Democritus, the laughing philosopher, Johannes Moreelse, c. 1630

Retrato do Humorista quando Sóbrio

Em Hubris, o espectáculo a solo de Daniel Sloss que passou pelo Teatro Tivoli em setembro de 2021, o humorista escocês chibava-se dos pares e da sua normalização como consumidores de drogas. “O vosso preferido que acham que nunca seria capaz de se drogar? Lamento dizer-vos, mas é o pior deles todos”. Metade queixume e metade sátira clandestina, a traição de classe por parte de Sloss abria-lhe a premissa para a sua própria história, reflectindo sobre as recentes dificuldades sentidas por ter deixado de fumar (apenas) tabaco, e caracterizando o seu desmame como uma lânguida saudade provocada pela morte do cigarrinho, o seu bem mais precioso: “É a minha Princesa Diana”, rematava.

 

Nada haverá de especial em associar particularmente um vício àqueles que vivem da necessidade de estimular uma liberdade criativa em constante produção, sustentada por milhões e sugada por outros tantos que os procuram como os novos terapeutas e filósofos. Com cada vez mais respeito pelo seu mercado, de muitas horas erráticas e solitárias, os humoristas obedecem a uma dinâmica de fetichização dos seus traumas e vícios, trocando-os por uma utilidade cómica, até aqui a forma mais popular de lidar com os mesmos. De um modo quase natural, constituiu-se como necessária a adopção de um vício a ser posteriormente explorado em espectáculos transformados em câmaras confessionais das almas pecaminosas, com jogos de luzes que ditam climas emocionais, expostos perante plateias convencidas de que estão a privar com a intimidade dos intérpretes. Deste modo, como consequência última, tem sido estabelecido o domínio de uma perspectiva dual, maquiavélica e inescapável: a impossibilidade de se mostrar simultaneamente um bom cristão e um bom humorista. Tal determinismo, histórico se olharmos para o destino trágico de notáveis como Lenny Bruce, Mitch Hedberg ou Robin Williams, tem por tantas vezes privado o humorista da sua própria autonomia, estereotipando-o como um ser desconexo: pacato, mas ansioso; autêntico, mas viciado; são, mas doente.

 

Um dos mais recentes membros deste clube de fingidores é John Mulaney, o católico janota com cara de celibatário, cuja entrada numa clínica de reabilitação no final de 2020 preocupou um público que ainda se recompunha das notícias que davam um Bondage negacionista. Em Baby J, o seu novo especial da Netflix, um Mulaney reabilitado ri-se, e faz rir, daquilo que mais o assustou durante o tratamento: as implicações da dissolução pública da sua persona impoluta – aquela que o próprio fez tantas vezes questão de relembrar como postiça. Para quem tem acompanhado a carreira do humorista que chegou a ouvir de David Letterman o sempre simpático elogio “o futuro da comédia”, a notícia da sua recaída não deverá ter sido propriamente recebida como um choque. Minuciosamente, tanto em espectáculos como em entrevistas, Mulaney foi dando a conhecer o seu passado composto por bebedeiras desde os treze anos de idade, trips invulgares enquanto estudante de teologia na universidade de Georgetown e blackouts que o obrigaram a domar o vício bem antes de a sua carreira alcançar qualquer estado de maturação. Porém, nunca deixando que essa faceta sujasse a imagem fofa, virginal e sofisticada que saberia vender melhor. Foi dessa forma que, em termos mediáticos, o destaque recaiu sempre sobre o seu brilhantismo como argumentista meticuloso que desmanchava as personagens de Bill Hader no Saturday Night Live ou que inventava gloriosos sketches musicais como apresentador-convidado no mesmo programa. Em todos os seus trabalhos, Mulaney notabilizou-se por um dandismo esteticamente impecável que Baudelaire definiu como parte de um daqueles humoristas que “vivem e morrem em frente ao espelho” com “um carácter refinado até à quintessência e um entendimento subtil de todos os mecanismos morais deste mundo”.

