Fotografia de Robert Doisneau

Rinocerontes e chalés suíços

Texto de José Pedro Almeida, autor convidado.

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«O escritor cronista: perora sobre tudo, numa olímpica omnisciência. Está convencido de que tem muita graça e de que influi profundamente nos destinos do país. Imagina os governantes a lê-lo e a dizerem às mulheres (ou aos maridos): “Tem graça! Olha que este rapaz tem carradas de razão, vou passar a fazer como ele diz.” Às vezes é feroz, faz ameaças: “Ah, sim? Então eu desanco-o na minha crónica!” No entanto, fica um pouco perplexo se os amigos exclamam, jovialmente: “Lá li a tua coisa no ‘Diário Popular’; aquela dos rinocerontes, muita gira” – quando ele tinha escrito umas considerações hábeis sobre chalés suíços para o ‘Diário de Notícias’.»

[Mário de Carvalho, “O que eu ouvi na barrica das maçãs”, p.195]

 

Se querem saber a minha opinião, a minha opinião sobre as pessoas é que, embora as pessoas adorem ter opiniões sobre as opiniões das pessoas, as pessoas detestam pessoas que têm opiniões sobre as opiniões das pessoas. Confusos? Não são os únicos. Pressupondo que a minha excelsa pessoa concorda com a sua própria opinião (o que não é garantido, visto que contém multidões), dir-se-ia que, à excepção dos felizes acasos em que as opiniões das outras pessoas coincidem exactamente com as opiniões da própria pessoa, as pessoas tendem a sentir uma aversão instintiva por essa ignomínia que é haver pessoas com opiniões diferentes das opiniões da própria pessoa. E não deixa de ser curioso que abundem as opiniões que as pessoas têm sobre as opiniões das pessoas e escasseiem as opiniões das pessoas sobre um dos meios privilegiados que as pessoas têm para exprimir opiniões: a crónica da imprensa.

Mesmo sabendo-se que o jornal, hoje, já não é “a oração matinal do homem moderno” (como diria o outro), ainda assim, estranha-se a lacuna. Na ausência de estudos teóricos, as introduções a colectâneas do género vão suprindo, mal ou bem, a falta de análises mais aprofundadas; e a de John Gledson, de resto, transcreve uma definição apropriada, a respeito da crónica brasileira:

 

«Género menor, cujas fronteiras imprecisas confinam com as do ensaio de ideias, do memorialismo, do conto, e do poema em prosa, a crónica se caracteriza pela expressão limitada. Focaliza, via de regra, um tema restrito, em prosa amena, quase coloquial, onde repontam amiúde notas discretas de humor e sentimentalismo; o tom é predominantemente impressionista e as ideias se encadeiam menos por nexos lógicos que imaginativos. Graças a isso, estabelece-se uma atmosfera de intimidade entre o leitor e o cronista, que refere experiências pessoais ou expende juízos originais acerca dos fatos versados.»

[John Gledson, “Conversa de burros, banhos de mar e outras crónicas exemplares”, p.11]

 

Se a definição conceptual é sempre arriscada (como bem aprendeu Aristóteles, à custa de Diógenes), um género híbrido como a crónica exponencia essas armadilhas taxonómicas. E, aliás, a selecção preparada por Fernando Venâncio, incidindo sobre a crónica portuguesa do século transacto, demonstra como a noção de crónica e as suas possibilidades não são imunes ao contexto histórico em que esta se publica: da crónica política à crónica cultural, da crítica de costumes ao relato quotidiano (e já excluindo a metacrónica, a famosa “crónica sobre a crónica”), a diversidade é regra e o tipo predominante varia, não sendo coincidência que o comentário à actualidade escasseie em períodos de autoritarismo e abunde em períodos de liberdade. De qualquer modo, este exercício poderia ser replicado à saciedade (sirvam de exemplo as antologias de crónicas em língua francesa e espanhola de Patrick Eveno e de Darío Jaramillo Agudelo, respectivamente), mas não é esse o intuito destas linhas. Em compensação, mais vale examinar um detalhe sublinhado por Christopher Silvester em “The Penguin book of columnists”, onde, detendo-se no caso anglo-americano, declara que este tipo de texto deve mesclar “opinião” e “personalidade”.

