Patricia-Highsmith

Simpatia Inacabada #7

Patricia Highsmith

Na secção literária do The New York Times, procuro sempre a rubrica “By the Book”, um inquérito sobre leituras de escritores ou pessoas ligadas aos livros. Leio em busca de histórias engraçadas ou referências a autores interessantes que ainda não conheça, mas, entre as perguntas recorrentes, há uma que me dá sempre que pensar: “Um grande livro pode estar mal escrito? Que outros critérios são mais importantes?”

Proust escreve bem? Se calhar, a Recherche podia ter uma pontuação diferente, com frases e parágrafos mais curtos. The Waves, de Virginia Woolf, não será um livro demasiado bem escrito? Não há ali uma única frase que não pareça enamorada de si própria. E, no entanto, Proust e Virginia Woolf escreveram grandes livros. Não é totalmente descabido o lugar-comum segundo o qual alguns textos redefinem as nossas categorias de “bem escrito” e “mal escrito”. Talvez, em alguns casos, “escrever mal” seja um golpe de génio.

Traduzindo os Diários e Cadernos de Patricia Highsmith (para a Relógio D’Água) e lendo ou relendo outros livros desta escritora, perguntei-me algumas vezes se ela “escreve bem”. Só com dificuldade encontramos passagens de Highsmith que deslumbrem pelas palavras. Não é uma autora propícia a citações. Fala baixinho, como é aconselhável em situações sinistras e ameaçadoras. Peter Handke, aliás, notou que a estratégia dela é desviar toda a atenção das frases para as acções bizarras e deselegantes das personagens.

Na ficção, Highsmith cultiva uma dicção neutra, que já foi descrita como o estilo de um depressivo que sofre de insónias e é propenso a enxaquecas: tudo parece ter o mesmo peso e valor, restando apenas um confronto de forças quase incorpóreas. Este estilo impassível e a circunstância de escrever livros associados às categorias do policial ou do suspense não contribuíram para que fosse consagrada como uma grande escritora do século XX, apesar de, sobretudo graças ao cinema, se ter tornado um nome mais reconhecido do que alguns que, na sua época, foram mais valorizados como escritores. Lendo só a ficção de Highsmith, podemos ficar com a impressão de que ela escreve assim por não conseguir ser mais expressiva do ponto de vista emocional. A leitura dos Diários e Cadernos, contudo, desmente essa impressão de modo surpreendente.

Em primeiro lugar, confirmamos nestas páginas que descrever o estilo da autora de The Talented Mr. Ripley como “prosa pouco trabalhada” é incorrecto: Highsmith reescreveu os textos laboriosamente antes de os entregar para publicação. E, mesmo depois de ter publicado livros que fizeram sucesso, como Strangers on a Train, teve de lidar com o cepticismo das editoras americanas, que lhe exigiam inúmeras reescritas e reformulações. Por isso, voltava a trabalhar os textos depois destas leituras.

Além disso, encontramos nestas entradas uma voz muito mais sentimental do que na ficção. Aqui Highsmith expõe-se impiedosamente. Passa muito tempo a reflectir sobre as coisas más na sua vida, analisando defensivamente as interacções que tem com as outras pessoas. Descreve as suas relações amorosas pormenorizadamente, em todas as suas discussões violentas, recriminações e reconciliações efémeras.

Paradoxalmente, os momentos menos sentimentais dos seus diários são aqueles em que, em Julho de 1953, relata a tentativa de suicídio de Ellen Hill, que foi uma das mulheres mais importantes na sua vida. São passagens de gelar o sangue. Percebe-se que precisa de recorrer ao tom neutro da ficção para descrever estes acontecimentos.

Ainda assim, tanto na vida como na ficção, o amor (por outras mulheres, pela mãe, pela actividade de escrever) é o principal mecanismo de produção de sentido para Highsmith. A escritora teve algumas relações relativamente longas que, mesmo depois de terminarem, se mantiveram como fonte de inspiração para a sua obra, com todos os ressentimentos que causaram e devaneios que desencadearam. Acontece, no entanto, que, nos seus livros, o amor se transforma em morte – a morte e o crime tornam-se as formas de expressão mais claras e verdadeiras de sentimento.

Facilmente se compreende que a relação entre opostos é um dos temas que mais inspiram esta escritora. Como guionista de banda desenhada, explorou este tópico durante vários anos, mas foi na ficção que o trabalhou com a maior sofisticação, estudando o modo como alguém ou alguma coisa se podem transformar no seu contrário.