 

De facto, ao explorar os subterfúgios da forma de expressão pessoal e da sua relação com a verdade através de um material humorístico que não só é original, como é um reflexo da sua personalidade distinta, Mulaney sempre demonstrou saber que, na realidade da vocação, o palhaço importa mais do que a palhaçada, como se também ele fosse instruído a completar um arco de personagem. Tanto em Top Part (2009) como em New in Town (2012), os seus dois primeiros solos, o humorista de Chicago apresentava-se como um baby face que se preocupa em dar todos os sinais de que não constitui ameaça para ninguém: a voz de desenho animado, a fisionomia pantomímica com baixo índice de massa corporal, a buldogue francês chamada Petúnia; Já em Baby J, é apresentada uma personalidade pungente que outrora espreitara ao interpretar um breve papel semi-autobiográfico em Crashing (2019), a série de Pete Holmes – “a história não pode ser sobre o facto de eu ser um imbecil” é a fala que rouba a cena no último episódio da terceira temporada, exalando uma vulnerabilidade tóxica que ressoa na deixa mais memorável de Mulaney no mais recente espectáculo: “Likability is a jail.”

 

 Agora, saído da clínica e apostado em provar que la pelota no se mancha, Mulaney não tem como deixar de apontar o escárnio para si mesmo, canibalizando-se. Narrando o dia em que os amigos mais próximos o surpreenderam com uma “intervenção”, alertando-o de que havia algo de estranho no seu nariz, o aspecto credível de Mulaney é estilhaçado pelo próprio à medida que revisita as histórias grotescas dos seus tempos de volátil criptoactivo ligado ao branqueamento de orifícios nasais – “e estas são as histórias que estou disposto a contar-vos!”, assegura à audiência. Por certo, revelando o seu mix crónico de cocaína, adderall, xanax, clonazepam e oxicodona, o relato da reabilitação de Mulaney é previamente adornado por um momento “stay in school and don’t do drugs, kids”, quando o humorista se interrompe para destacar um rapaz de 11 anos que assistia numa das galerias do anfiteatro; uma condescendência estranha e demonstrativa do seu desconforto face à enorme amplitude intergeracional do comediante que protagonizou John Mulaney & the Sack Lunch Bunch (2019) e que dá voz ao pubescente Andrew Glouberman na série de animação Big Mouth. Assim, autorizado a libertar-se após o aplauso de um público que congratulava a sua garantia de que “esses tempos já lá vão”, Mulaney eleva o grau de interesse do solo ao explicar o que leva o humorista a pensar que o seu excepcionalismo extravasa os impulsos auto-destrutivos do comum toxicodependente e o que o impede de perceber que ambos partilham o mesmo sentimento de desespero e uma semelhante situação de ruína. Para tal, conclui-se que tão pouco importa o fácil acesso a droga da melhor qualidade, a batelada de dinheiro na conta bancária ou a maior tolerância dos outros face à evidente loucura.

 

Como reforço desse mesmo ponto, e indo para lá de Baby J, vale a pena ouvir a conversa de Mulaney com o também humorista Theo Von, no episódio do podcast This Past Weekend. Aproveitando o mano a mano entre colegas de profissão – naquilo a que os humoristas se aconchegam num registo de tu sabes do que eu estou a falar –, Mulaney desabafa sobre o vício, descrevendo-o como a solução que encontrou para lidar com a expectativa de nunca ter a sua performance artística desequilibrada, confiando na energia dos químicos para poder dar o melhor de si todas as noites, em qualquer que fosse a ocasião. Juntando-se ao tal protótipo do humorista dual, Mulaney conta ainda como, aos 17 anos, um psiquiatra o diagnosticou como “uma metade de um tipo muito porreiro que quer sempre fazer a coisa certa; e uma outra metade que é um gorila cujo único propósito é destruir a primeira metade”. Das suas respostas extrai-se a ideia de uma profissão submetida a uma insuportável exigência por entretenimento contínuo, perfeito, ignorando os alertas daquilo que se torna uma obsessão: prestar sempre o serviço de fazer os outros felizes. Essa perpetuação, levada a cabo pelo entendimento geral de que o mundo da comédia se alimenta das personagens nascidas para tudo ridicularizar – incluindo a sua própria ruína –, derivou em humoristas que têm complementado a sua arte imprópria com um carácter martirizado e didáctico, subindo a palco para contar o quão para baixo esse mundo os tem puxado.