 

***

 

Não sou de intrigas, mas dizem por aí que – parafraseando os juristas – a doutrina diverge. Se o axioma de Silvester é adequado para descrever a tradição maioritária da coluna anglo-saxónica, já se revela menos adequado para abarcar, por exemplo, a tradição da crónica brasileira; e talvez não seja coincidência que um estudioso da literatura brasileira como Abel Barros Baptista, no ensaio “O espelho perguntador”, difira radicalmente desse postulado:

 

«Os cronistas associam-se numa espécie de rede de vozes divergentes, em que cada um vale pela opinião própria que exprimir sobre o mesmo conjunto de problemas ou de incidentes à data em que se vão impondo […]. Tudo assuntos importantes, por certo, que não deixam tempo nem espaço para o insignificante ou o irrisório, que aparecem e desaparecem numa “actualidade” que a si própria se constrói, como máquina cujo funcionamento inexorável promovesse a subida e a descida dos temas que ocuparão a opinião pública em cada semana do calendário, animando a rotação dos cronistas num carrossel de vozes talvez diferentes exprimindo-se sobre o mesmo. Neste movimento, afinal um dos processos constitutivos da chamada actualidade, o cronista publica em nome da sua opinião, e opinião pronta, capaz de saltar a público ao primeiro sinal de emergência do novo assunto. […] Por isso é raro o cronista que conduz a crónica ao apagamento do cronista, por isso é raro o sentido do humor e da ironia, por isso é raro o sentido da auto-irrisão.» [Abel Barros Baptista, “Coligação de Avulsos”, pp. 23-26]

 

Lido este excerto à luz da definição de crónica inicialmente mencionada, depreende-se que o problema não é tanto a expressão de opiniões, mas o modo como o império da opinião, no jornalismo contemporâneo, cerceia a liberdade criativa do cronista. Desde logo, a liberdade de se furtar ao “carrossel” acima descrito, renunciando a exortações sentenciosas em prol da salvação do mundo para se debruçar sobre episódios marginais à manchete do jornal. Por mais que os sectários o acusem de falta de pluralismo ideológico, a maior lacuna do panorama jornalístico hodierno é outra: a imposição de ditames canónicos demasiado esquemáticos, restringindo a heterodoxia em matéria estilística.  

E, se a crónica é uma manifestação de saudade da literatura (numa alusão ao título de uma colectânea do género), trata-se, na essência, de uma construção linguística sobre algo, onde importa mais o método do que a tese, onde importa menos a conclusão do que o raciocínio, onde o estilo prevalece sobre o argumento. Na sua expressão ideal, a crónica pode ter um carácter persuasivo, mas não evangélico, que busque arrebanhar ovelhas tresmalhadas nos ínvios trilhos das causas nocivas; e pode conter uma visão pessoal, mas cujo interesse depende, sobretudo, da singularidade de uma perspectiva idiossincrática: isto é, da aptidão para explorar pontos de vista inesperados, para estabelecer paralelismos surpreendentes, para ligar temas aparentemente díspares. Género oblíquo a definições precisas e taxativas, o que distingue a crónica é a possibilidade de relacionar elementos sem nada em comum que não seja terem por vértice da relação o próprio cronista.

Ao contrário da mera coluna de opinião, a crónica não visa, fundamentalmente, intervir num debate, mas reflectir, de modo imaginativo, a propósito do que sucede. Não se deduza disto que o cronista deva eximir-se de juízos valorativos, simulando uma neutralidade que se sabe ser ilusória; mas que o encadeamento das ideias, na crónica, não necessita de obedecer, linearmente, à demonstração circunstanciada de uma posição ou crença. Dito por outras palavras, esta poderá ser um efeito secundário, mas não a finalidade primordial da escrita do texto. Já Cioran frisava que a preocupação com o estilo é própria dos cépticos, dos que procuram nas palavras uma alternativa à incerteza das ideias; e não admira que, repletos de convicções peremptórias, alguns as matraqueiem numa prosa heteróclita dificilmente legível. Mas, perante a sucessão desordenada de acontecimentos que alternam na agenda mediática, que relevância tem o pronunciamento do cronista sobre os assuntos que, de forma aleatória, se lhe deparam e acerca dos quais nem sempre beneficia (compreensivelmente) de um conhecimento aprofundado? A reacção que suscita traduz-se num dichote popular: “concordo sempre com o que diz, excepto quando percebo dos assuntos de que fala”. 

