Artista da vida

 

No espetáculo Abstract, de Cão Solteiro e Vasco Araújo, um grupo de cerca de seis jovens que entra palco adentro, pelo fundo, vestido com hoodies pretos e segurando sacos de plástico brancos nas mãos, distribui um texto ao público: “Vida de artista” de Alexandre Melo. O texto apresenta-se como escrito propositadamente para o espetáculo e nele o teórico e crítico de arte pensa sobre a vida de artista. Antes de uma breve “síntese expeditiva” da história europeia da figura de artista, Alexandre Melo pergunta, a abrir o ensaio: “O que é uma vida de artista? Como é uma vida de artista?”. 

As respostas não escondem a dificuldade, como seria de esperar, porque “ser artista é uma coisa nem simples nem fácil nem para se viver nem para se explicar.” Neste aspeto, acrescentaria eu que a vida de artista não se distingue de muitas outras pois que as vidas são em geral difíceis de explicar e tantas vezes difíceis de viver. Percebe-se, porém, tendo em conta a mitificação da figura e o historial das suas descrições, mas também a experiência da “vida real”, a que dificuldades se refere Alexandre Melo: financeiras, sociais ou criativas. Mas é no momento em que o autor nomeia “o núcleo central fundador da existência da palavra arte” que chegamos ao aspeto onde parece concentrar-se a maior dificuldade. O núcleo, diz, é o “processo de trabalho”, o que “artistas fazem”. 

O espetáculo de Cão Solteiro e Vasco Araújo parece ser em alguns momentos a representação desse fazer de Sísifo, como aponta Maria S. Mendes num outro texto entregue pela companhia, neste caso como parte de um caderno que se recebe à entrada: um “trabalho que cheg[a] para a eternidade”. Em palco, uma pessoa empilha copos para construir uma pirâmide que, de tanto crescer, acaba por ceder e desfazer-se em cacos; uma outra experimenta, com projetores e computadores, os efeitos da projeção no teatro de imagens abstratas ou memes; e ainda outra, o artista Vasco Araújo, desenha linhas sobre uma enorme superfície de papel de cenário estendido no centro do palco. Depois de marcar o papel com alguns traços de tinta, o artista acaba por levantar o papel e amarrotá-lo para o amontoar numa pilha de papel gigantesca que se vai formando como um monstro de trabalho inconsequente. Feito isto, recomeça a tarefa com um outro papel. Estamos a assistir ao trabalho de artistas, numa representação que corresponde a um conjunto de ideias familiares que dele temos: lento, falhado, inconsequente, lúdico e infinito. E o passar do tempo vai-se marcando por mudanças de roupa (os figurinos de Mariana Sá Nogueira), quase impercetíveis, porque repetindo os mesmos tons: pretos e brancos ordenados em diferentes padrões. Acrescenta-se um casaco, um chapéu, troca-se de camisola, mas o preto e o branco nunca desaparecem.

Alexandre Melo reconhece como identificador do trabalho de artista a “experimentação e a inovação” ou o “ecletismo”, mas o que provavelmente melhor o caracteriza seja o facto de “o artista [ser] obrigado a fazer aquilo que quer.” Existe “um grupo de pessoas” que está “condenado” a “fazer o que quiser na condição de inventar o que quiser fazer”. Isto significa “que há um grande momento em que alguém decide, aceita ou reconhece que é, já é, sempre foi ou vai ser artista, talvez para sempre. Um momento que com variantes se repete cada vez que se acorda e se pergunta ‘o que é que vou fazer hoje’ (…) O artista não pode responder nada. Porque não há nada que não possa para o artista ser trabalho.”

Esta conclusão presta-se a duas leituras. Uma, romantizada, que provavelmente leva a que algumas pessoas, no início de vida, decidam ser artistas. Outra, materialista, que provavelmente leva a que algumas pessoas, no meio da vida, desistam de ser artistas. O trabalho de artista, que o espetáculo Abstract nos mostra, estará mais próximo do primeiro entendimento de trabalho. E será por isso que não se sente angústia ou cansaço. Este primeiro modelo de trabalho corresponde a ações como pintar, escrever ou dançar… É o trabalho artístico que é celebrado no momento em que as artistas do espetáculo se juntam em palco às jovens de hoodies que nos entregaram o texto, bebendo vinho e cerveja e trincando acepipes. Por oposição, existe um outro modelo de trabalho, a que corresponderão fazeres como orçamentar, redigir candidaturas, reunir com instituições ou limpar o estúdio. Este segundo trabalho é o “verdadeiro trabalho de quem realmente trabalha, ou seja, de quem não é artista” (A. Melo), o trabalho invisível que se faz, por exemplo, no final do espetáculo, a desmontagem. E assim podemos caracterizar a vida de artista como acumulando dois trabalhos: um trabalho que não é trabalho e um trabalho que é trabalho e que é o trabalho para “ganhar a vida”. O que se percebe, tanto no espetáculo como no texto de Alexandre Melo, é que esta divisão entre os dois trabalhos nem sempre é clara na vida de artista. As tarefas atropelam-se, porque se a pirâmide de copos tomba, os cacos terão de ser varridos.