Dentro das relações de opostos, há um subtema que Highsmith trabalha de modo particularmente interessante: a ambiguidade de género. Apesar de demonstrar clara preferência sexual por mulheres e preferência por protagonistas masculinos na ficção, Highsmith não considera que um género exclui o outro dentro da mesma pessoa. (Por exemplo, sobre Marlene Dietrich, escreveu que era bela tanto enquanto homem como enquanto mulher.) Tanto na ficção como nos textos diarísticos, temos a sensação permanente de que uma personagem masculina pode a qualquer momento manifestar um comportamento associado ao género feminino – e vice-versa.

Curiosamente, como lembra a biógrafa Joan Schenkar, no interesse pela ambiguidade de género, Highsmith aproxima-se de um escritor com quem, à primeira vista, nada parece ter em comum do ponto de vista estilístico: Marcel Proust. Entre as influências desta autora, Dostoiévski e Edgar Allan Poe são nomes que ocorrem facilmente, mas Proust, apesar de parecer o seu oposto, é uma referência importante para a descrevermos. Highsmith partilha igualmente com ele o olhar que avalia as pessoas socialmente. Contar, calcular, medir e avaliar são impulsos fundamentais quando escreve. (É obcecada com listas, classificações e mapas, em que compara coisas, pessoas e lugares em relação uns aos outros. Chega a fazer uma tabela em que compara os méritos relativos das mulheres por quem se interessou.) Mas, acima de tudo, Highsmith e Proust partilham as ideias de que não há nada mais importante do que escrever e de que a arte sai da própria vida – e é indissociável da vida.

Num diálogo de décadas consigo mesma, Highsmith releu, reformulou, usou e reagiu aos textos dos Diários e Cadernos, onde encontramos registada a origem de todos os seus impulsos criativos. Durante uma vida cheia de viagens e mudanças, não perdeu um único caderno e diário, apesar de vários dos seus manuscritos e objectos pessoais se terem extraviado. Após a sua morte, os volumes foram encontrados bem organizados dentro de um armário. Ao todo, seriam cerca de oito mil páginas. As anotações e correcções que Highsmith fez em algumas entradas deixavam claro que ela imaginava que estes textos seriam publicados e complementariam o resto da sua obra. É inevitável suspeitarmos de que orquestrou tudo isto para mostrar que é uma escritora muito mais complexa do que a ficção que publicou.

Simpatia Inacabada #7
Imagem do filme Swimming Pool, de François Ozon

O filme Swimming Pool, de François Ozon (2003), tem como protagonista uma autora de policiais chamada Sarah Morton. Esta personagem é interpretada pela inesquecível Charlotte Rampling, que, em muitos momentos, assume expressões semelhantes às de Highsmith. No início do filme, a protagonista viaja de metro. Dentro da carruagem, uma das passageiras lê um livro com uma fotografia dela na contracapa. Quando repara nela, pergunta-lhe se é a autora. Sarah Morton responde que não. Esta resposta define imediatamente a personagem como escritora: alguém que é e não é quem é.

Do mesmo modo, sobre si própria, Highsmith explicou que, para escrever, tem de fingir que não é ela. O mesmo impulso, muitas vezes associado aos temas da usurpação ou falsificação da identidade (uma personagem que se transforma noutra, ou era vítima e passa a ser carrasco, etc.) caracteriza os seus protagonistas.

A fuga de uma identidade fixa é um dos temas preferidos de Highsmith, mas também um dos modos como se inscreveu na tradição do Grande Romance Americano. De certo modo, a relação que Highsmith tem com Proust é semelhante à que a sua obra estabelece com o modelo desta tradição: aborda os mesmos temas, mas enviesadamente. Como os autores associados a esta tradição, Highsmith reflecte sobre a identidade americana, mas situando-a fora da América e colocando-a em questão e permanente deslocação.

Assim como os Diários e Cadernos mostram a outra face de Highsmith como escritora, também Highsmith revela a outra face dos tópicos da chamada grande literatura. Fá-lo em voz baixa, disfarçadamente, escrevendo bem e escrevendo mal. Como Sarah Morton no filme Swimming Pool, escreve para demonstrar que não é quem os outros pensam e transforma-se sub-repticiamente no oposto daquilo que pensamos que ela é. Por isso, para compreendermos o que escreveu, convém fazermos como as personagens dela: usarmos grande astúcia e até manipulação.

Simpatia Inacabada #7
Imagem do filme Swimming Pool, de François Ozon

 

Na imagem de destaque: Patricia Highsmith.

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