 

***

 

Poderá contrapor-se, eventualmente, que esse vício não é exclusivo do jornalismo contemporâneo, mas uma prática inveterada. De facto, já sem recuar às controvérsias da doxa platónica, Vasco Pulido Valente narra o processo de ascensão do então cronista Ramalho Ortigão (na crónica ‘Desventuras de um autodidacta’, coligida em “Às avessas) em termos não muito desfasados da actualidade. Porém, o advento das redes sociais amplificou a verborreia opinativa, como atestam os casos recentes de inúmeros diplomados pela Escola da Vida que, após três ou quatro pesquisas no Google, adquiriram túrgidos conhecimentos de Medicina e Relações Internacionais e opiniões farfalhudas sobre virologia e política externa; e, talvez por efeito mimético, acabou por favorecer a proliferação dos ditos “tudólogos”, que, em regra, não se distinguem muito do filósofo de café, até no recurso às analogias com a experiência comum: por exemplo, uma cartilha em voga consiste em equiparar as finanças públicas e a economia doméstica, algo que faz tanto sentido como explicar os conflitos geopolíticos à luz das discussões conjugais. O famigerado “efeito Dunning-Kruger” talvez explique esta repentina omnisciência. E António Guerreiro complementa que essa propensão sentenciosa se deve à “profissionalização” destes espaços fixos de comentário:

 

«A esfera pública mediática, em Portugal, dominada pela obesidade patológica da opinião, transformou-se num mundo timótico. […] [É] quase exclusivamente reactivo, parasitário e amplificador de ecos. Por isso mesmo é volátil e funciona por ondas que se formam, se agigantam e se desfazem em pouquíssimo tempo, até que uma nova onda recomeça. […] Esta “opinião” alimenta-se de choques contínuos, de reacções inflamadas, de demonstrações de virilidade, de guerra das virtudes.»
[António Guerreiro, “Zonas de Baixa Pressão”, pp. 201-202]

 

Dir-se-ia que, como no célebre poema de Yeats, aos melhores falta em convicção o que sobra aos piores em intensidade apaixonada. Mas o texto de Guerreiro não contempla – porque não era o seu escopo – esse frondoso género literário nacional que é a polémica velada. Este ex-líbris vernacular do rectângulo, já merecedor de consagração como património imaterial da humanidade, origina-se, com frequência, sempre que o colunista X (chamemos-lhe assim) escreve uma patacoada qualquer no jornal, que eriça a fina susceptibilidade, por exemplo, do escritor Y. Confrontado com essa tremenda ignomínia que é ver publicado um emaranhado de letras impressas que lhe revolve as vísceras de repulsa, Y não tenciona macular a sua angélica pessoa nesse lodo fétido que é a discussão racional de ideias. Assim, não lhe resta outra alternativa senão clamar aos quatro ventos a sua retumbante fúria, mas resguardada pelo biombo da abstracção; e vai para outro jornal manifestar “o mais vivo repúdio” e “a veemente indignação” pelas coisas pecaminosas que “andam aí a dizer”, sem nunca mencionar o nome de X, mas deixando alusões cifradas que permitam identificá-lo de imediato. Se a ira lhe der para isso, é até capaz de intercalar a invectiva com uns lamentos sobre os males da pátria, vociferando a arenga habitual sobre a “choldra”. Este estratagema ardiloso é muito eficaz: por um lado, dá a impressão de que, do Uganda a Estarreja, Y é pessoa viajada, cosmopolita e sabe muito bem como as coisas se passam noutros lugares; por outro, visto que X nunca é citado expressamente (embora possa inferir-se quem é), vê-se impedido de replicar a defender-se, sob pena de enfiar tacitamente a carapuça.

Atraído pelo tumulto, entra em cena o – digamos – crítico literário Z, que em tempos teve um livro prefaciado por X e, agora, recenseia a mais recente obra de Y: verberando-lhe a prosa desconchavada, classifica-a com uma mísera estrelinha. Esta afronta faz coruscar de raiva Y, que perde as estribeiras e regressa à carga já sem dissimulação. Como ousa?!… Insinuando motivações torpes, Y acusa Z de desonestidade e iliteracia, não sem recordar os rumores segundo os quais, já nos anos 80, Y era suspeito de sacrificar galinhas pretas em rituais satânicos, nas traseiras de um rent-a-car algures na Bobadela. A polémica estala. Os literatos alvoroçam-se; outros colunistas desferem a sua farpa; editoriais alarmados traçam diagnósticos. E, numa tarde ociosa, uma estagiária de um canal televisivo chega a ler dois comunicados e a pesquisar, na Internet, quem são X, Y e Z, a fim de averiguar se valerá a pena uma breve menção à querela no rodapé do anódino “Jornal das 3”.