 

Talvez porque a capacidade de fazer rir seja mais especial do que a mera intenção de provocar ou fazer pensar – até porque essas são as intenções que restam àqueles que não têm a capacidade de fazer rir –, os humoristas estão condenados a viver com o receio de a qualquer momento poderem perder o que consideram ser um dom, mostrando-se dispostos a explorar tudo o que os socorra no seu tal serviço obrigatório de fazer os outros felizes. Por aí, opor-se-ão duas correntes: se humoristas como Russell Brand afirmam que, por exemplo, “a rehab dá-nos material único”, ligando o humor à capacidade de recontar episódios específicos de humilhação, outros como Richard Lewis indicam que o humorista é endemicamente ruinoso e que, independentemente dos eventos e resultados, este “despreza-se praticamente desde que saiu do útero”. Não é certo que os humoristas tenham de se definir por uma entre as duas teses, dado que, no caso de John Mulaney, o seu perfil cambiante tanto se identifica como um humorista que aproveita os casos de desdouro numa vida repleta de sucessos, como também se reconhece dentro de uma prisão psicológica cujo desamor pessoal é exacerbado por um meio que, nas palavras de Joyce, “devora a sua própria ninhada”.

 

Ainda assim, naquilo que se pode considerar como uma evolução no meio, indissociável de uma mudança de paradigma no que toca à valorização da saúde mental, a audiência desenvolveu o hábito catártico de compreender os efeitos dessa pressão no artista desvairado e de apreciar os episódios em que este decide parar ou mesmo dar um passo atrás. Contudo, por nem sempre ter sido assim, a reabilitação de Mulaney é a imagem que contrasta com eras anteriores em que os humoristas não eram percepcionados pelos seus fãs de uma forma tão “humana”. Tal como conta o autor William Knoedelseder em I’m Dying Up Here, o seu livro sobre a cena da comédia de Los Angeles nos anos 70, quando os jovens humoristas David Letterman e Tom Dreesen decidiram levar o seu amigo, o também humorista George Miller, a uma clínica de reabilitação. Do que se conta do episódio, chegados à clínica, o grupo terá sido atendido por uma recepcionista cujo sorriso insólito procurava uma câmara que confirmasse que tudo se tratava de uma cena para os apanhados, ignorando o pedido de tratamento a um funny man cocainado que se encostava no ombro da morte.

 

Seja como for, e caso os julguemos à mesma distância da falta de reconhecimento dos nossos próprios problemas, confrontando-nos com um protótipo de audiência que não admitimos ser – pacatos, mas ansiosos; autênticos, mas viciados; sãos, mas doentes –, perguntamo-nos se, para efeitos de validação e longevidade, os humoristas estarão obrigados a dar explicações por via da espectacularização das suas biografias. Poderá um humorista abrir e fechar a porta da vida pessoal consoante a sua vontade ou estará obrigado a satisfazer a impertinência de um público que se arroga o direito a um acesso exclusivo e de linguagem adaptada? Considerar-se-á melhor, mais genuíno e cru, o humorista que está disponível a dar essa entrada e a contar a sua experiência? Do impessoal para o extremamente pessoal: é este o arco de qualquer personagem no humor? Não sabendo ao certo até que ponto será levado, resumir-se-á assim o sentido mais negro dos humores: a auto-expressão de um humorista no palco, o seu bem mais precioso, totalmente subordinada à sobrevivência da relação com o seu público.

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