Quem?

Quem?

Não é que esteja a esquivar-me ao assunto. Ou a tentar formar frases para que se ajustem a um tema. A verdade é que, as mais das vezes, não me recordo do que eu própria escrevi, quanto mais do que li – quanto mais, então, do que pensei escrever ou estive à beira de escrever. Patrick Süskind ganhou fama com O Perfume, o seu terceiro livro (entre nós, há uma edição da Editorial Presença, traduzida por Emília Ferros Moura); viria a transformar-se em filme já no segundo milénio, o que o tornou ainda mais conhecido. Ali pela altura do fim do liceu (88, 89), andava meio mundo a ler essa história de um assassino quando alguém (obviamente, não me recordo quem) me ofereceu um volume mais curto, também de Süskind, também da Presença, com uma capa que eu achava mais bonita do que a do famoso policial: azul, com um quadradinho onde se via um desenho do pássaro. Chama-se A Pomba e conquistou-me sem demora. Volta e meia, folheava O Perfume nalguma livraria ou biblioteca, mas não cheguei a convencer-me a levá-lo para casa. Lá no fundo do pensamento, talvez deseje manter por ler até mais tarde uma lista de livros, por assim dizer, certificados pela posteridade. Ou então é teimosia e nada mais. Vim a ler quase tudo o que em Portugal se publicou de Süskind menos O Perfume. Continuo a gostar do que me recordo d’A Pomba (a trama, pouco mais). Mas o texto a que mais vezes regresso nem sequer é um conto. Saiu num pequeno volume de contos, na editora Asa, chamado Um Combate e Outras Histórias. No original, o título é Drei Geschichten und eine Betrachtung: três histórias e uma consideração que, no interior do livrinho da Asa, se multiplicou e veio a ser “três histórias” e “… algumas considerações”. É aquilo a que o autor chamou “Betrachtung” que me interessa – pelo menos, foi o que mais vincadamente se me fixou de tudo o que li de Patrick Süskind. A palavra alemã “Achtung” vem muitas vezes acompanhada de um ponto de exclamação; significa “cuidado”, “atenção”. “Betrachtung”, por sua vez, quer dizer prestar atenção, considerar. Implica alguma coisa que capta a atenção de alguém ou que faz alguém ficar alerta. As considerações de Süskind são acerca da memória, um tema que, por ser eu sobretudo desmemoriada, sempre me fascinou. (Posso confundir o nome do autor com o do narrador no texto e imaginar que aquela primeira pessoa se refere ao homem chamado Patrick: não se trata de uma ficção nem de um poema; além do mais, estou aqui a falar só comigo.) É um fascínio que funciona em mim tanto perante a boa memória – que, de um modo pacífico, ainda invejo – quanto perante a ausência dela, por mor da identificação.

A “consideração” de Süskind cativou-me desde o título. “Amnesia in litteris” (na edição portuguesa, da bela Mónica Dias, traduziu-se do latim o “amnesia”, ficou “Amnésia in litteris” – opções…). O esquecimento na literatura. Ou o esquecimento da literatura. “Literatura” e “desmemória” são conceitos – mais do que isso, são entidades – que me constituem. Afirmá-lo é, desde logo, sugerir um paradoxo: se entendo que alguma coisa me constitui, só posso fazê-lo na medida em que me entendo enquanto constituída, de modo essencial, por alguma coisa: ou seja, que existe uma espécie de constante que me faz o que sou e como sou. Ora, aquilo que proponho como elemento constituinte de mim (logo, que me é essencial; que é fundacional e fundamental no que entendo ser), a desmemória, é um traço que elimina o ser – que o elide porque é o fracasso da memória, porque a torna intermitente e inconstante. A memória permite ligações entre tempos, pessoas, lugares, acontecimentos: consolida, alicerça, constrói. Ela é que é constitutiva: como poderá cumprir tal constituibilidade se está ausente ou se, mesmo que momentaneamente, se ausenta?

Uma das parábolas sobre a memória (das que mais frequentemente surgem quando se discute a capacidade de lembrar, a possibilidade de a exercitar ou o seu funcionamento) narra como Simónides de Ceos – contemporâneo de Píndaro, por exemplo (recorri a uma mnemónica enciclopédia virtual, não me vem isto à ideia por lembra cá aquela palha) –, um dos grandes primeiros poetas (grande porque, bem lembrado, ficou na memória dos que vieram a seguir a ele), terá sido também o inventor de um sistema de memória (sim, disso já me lembro – e, acredite quem agora me lê, quando o nome e o lugar de nascimento desta personalidade me vieram à ideia quase sem esforço, estive para parar a escrita destas linhas e abrir uma garrafinha do meu vinho favorito, em comemoração). Até arrisco dizer que sei de cor (é o coração que a retém, afinal) a história do seu palácio da memória. Vou sintetizá-la aqui, fixada em dois momentos: tal como me recordo dela, e de acordo com fontes mais credíveis do que a minha memória.

O tal Simónides terá escrito uns versos em louvor de um homem poderoso na Grécia, ou onde foi que ele nasceu, e o poderoso e rico, agradecido, ofereceu um banquete em honra do poeta. A meio do banquete, um empregado vem dizer a Simónides que estão dois homens à sua procura lá fora, que pedem que ele vá ter com eles. O poeta vai e, estando lá fora, há um grande terremoto que faz desabar a casa e perecer quantos estavam sentados a banquetear-se. Simónides será o que ajudará a identificar os cadáveres, desfigurados pela catástrofe, imagino eu, por se recordar do lugar que cada um ocupava à mesa. A lição – e a suposta inovação de Simónides – é a de que a memória é auxiliada quando a treinamos no conhecimento dos lugares, do espaço, da organização espacial.