Por esta altura, o vulgo já não se lembra de como a questiúncula começou e censura, ecumenicamente, todos os envolvidos, por se engalfinharem numa peixeirada sem interesse nenhum. No entanto, a coisa não fica por aqui. Perante o ultraje, Z pede ao jornal que publique uma réplica inflamada aos comentários de Y, em que cita quatro estruturalistas franceses, dois marxistas alemães e um obscuro poeta moldavo que escreveu versos plangentes sobre a traição, tudo com o intuito de demonstrar que Y é um asno. Ao receber a notificação do texto no telemóvel, a editora V. amanha à pressa um comentário no Facebook, declarando que, na verdade, sempre se recusara a editar Y, devido a zunzuns inexplicados a respeito de este, alegadamente, uma vez, em 1997 (ou 1998?), ter molestado anciãs indefesas no Centro de Dia de Alenquer. À cata de declarações, um esquálido radialista telefona a Y; e Y, saído do banho, face às insinuações de estupro de velhinhas, profere ameaças estentóreas de “bengaladas” a torto e a direito. Regozijando-se com a bagunça, mas ainda ressentido por não poder intervir, X aguarda pressurosamente o momento em que Y escreva um dislate qualquer na imprensa, para vir barafustar que “só neste país…”. Então, o processo reinicia-se, alterando-se a ordem dos intervenientes.

 

***

 

Fruto do progressivo definhar dessa relíquia arqueológica que é a imprensa, a polémica acompanhou a transumância dos seus protagonistas para o oráculo contemporâneo: o jornalismo televisivo. Se parte das estrelas que cintilam no firmamento opinativo da televisão despontou cronicamente nesse género hoje anacrónico da crónica, outra porção considerável teve origem menos letrada; e deve essa condição à vigência de uma espécie de Tratado de Tordesilhas mediático, que consiste em repartir os espaços de comentário em função de quotas ideológicas ou, pior ainda, da filiação partidária. Daí deriva essa originalidade lusa que é ter políticos a fazer comentário político: o equivalente a ter um lince ibérico a pronunciar-se, no “National Geographic”, sobre o sucedido na reserva natural da Serra da Malcata.

Em benefício dos neófitos, convém esclarecer que estes espécimes são, geralmente, recrutados para integrar painéis televisivos constituídos segundo a lógica do frente-a-frente. Depois de “A Guerra dos Tronos”, eis a guerra dos monos. Assente na clivagem esquerda versus direita, este modelo de confrontação sistemática pressupõe que, da mera refutação de opiniões antagónicas, se atinge uma síntese esclarecedora, algures num ponto equidistante. E, como vive do fogo-fátuo da dialéctica, promove geralmente a ascensão de um bizarro corso carnavalesco de contrarians – essa figura que exala convicção, gesticula como se fizesse tradução simultânea para língua gestual, e argumenta histrionicamente sobre as desvantagens dos polegares oponíveis ou da invenção da roda.

Numa analogia económica, os pundits que animam estes espaços de comentário podem subdividir-se em dois tipos. Os que integram painéis fixos de comentário são os chamados bens complementares, ou seja, bens indissociáveis porque consumidos conjuntamente (Samuelson e Nordhaus exemplificam com os sapatos do pé esquerdo e do direito); e opõem-se ao que poderíamos classificar como bens substitutos, isto é, os painéis rotativos de comentadores ocasionais, geralmente preenchidos por bípedes aptos a atender o telefone a qualquer hora e que, por isso, são convocados a colmatar as ausências esporádicas dos comentadores permanentes. Com sorte, caso qualquer um destes dois tipos intercale a actividade com o exercício de funções governativas ou parlamentares, pode aspirar a obter um programa de comentário só para si, que lhe outorgue um estatuto senatorial e o dispense das maçadas do contraditório.

Pedindo licença para reincidir no vício da citação (mas não era Borges quem dizia que o ensaio é a arte da citação?), um outro autor, Miguel Tamen, descreve a sua visão desta Idade Média:

 

«O pesadelo arrasta-se até altas horas, mas nessa altura em cinco ou seis canais. […] [A]o balcão, diante de copos com o que é impossível que seja água, um pequeno número de convidados de dedo em riste prolonga este gosto pelo género profético. […] [À]s várias ideias que têm chamam factos. Os factos retribuem o favor e coincidem com as suas opiniões.» [Miguel Tamen, “Erro Extremo”, pp. 23-24]

 

Além das implicações evidentes, esta curta passagem ilustra a relação de absoluta reciprocidade que se estabelece entre o espectador e o comentador: o passatempo predilecto do espectador televisivo é julgar-se mais inteligente do que as pessoas que vê na televisão; o passatempo predilecto do comentador televisivo é presumir a ignorância das pessoas para quem se dirige. Desta perfeita comunhão de vontades resulta que o espectador típico se dedique a insultar, nas redes sociais, quem fala na televisão; e que o comentador típico se dedique a desdenhar, na televisão, quem escreve nas redes sociais. Mas seria injusto exagerar as repercussões nefastas deste rigodão opinativo. Na verdade, trata-se de uma lídima manifestação do espírito democrático: por um lado, é um contraponto ao efeito de “câmara de eco” dos consílios de especialistas; por outro, o comentário televisivo é a única via moderna que oferece a possibilidade de uma carreira no mundo do entretenimento também a pessoas feias.