No espetáculo do coletivo Truta no Buraco, Boa tarde, morreram todos, uma atriz, Andreia Farinha, descreve, durante largos minutos, a sua vida de artista, desde a infância no Alto de São João em Lisboa aos trabalhos sucessivos de atendimento ao cliente. Estes relatos são pontuados e interrompidos por uma música e pela entrada de cadáveres em sacos, que simbolizam a vontade da Andreia em matar algumas das pessoas com quem se foi cruzando na vida. A certa altura refere-se a uma gerente de loja com quem trabalhou e que a irrita particularmente e por dois motivos: por carregar nos diminutivos (Andreia fala-nos da sua insistência na palavra “faturinha” – “vai querer faturinha?”) e por gostar de trabalhar. “Quem é que gosta de trabalhar?!”, pergunta-se a Andreia como se proferisse a pergunta mais absurda que se possa imaginar. 

Andreia parece estar a falar do “verdadeiro” trabalho que vai financiando o trabalho artístico, o trabalho que se opõe e até destrói o trabalho artístico, na medida em que é a comparação entre dois trabalhos que menoriza o primeiro e valoriza o segundo. Não podemos contudo estar certos deste entendimento porque a verdade é que Andreia e o coletivo artístico Truta no Buraco fizeram um espetáculo anunciando a constituição de uma empresa especializada no negócio de matar pessoas, ramo de negócio que consideram que lhes permitirá “ganhar a vida”. Não ficamos a saber se este trabalho será ou não executado com gosto (“quem gosta de trabalhar?!”), mas sabemos que uma artista, como diria o programador e artista Pedro Barreiro, “está sempre a trabalhar”. Estou a citar, traduzindo do inglês, a “peça performativa” de Barreiro, que teve início a 11 de novembro de 2020 “e que continuará ininterruptamente por período indeterminado” e cujo andamento podemos seguir num site que nos dá conta da localização do artista (no momento em que escrevo este texto, Pedro Barreiro encontra-se em Lagos, no Algarve) bem como do número de ideias que já teve (237 até ao momento em que escrevo este texto). Neste caso, acumulando ainda para mais o artista em causa o trabalho artístico com o de programador e diretor da estrutura artística “O Espaço do Tempo”, sediada em Montemor-o-Novo, a indistinção entre trabalhos é ontológica. Uma artista está “condenada” a fazer para ser.

Há artistas que fazem questão de sublinhar a centralidade do trabalho na sua vida. Parecem muitas vezes reagir à acusação de que não passarão de parasitas sociais ociosos – “Vai trabalhar, malandro!”. As artistas precisam, pois, de provar ao mundo que são merecedoras do mundo. Quantas vezes não se reage ao discurso da diletância demonstrando, por excesso, o contrário e insistindo na valorosa contribuição de artistas para a sociedade. Quantas vezes não ouvimos artistas queixarem-se do excesso de trabalho, dos horários infames, da ausência de férias ou folgas. Ao fazerem-no, os artistas caucionam, porém, um sistema que tantas vezes criticam por impor produtividade e ser alimentado por corpos precários que apenas existem quando fazem. O valor do trabalho e do fazer artístico fica assim refém de uma ideia de desgaste físico, esforço e competição. É desse trabalho que Andreia se ri. Como é possível gostar de sofrer? Porque é necessário defender um sistema de recompensa, que premeia o esforço? Por que razão tem a ação ou a participação na sociedade de estar associada a um sacrifício e à ausência de prazer? 

A minha companheira de vida, que é artista, confessou-me, já mais do que uma vez, que está mais interessada em fazer da vida um projeto artístico do que em fazer da arte um projeto de vida. Fazer da vida arte é transformar uma vida de artista numa artista da vida, colocando ao centro a vida (e a morte, como escolheu fazer A Truta no Buraco) e colocando a arte ao seu serviço. Este projeto artístico implica esforço, dedicação, tempo e amor, como muitos trabalhos. Não é eterno porque é mortal, nem infinito porque não produz objeto, mas também consegue escapar mais facilmente às malhas da produtividade que se acumula em armazéns e bibliotecas, porque não requer, para se fazer, uma conclusão. Uma vida implicada num trabalho que é a vida não é um espetáculo, nem uma obra de arte, não é um texto nem um site, mas implica viver com ecletismo e querer o experimentalismo e a inovação, bem como a invenção e a imaginação. Fazer da vida um projeto artístico é pois um trabalho que não é trabalho, porque é vida, mas que é trabalho porque é vida, oferecendo-se como alternativa a quem não gosta de trabalhar.

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Imagem de divulgação de Abstract, de Cão Solteiro e Vasco Araújo

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