Pyramus and Thisbe, 1639-1641, Johann Wilhelm Baur (German,1607–1642)

Simpatia Inacabada #10

APANHAR AMORAS #2

 

Tudo existe para se transformar em palavras? Nós próprios podemos ser só respiração que deseja transformar-se noutra coisa. Em vez de falarmos em voz alta, murmuramos, como a água a correr, os ramos das árvores ao vento, as abelhas e outros insectos. Música do sentido?

No tempo em que as pessoas escreviam cartas, era preciso ter muito cuidado com as palavras. Nas narrativas epistolares, há sempre alguém que decide trair e desonrar um amigo ou amante que confiou nele de alma e coração, ou que seduz uma vítima para depois a chantagear com as cartas de amor que recebe. Desenrolam-se aventuras intermináveis para recuperar missivas que caíram nas mãos erradas. Umas personagens arruínam-se com dívidas, outras cometem crimes graves ou deslizes com consequências trágicas. Os criados fazem dinheiro roubando a correspondência. 

Podemos eliminar determinadas pessoas das nossas palavras, mas é preferível transformá-las em palavras. Há quem se torne inofensivo e inspirador quando traduzido em palavras.  

Há contextos em que fracassamos porque, por muito que nos esforcemos, não conseguimos achar interessantes os modos como as pessoas usam as palavras. Distraímo-nos, começamos a pensar noutros assuntos, e, quando damos por isso, as pessoas estão a dizer umas coisas e só tarde percebemos que querem dizer outras. Respondemos às palavras que nos dirigiram, não ao seu sentido, e geramos mal-entendidos ainda mais desinteressantes do que as situações em que surgem. Ao mesmo nível das palavras que se tornam perigosas porque dizemos com elas exactamente o que queremos dizer estão as palavras que são perigosas por não dizerem o que querem dizer.

Será viável uma distinção entre pessoas que nos fazem escrever palavras e pessoas que nos fazem dizer palavras? Conhecemos pessoas que nos fazem escrever muitas palavras, mas não dizer muitas palavras. Poucas pessoas nos fazem dizer muitas palavras. Não concordo que tudo seja literatura. E mesmo a tradução raramente é tradução.

Quando se fala de tradução em sentido geral (o esforço de se exprimir o que se pretende dizer),  há uma certa tradição de mencionar qualquer coisa anterior, mais originária ou mais autêntica do que as palavras com que a verbalizamos. Nunca sei o que esta «coisa anterior» poderá ser, e se existe realmente fora das palavras e das aproximações ou traduções que fazemos. Parece-me que o sentido está nas aproximações, não fora delas. As palavras não traduzem nada; quando muito, podemos traduzir as palavras. 

Talvez precisemos sempre de «corpos estranhos» para chegarmos ao que é possível compreender, como concluo de um texto de Bruno Duarte, tradutor de Thomas Bernhard, sobre uma peça inspirada por Minetti. No teatro, temos os actores. Na literatura, temos as palavras e as personagens. Na tradução, temos uma língua diferente.

Sem esquecer o estranho caso do plágio. Num plágio, apropriamo-nos das palavras dos outros como se fossem nossas, apagando o autor. Qual será, na verdade, a dificuldade que tantas pessoas têm de indicar o nosso nome quando falam de alguma coisa que fizemos, ou pensam em alguma coisa que escrevemos? Recearão desse modo fazer-nos existir? Não terão percebido que existimos, mesmo que apaguem o nosso nome? 

Um tradutor é o oposto de um plagiador. Reescreve um texto com as suas próprias palavras e, mesmo assim, tem de assinar com o nome de outro. De certo modo, o autor plagia o tradutor – e é possível que eu própria esteja a plagiar esta frase.

Tenho-me divertido a confundir palavras e amoras.  No discurso de aceitação do Prémio Formentor de las Letras, Pascal Quignard refere a história de Píramo e Tisbe, glosada por Ovídio em As Metamorfoses (IV, 55-166). Nesse episódio, à beira de uma fonte fresca, há uma amoreira alta, carregada de frutos da cor da neve. De repente, aparece uma leoa que quer matar a sede, depois de comer. Como tem a boca manchada do sangue da presa que acabou de devorar, desencadeia uma série de mal-entendidos com consequências trágicas. Além disso, salpica a amoreira, que daí em diante passa a dar só frutos escuros.

De acordo com a sabedoria popular, alguém com medo de vampiros deve plantar uma amoreira à porta. Os vampiros distraem-se com a cor dos frutos, pensando que há ali sangue para sugar, e esquecem-se de entrar.

As palavras são como amoras tingidas com o nosso próprio sangue. Às vezes, deixam um travo ácido e indesejável na boca, entre sementes difíceis de digerir. 

Como lembra Quignard, há sempre felinos a rondar as fontes de que bebemos. Eu própria tenho uma gata preta chamada Amora. Ela às vezes move-se pelo espaço como se rabiscasse coisas com o corpo. Como facilmente passa despercebida na escuridão, entretém-se a armar emboscadas. Por isso, a outra gata da casa passa muito tempo a olhar para o escuro, imaginando que vai ser atacada. 

No Facebook, alguém comentava que, devido aos fortes ventos dos três dias anteriores, tinha o chão cheio de amoras e pássaros. Como os pássaros observam as amoras no chão, as pessoas estudam uma página coberta de correcções, rabiscos, ideias retomadas e em constante reformulação. As palavras estão sempre em movimento. Nos livros, parecem paradas, mas é uma ilusão. Os gatos aparecem furtivamente. Lançam  os pássaros e as palavras em debandada.

Atravessámos o mundo à procura de amoras, quando, afinal, elas estavam no chão da nossa casa.

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