 

***

 

À semelhança do viajante que vai em excursão ao Vaticano e se irrita com o excesso de turistas, talvez se note o paradoxo de um cronista usar a crónica para desmerecer o ofício de cronista. Qual a razão desta acrimónia face a um género repetidamente qualificado como “menor”? Muitos dos cronistas de renome falam com desprendimento dessa ocupação, aparentando que escrevem crónicas mas que, como Bartleby, preferiam não o fazer; e, curiosamente, todos os citados acima são ensaístas que, em algum momento, vacilaram na denominação a atribuir à sua prosa jornalística, recusando expressamente o termo “crónica”. Académico como eles, Onésimo Teotónio de Almeida deixa transparecer uma possível explicação:

 

«Os jornais são um vício. Um bicho. Não sei se português apenas. Mas confesso essa baixeza, essa inclinação ordinária de me apetecer com frequência enxovalhar-me – sejamos directos –, chafurdar nas colunas dos jornais sem dar ouvidos à convicção de certos universitários portugueses de que a actividade “universitária e científica” se não coaduna com a ligeireza da escrita jornalística. Que hei-de eu fazer?»

[Onésimo Teotónio Almeida, “Onésimo – português sem filtro”, p. 41]

 

Não interessa especular se a aversão à crónica deriva de um preconceito elitista. De resto, se descêssemos uma geração, da legião de epígonos de Miguel Esteves Cardoso (que, aliás, trocou mesmo a universidade pela imprensa) resultaria uma apreciação bastante mais apaziguada com os limites do género, mesmo entre os também académicos. Mais interessante é atentar no “vício” a que alude Onésimo, essa doença crónica de quem gosta muito de escrever, mas não gosta de escrever muito. E para quê?…

Se a crónica é “o ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo”, como a definia Carlos Drummond de Andrade, o seu carácter despretensioso pode ser libertador, se se assumir esse traço eminentemente lúdico. Mesmo quando se afasta da actualidade para abordar assuntos intemporais, o cronista está ciente de que, como no adágio dos antigos tipógrafos, tudo isto, no dia seguinte, é para embrulhar peixe. A crónica não é ambiciosa, não é sublime, não tem a presunção de ser lida na posterioridade; a crónica é humilde, é trivial e nem sempre aspira a perdurar para lá do dia ou semana em que se publica. Mas essa lembrança, assaz instrutiva, da efemeridade cósmica faz da crónica, idealmente, uma diversão passageira da inteligência. Na crónica, a modéstia dos desígnios confere-lhe leveza na forma; a brevidade da prosa incentiva o experimentalismo no estilo, depressa tornado hábito; a regularidade da publicação possibilita o relacionamento imediato do escritor com os incidentes do mundo, sem os disfarces e a dilação da obra ficcional. E, embora a crise da imprensa tenha prejudicado o aspecto comezinho do sustento material, o da gratificação instantânea só se acelerou.

Não concordam? Bom, parafraseando o outro, estas são as minhas opiniões; mas, se não gostarem delas, eu arranjo outras.

 


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Sobre o autor:

José Pedro Almeida nasceu não importa quando, não importa onde, não importa como (sobretudo, como). Estudou várias coisas, mas não garante que tenha aprendido nada; escreveu várias coisas, mas pouca gente as leu e praticamente ninguém ligou; trabalhou em várias coisas, para várias instituições, em vários países, mas já desistiu de contrapor a experiência cosmopolita aos mitos identitários nacionais sobre o chamado “Lá Fora”. Actualmente, prossegue a sua trepidante epopeia no seio do funcionalismo público, uma vida de peripécias diante das quais a de Britney Spears pareceria a de Immanuel Kant. Amante do luxo e dos prazeres refinados, habitualmente, desloca-se de transportes públicos e almoça numa cantina pública – de privados, só tem os vícios. Ainda assim, se tivesse de descrever-se em poucas palavras, diria que é um ser humano exemplar, um modelo de virtudes cívicas e, no fundo, no fundo, uma jóia de moço. Ao contrário de cerca de 79,43% dos portugueses, não está, neste momento, a escrever nenhum romance. Em contrapartida, aceitou escrever esta minibiografia, embora – tal como o outro – preferisse não o fazer.

 

Rinocerontes e chalés suíços
Fotografia de Robert Doisneau.

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