Fotografia de Tstudio para Pexels

Radio Diaries / The Unmarked Graveyard

«Só damos valor às coisas quando as perdemos.»

É o que se costuma dizer.

Concordo com a ideia da frase, mas também discordo. Ou, melhor dizendo, considero que não é só quando perdemos alguma coisa que lhe devemos dar valor, mas sim também quando a recebemos.

«When the body is gone, all that is left is the stories.»

É a esta frase, proferida por Joe Richman no final do derradeiro episódio da minissérie “The Unmarked Graveyard: Stories from Hart Island” do podcast Radio Diaries — programa do coletivo Radiotopia — que me agarro para escrever estas linhas.

Esta minissérie tem por missão contar histórias de gente que já morreu. Pessoas que, por não se lhes conhecer família a quem “devolver” o corpo, foram sepultadas no maior cemitério público americano — um terreno conhecido como Hart Island, uma pequena ilha junto a Nova Iorque — em que desde 1980 foram enterradas mais de um milhão de pessoas “não reclamadas” por ninguém (embora haja exceções), sem direito a uma lápide, apenas uma pedra com o número da cova ocupada pelos restos mortais.

Na verdade — refere Joe Richman, o líder de há longa data da equipa de Radio Diaries —, quando começaram a pensar num projeto de obituários narrativos sobre estas pessoas “anónimas” sepultadas em Hart Island (“anónimas” porque em muitos casos os números das sepulturas não têm na respetiva base de dados em Nova Iorque um nome, sequer — tal era o grau de solidão, abandono, ou mero infortúnio de tantas destas pessoas) perceberam que realizar um bom programa documental com obituários bem produzidos não seria bastante. Tudo porque em vários casos, afinal, havia gente que ainda procurava pelos seus entes queridos (não os sabendo mortos, muito menos enterrados num imenso cemitério de “anónimos”) e que, por isso, havia histórias muito mais complexas que mereciam ser contadas devidamente.

A velha senhora de origem japonesa que durante décadas viveu sozinha no Belvedere Hotel (e que lá também morreu, também sozinha). A escritora que na década de 1940 foi famosa (Hemingway chegou a dizer que era a sua escritora favorita), mas que quando morreu, em 1965, já não era sequer conhecida do público e que doou à ciência o próprio corpo que mais tarde acabaria sepultado em Hart Island. Um sem-abrigo de Manhattan que se deu a conhecer como Stephen e que só após a morte (e o enterro no cemitério público) se veio a saber ter um outro nome e uma família que o procurava. E até o compositor de música experimental que, por opção — referi acima que havia exceções aos casos de solidão —, decidiu que deveria ser sepultado em Hart Island; uma história contada no programa pelo próprio marido.

“The Unmarked Graveyard: Stories from Hart Island” tem sete histórias contadas de forma curta e, ainda assim, com a serenidade que o tema da perda merece, e sem o tentador drama com que o tema da morte muitas vezes é abordado. 

«When the body is gone, all that is left is the stories.»

O trabalho de Radio Diaries começou em 1996, na rádio pública americana, NPR, com a arriscada premissa de dar gravadores para a mão de um punhado de adolescentes para os próprios documentarem o seu dia a dia e com esses sons “em bruto” editar histórias da vida real ( (e dando a sensação — ao serem ouvidas — de serem “em tempo real”)). Depois o programa alargou o espectro e começou a registar histórias de pessoas de todas as idades, de todas as origens, do presente e do passado — um trabalho que vem até aos dias de hoje, já como podcast, que encapsula no lema «Radio Diaries tells the extraordinary stories of ordinary life».

Só tomei contacto com Radio Diaries no início de 2020, já bem depois de me tornarpodcaster. (Já explico o porquê desta referência temporal.)

Vou ser muito sincero. Não sei se este será o meu último texto na Almanaque. Pode até não ser — e, sendo igualmente muito sincero, espero mesmo que não seja —, mas, para qualquer eventualidade, aqui fica este meu registo.

