George_Augustus_Wallis_-_Bouquet_des_peintres

Simpatia Inacabada #9

NOTAS DE VERÃO E OUTONO: RECOMPOSIÇÃO

 

Neste Verão, quando Maya Dunietz começou a tocar Emahoy Tségué-Guébrou no jardim de uma galeria de arte em Lisboa, ouviu-se o vento nas árvores e um bando de andorinhas traçou espirais no céu. Pensei que as andorinhas iam acompanhar o concerto chilreando, gorjeando e trinfando, mas não. O próprio melro que entretanto apareceu acabou por voar para uma árvore. Protestou um pouco, mas depois calou-se. Até os pássaros preferiam só ouvir. 

A vida continuava nos prédios em redor, talvez mais devagar. Algumas pessoas apareceram à janela, para ver o que se passava. Sacudiam toalhas, fumavam, ouviam só, davam-se ao luxo de parar. A pianista comentou que, sempre que tocava esta compositora, toda a gente respirava mais tranquilamente. 

No jardim, as pessoas que assistiam ao concerto estavam sentadas no chão. Algumas fechavam os olhos sem saber. Em muitas, havia expressões concentradas, como se recordassem qualquer coisa que não tinham feito ou compreendido bem. Não era fácil perceber onde a canção terminava e o mundo começava – o vento nas árvores, o nosso coração a bater.

No primeiro volume das Três Conferências (Edições do Saguão), a propósito do ensaio «A Tarefa do Tradutor», de Walter Benjamin, Maria Filomena Molder comenta que o sentido é tocado pela linguagem do mesmo modo que uma harpa eólica é tocada pelo vento – o sentido ressoa quando o vento quer, quando dedilha a harpa que é o coração do tradutor. 

Não se fala o suficiente sobre o coração dos tradutores. Num destes dias, pensei: trabalho com palavras há demasiado tempo; habituei-me a procurar o sentido e facilmente me desligo do sentimento. Mas não é verdade. Estou constantemente exposta às emoções das personagens e dos narradores dos livros, comovo-me por tudo e por nada enquanto trabalho e, quando não traduzia, havia muito menos sentimentos disponíveis no meu coração.

Tenho quase a certeza de que tudo começou com uma frase bastante curta, num dos primeiros livros em que trabalhei. Ainda hoje penso nela, nessa frase – queria muito alterá-la. Na altura, modifiquei essa tradução várias vezes, sem ficar satisfeita com nenhuma das soluções. Nem sequer me considero uma pessoa emotiva, mas, sempre que relia essa passagem, as lágrimas caíam sozinhas sobre as páginas, o que não é a melhor técnica de tradução.

Os tradutores têm demasiados motivos para chorar. Por dificuldade do texto. Por obscuridade do texto. Por ilegibilidade do texto. Por incompreensão. Por cansaço. Por exagero das próprias incapacidades. Por frustração. Por acabarem a tradução. Por darem início à revisão. Por causa das correcções. Desta vez, no entanto, não era uma frase difícil de traduzir. O problema tinha de ser o conteúdo, a sobre-exposição às emoções.

Havia crianças pequenas no concerto no jardim. Três meninas, vestidas de princesa, uma delas com tiara, davam particularmente nas vistas. Corriam e dançavam em torno do palco; a dada altura discutiram acirradamente. Pareceu-me que já as tinha visto num jornal inglês que tem uma secção em que se publicam boas fotografias captadas por telemóvel. Numa dessas fotografias, depois de um dia esgotante na praia, elas discordavam, entre solavancos, dentro de um eléctrico em Maiorca. De acordo com o fotógrafo, debatiam os pormenores que iam anotar sobre aquele dia nos diários que tinham acabado de receber. 

No concerto e na fotografia, estas meninas de vez em quando quezilentas e sem paciência para estarem paradas durante muito tempo podiam ser uma espécie de corporização da nossa cabeça desassossegada, sempre inutilmente à procura de sentido e emoção. Ao mesmo tempo, eram o próprio espírito inabalável do Verão. 

De acordo com a idade que temos, vamos reagindo de modos diferentes às estações. Inicialmente, associamos o Verão ao ócio e à liberdade, mas, com o tempo, temos de nos esforçar por lhe sobreviver, distribuindo as suas actividades e imagens pelas outras estações. Esta redistribuição é possível porque nem sempre as características que nos ensinam para distinguir as estações têm aplicação. Já há Outono no Verão. Há Primavera num Inverno em que, debaixo do peso e da inércia da terra, as sementes esperam, sem saberem o que vai acontecer. «Custa muito mudar de pele» teria sido uma solução muito mais satisfatória para a frase que não traduzi bem.

No livro Collect Raindrops: The Seasons Gathered, Nikki McClure estuda as estações do ano, ilustrando as actividades típicas de cada época e associando um verbo a cada ilustração. Entre os verbos do Outono, encontramos: trocar, dar valor ao que conta, nutrir, cometer erros, recordar, encantar, tentar, cultivar para os outros, recolher, preservar, celebrar, partilhar, trabalhar cuidadosamente, transmitir, votar, salvar, aceitar, abandonar, fazer contas, gerar, envelhecer, sobreviver.

Simpatia Inacabada #9
Fotografia de duas páginas do livro Collect Raindrops: The Seasons Gathered, de Nikki McClure.

A seguir à página dedicada a «recordar», em que um gato inspecciona uns frutos que tombaram das árvores, um vulto humano, na ilustração associada a encantar, encontra cogumelos debaixo dos ramos emaranhados de uma árvore. Os tons sombrios da ilustração de Nikki McClure criam uma atmosfera misteriosa que sugere que, ali, «encantar» não significa «cativar» nem «deslumbrar». Como nos encantamentos dos contos de fadas, parece haver perigo se compreendermos mal as personagens e a situação – e esta suspeita de perigo dá cor à ilustração. Curiosamente, há uns anos, traduzi um romance com uma cena semelhante e o protagonista era tradutor.

Estas são as imagens do Outono, segundo McClure, mas a música de Emahoy, as crianças indisciplinadas e dadas à discussão, o vento nas árvores e o desconforto de estar sentada na relva durante um concerto são as imagens que levo deste Verão, como uma espécie de lanterna acesa, para, durante os próximos meses, iluminar o chão.


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Imagem do cabeçalho: George Augustus Wallis: Français, Le Bouquet des peintres.

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