liga Portuguesa de Profilaxia Social, n.º 1 (Porto, 1929), pp. 73-75.

[11] ANTT, Arquivo Salazar, IN-9A, cx. 305, capilha 6 (TT/AOS/D-G/001/0002/00006), fl. 198.

[12] Para mapeamentos e classificação das prostitutas em Lisboa, ver Augusto Bugalho Gomes, A luxuria através dos tempos – Historia completa da prostituição (Lisboa: edição de autor, 1913), pp. 88-91 [onde se referem 10755 prostitutas em Lisboa], pp. 91-93 [sobre o grande desenvolvimento da pederastia em Portugal, “chegando a ser quase tão descarada como a prostituição”; informa também acerca da prostituição no Porto e nas províncias].   

[13] José Machado Pais, A prostituição e a Lisboa Boémia do século XIX a inícios do século XX, op. cit., p. 13.

[14]  Alfredo Tovar de Lemos Junior, A prostituição: estudo anthropologico da prostituta portugueza (Lisboa: Centro Tipográfico Colonial, 1908), pp. 16-17 [para a história da acção policial e do controlo sanitário sobre as prostitutas em Portugal]; Laure Adler, A vida nos bordéis de França 1830-1930, trad. Maria da Assunção Santos (Lisboa: Terramar, 1993), pp. 237-271 [sobre a acção policial e dos hospitais sobre o mundo da prostituição e dos bordéis]. 

[15] Pierre Bourdieu, Language and Symbolic Power (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1991), p. 19; Loic Wacquant, Bourdieu na Cidade: Desafios à Teoria Urbana (Lisboa: Outro Modo, 2023), p. 37. 

[16] José Machado Pais, A prostituição e a Lisboa Boémia do século XIX a inícios do século XX, op. cit., pp. 65-96.

 

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