O que originalmente fez de mim um podcaster, o que me fez em 2017 — depois de mais de 15 anos a trabalhar em televisão — voltar a trabalhar com áudio sem imagem (comecei a trabalhar numa rádio local em 1993), foi sentir a necessidade de procurar e contar histórias verídicas que eu sabia que existiam (e existem) por aí, mas que nunca têm espaço nos jornais de televisão (cada vez mais “tabloidianos”), nos flashes informativos das rádios (cada vez mais curtos) e nas páginas da imprensa escrita (cada vez mais ocupadas por textos de opinião política e branded content). Os gatekeepers da Comunicação Social estão tão embrenhados na espuma dos dias e nos picos de audiências que a mera ideia de que num podcast não teria gatekeepers a dizer-me o que eu NÃO poderia fazer fez de mim um podcaster. Foi assim que nasceu o podcast Histórias de Portugal, um programa assumidamente dedicado a contar histórias reais de gente desconhecida. Ou de objetos, ou de locais, ou de acontecimentos. Histórias que não cabiam em qualquer órgão de comunicação onde houvesse chefias editoriais que, ao fim de 10 segundos de um pitch de reportagem, já estariam a interromper para dizer «Isso não interessa a ninguém, pá!…», recusando-se a ouvir os restantes 20 segundos necessários para explicar uma ideia simples.

Nesse podcast documentei histórias que, sempre que falei publicamente sobre o programa, resumi no seguinte lema: «Histórias verdadeiras de pessoas especiais que são aparentemente banais». Foi assim, por exemplo, em novembro de 2019, quando fui receber o prémio de Melhor Podcast de Sociedade, na 1.ª edição do Festival Podes.

Foi por coincidência — mas sobretudo por partilhar (ainda sem o saber) exatamente a mesma filosofia e o mesmo espírito de missão — que encapsulei o meu trabalho nas Histórias de Portugal de forma muito semelhante à que faz a equipa de Radio Diaries.

Não tenho, desde 2020 (por causa do imenso rombo financeiro que a pandemia causou nas finanças de tanta gente com trabalho estável, quanto mais na vida de um freelancer), conseguido procurar e contar as Histórias de Portugal que sinto serem o trabalho que melhor me define como profissional de Comunicação, como documentarista em áudio (ou storyteller de histórias verídicas), até como jornalista — que sou por formação (não estando atualmente a exercer a profissão). Tenho feito muitas outras coisas, entre elas produzir e realizar podcasts para outras pessoas, e para entidades (instituições e empresas), ajudando a passar as mensagens e contar as histórias que essas pessoas e entidades querem, ou precisam, divulgar. Mas ainda não consegui voltar a contar as histórias que quero voltar a contar.

Não tenho dinheiro suficiente para esse regresso (sempre paguei do meu bolso toda a produção do podcast — obviamente gratuito para os ouvintes), mas tenho uma certeza, que tantas vezes me foi dada por quem ouviu as Histórias de Portugal: a essas histórias — a que ninguém, à exceção quase exclusiva de quem as tinha vivido — só foi dado valor quando passaram a ser conhecidas por mais alguém. E esse valor foi imaterial. As histórias que me surpreenderam e marcaram ao descobri-las surpreenderam e marcaram também quem as ouviu, depois.

Daí a minha discordância com a frase inicial deste texto: «Só damos valor às coisas quando as perdemos.»

O feedback que sempre recebi — de pessoas que não conhecia de lado algum e que ouviam o programa não só em Portugal como em vários pontos do mundo, onde nunca pensei que o meu trabalho pudesse chegar — foi o de que (adaptando a frase que voltei a mencionar agora mesmo) «Só damos real valor às coisas quando as recebemos.»

Até ali, quem ouvia estas histórias, nem sabia o quanto aqueles relatos, especiais, daquelas pessoas aparentemente banais, seriam marcantes. Nem eu, antes de descobrir estas histórias que depois iria poder contar.

Histórias que sei — por conhecer muito bem o meio da Comunicação Social — provavelmente nunca chegariam a ser contadas, ou — se, por milagre, chegassem a ser contadas — sem o tempo e o cuidado que mereceriam.