Ora bem, depois da verificação, concluí duas coisas: que sou muito mais ingénua do que estava convencida que era; que sou tão desmemoriada como sempre pensei que fosse, mas que a falta de memória está (pelo menos, neste caso) engatilhada no grau superior de ingenuidade. A história está contada em duas fontes – lá está – credíveis. Porque os clássicos são o que tomamos por fonte de toda a credibilidade: em De Oratore, de Cícero (diálogo escrito em 55 a.C., mas que decorre em 91 – está tudo nas enciclopédias), e no Institutio Oratoria, de Quintiliano, obra extensíssima publicada já por 95 da era cristã. O primeiro conta que “se contava” (“Dicunt enim”) que esse poeta Simónides jantava uma vez em casa de um Scopas, homem rico (acertei nisto), em Cranon, na região da Tessália; e que terá cantado, em honra do seu anfitrião, um poema – o qual, como seria tradição na composição poética de louvor, além de palavras elogiosas a Scopas, incluiu versos laudatórios a Castor e Pólux. Chegado o momento de ser pago pelo poema (hábito jeitoso que se foi perdendo), Scopas disse a Simónides que lhe pagaria metade do valor devido, e que, se ele quisesse, que fosse pedir o restante aos “filhos de Tíndaro” (aqui não é má fortuna minha, mas, creio, impossível erro de Cícero, pois Leda terá parido Pólux de um pai e Castor de outro; quem sou eu para lhe apontar o dedo…?, e que os “gémeos” seriam, afinal, filhos de pais diferentes – novelos confusos). A que vem a trama dos versos e das dívidas? É que a tal sovinice do rico terá sido punida pelos deuses, precisamente Castor e Pólux, já que os dois (se foram ou não mesmo eles é incerto, mas a deslembrança não é minha, antes da História), segundo Cícero, se apresentaram fora da casa, enviando para dentro mensagem para que Simónides fosse ter com eles. Chegado à rua, o poeta não viu ninguém. O que aconteceu foi que, enquanto se ausentou (“hoc interim”), a sala do banquete ruiu sobre todos os que lá se encontravam, obviamente matando o dono da casa, seus familiares e demais convidados (é uma história com moral). Na altura dos enterros, ninguém, a não ser Simónides, conseguia identificar os cadáveres, de tão desmanchados que estavam: o poeta conseguiu a proeza da identificação porque se lembrava dos lugares que cada um ocupava junto da mesa (“cubuisset”, ou seja, reclinado mais do que sentado). Donde, Simónides passou a difundir a arte da memória como um processo ensinável, treinável e aprimorável: bastava imaginar ou pensar em (desenhar na ideia) lugares, pontos espaciais organizados para que fosse possível a sua reconstituição.

Pergunto-me se o esquecimento (ausência de memória ou incapacidade de reconstituir mentalmente a ordenação de coisas no espaço) funciona da mesma maneira em relação ao que se lê e em relação ao que se vive fora do que é lido. O assunto que Süskind “considera” é o da “amnesia in litteris”, ou seja, do que se esquece do que se leu – o caso que relata, e de que é protagonista, é o de um leitor que, não se lembrando de ter lido determinado livro, (re)encontra o volume numa estante, abre-o com a curiosidade da leitura inaugural (que, na verdade, já não é), descobre os sublinhados de um suposto outro leitor, acena afirmativamente às anotações que encontra e vai, paulatina e terrivelmente, reconhecendo nelas a sua própria letra, os traços desenhados pelo seu próprio punho, sem que isso lhe devolva a lembrança de alguma vez ter lido o que tem, naquele vergonhoso momento, entre mãos. As consequências da desmemória da leitura talvez não sejam tão graves quanto as de deixar de recordar as pessoas com quem, nalguma circunstância, se conviveu. Mas, para Süskind, não deixam de ter alguma coisa de aflitivo: “O leitor que sofre de amnésia in litteris transforma-se indubitavelmente através da leitura, mas não o nota porque quando lê também se alteraram as tais instâncias críticas do seu cérebro que lhe fariam ver que estava a mudar” (p. 71).

Na medida em que impede a consciência, não lembrar é aterrador e o consolo que oferece a quem escreve, diz Süskind, nada mais do que uma “consolação indigna e pobre”, é que “[o resgata] da veneração paralisante que todas as grandes obras inspiram” (id.). Parco consolo, pois. Mas há, entendo eu, outras benesses – “strange comfort”, diria Malcolm Lowry – em ser-se um leitor literariamente desmemoriado: pode ler-se muitas vezes como se fosse sempre pela primeira vez um texto de que se gosta (renovando o prazer sem que, por assim dizer, ele se gaste) (sugiro a mim mesma – sei quanto será difícil cumpri-lo – deixar de fazer sublinhados e anotações à margem, como se estivesse a cuidar de manuais escolares que deixasse imaculados às gerações seguintes). Há ainda um mimo caridoso oferecido ao deslembrado leitor: o atenuar da dor da perda quando, ao ler a notícia da morte de um autor, se surpreende o pensamento com um “Mas este não tinha já morrido…?”

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