O consumidor português de conteúdos de informação (incluo o trabalho documental nessa área da Comunicação) por regra não quer pagar, prefere consumir tudo grátis sem sequer se questionar quanto custa produzir – e, já agora, a fórmula de patronos raramente consegue cobrir custos (mesmo de podcasts muito baratos). Também nunca me foi possível obter para o programa mecenato (um conceito vago que quase não consigo definir ou vislumbrar em Portugal, principalmente para projetos verdadeiramente independentes). E a hipótese de obter patrocínio (direto, em dinheiro) – quando não implicava tornar o podcast numa espécie de branded content – traria “contrapartidas editoriais” que na prática colocavam gatekeepers num podcast criado para, literalmente, ser livre de gatekeepers.  

Até hoje, por causa das “mil-e-uma” coisas que ainda faço para recuperar a minha estabilidade financeira, não consegui fazer follow-up de todas as histórias que contei. Mas numa — aquela que foi mais marcante para mim — sei o que aconteceu depois.

Algum tempo após ter contado a história de amor entre duas pessoas residentes numa aldeia perto de Mação (uma história que intitulei “A Volta do Carteiro”, que me tinha sido referenciada por uma amiga, originária da região de Mação e pessoa próxima dos protagonistas), um deles teve um grave problema de saúde e mais tarde viria mesmo a morrer. Debati-me então com uma dúvida ética e moral: deveria manter ou apagar o episódio, em sinal de respeito? A resposta veio por parte da família, que estava profundamente agradecida por ter eternizado as vozes daquelas duas pessoas, em vida, lúcidas, e a viver um amor com mais de 40 anos.

«When the body is gone, all that is left is the stories.»

Foi exatamente por me recordar deste caso muito particular, que vivi por experiência própria, que quis escrever estas linhas, ancoradas na frase de Joe Richman no episódio final de “The Unmarked Graveyard: Stories from Hart Island”

Podemos — e devemos — dar valor às coisas quando as perdemos (e sei que isso transparece nas minhas palavras sobre o meu próprio programa, que ainda não consegui recuperar), mas também sinto que podemos — e devemos — dar valor àquelas coisas que recebemos, sobretudo vindas de onde (ou de quem) sabemos que poderá dar-nos algo surpreendente e que nos enriquece de alguma forma.

Este texto não é sobre mim, ou sobre um programa que eu fiz no passado e que ainda desejo voltar a fazer no futuro. É um texto que também é sobre mim e sobre esse programa, e sobre a minha experiência pessoal como podcaster e como documentarista em áudio. Tal como podcasters e documentaristas em áudio são os autores —  que admiro profundamente — de Radio Diaries e da minissérie documental “The Unmarked Graveyard: Stories from Hart Island”. Podcast e minissérie que têm a mesma matriz do meu trabalho como autor das Histórias de Portugal, ainda que com sucesso e alcance diametralmente diferentes (factos pelos quais fico genuinamente muito feliz). 

Um dia, num comentário a uma crónica que escrevi numa revista online que teve vida curta, chamada “Papel” (2013), e porque eu tinha referido algo sobre uma experiência pessoal, escreveram-me, em tom claramente altivo, algo do tipo: «Escreva muito sobre tudo, mas nada sobre si mesmo.» Tomei bom registo da crítica (construtivamente destrutiva), mas, depois disso, nunca — nunca mesmo — me abstive de demonstrar o que sei ou falar sobre aquilo que sei por experiência própria, adquirida nos 47 anos que tenho de vida e nos mais de 30 anos que tenho de trabalho em Comunicação.

Em última instância, quando eu morrer e o corpo já cá não estiver, talvez fiquem as histórias que alguém me ouviu contar, ou que alguém leu quando as escrevi.

 

«When the body is gone, all that is left is the stories.»





Radio Diaries é um programa do coletivo Radiotopia, uma rede de podcasts independentes, com o apoio da PRX. A equipa de Radio Diaries é composta por Joe Richman, Alissa Escarce, Nellie Gilles, Mycah Hazel, Lena Engelstein, Deborah George e Ben Shapiro. O programa está disponível gratuitamente em todas as plataformas de audição de podcasts, pode ser ouvido também no website radiodiaries.org.

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