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Andar e cair

Quando uma criança cai desamparada na rua (e é frequente as crianças caírem), logo um adulto prestável estende o braço para a levantar, os pais correm para a libertar do chão e a criança atarantada mostra no olhar uma espécie de incompreensão perante a movimentação e a rapidez da reação crescida. Não a deixam estar no chão, deitada, porque a prostração é sinal de dor, de incapacidade ou de vergonha. Reza a história que a evolução do ramo humano da família dos hominídeos se dá graças à elevação, de quadrúpedes a bípedes, e ninguém quer uma criança primata de há 7 milhões de anos. Eu fico muitas vezes com a ideia de que a criança, por ela, ficava mais um tempo estendida, a apreciar a calçada. Estou aliás convencido de que a frequência das quedas, para além da força da gravidade e da inocência motora, tem também que ver com uma atração não só pelo solo mas pela horizontalidade e que, portanto, a ajuda que o adulto presta é impulsionada por um processo de aculturação, desta mania humana de procurar a verticalidade da stand-up tragedy, como se apenas o lugar ereto (não será patriarcal?) fosse digno de espetáculo.

Mudo de parágrafo para não seguir o trilho do simbolismo tentador do sentido figurado. Até porque é possível que me digam que o episódio apenas demonstra o cuidado protetor das pessoas adultas, o amparo do desamparo, pretendendo-se com esta explicação contribuir com a autoridade de uma análise “objetiva” da situação – como se a objetividade não fosse também ela figurada… Para continuar no domínio da queda, prefiro então pensar no que se passa com a criança como coisa que também se passa comigo, porque já me aconteceu, em idade adulta, cair. A mim e a pessoas próximas. Por exemplo, uma pessoa que escorrega num leite derramado no supermercado fica estatelada no chão e, sem ter tempo para perceber o que acabou de se passar, sente uma mão a puxar-lhe o braço para que se levante. “Levante-se, sente-se aqui” é a ordem impositiva com que a ajudam, tentando reduzir ao máximo o período da prostração, ao mesmo tempo que perguntam se está tudo bem. Isto porque no chão não se está bem, o (sub)solo é para quem morre.

O mais recente espetáculo da artista trans Gaya de Medeiros, Baque, que vi no Teatro do Bairro Alto em Lisboa, começa com a própria deitada, coberta por tecido e roupas. O público vai entrando e o espetáculo não começa e o corpo de Gaya de Medeiros mantém-se imóvel no chão, desamparado, talvez morto. A certa altura, entram no palco outras pessoas que a destapam revelando um corpo nu e inerte, de barriga para baixo, a bochecha da face esquerda espalmada contra um tapete de relva artificial e os braços estendidos ao longo do tronco, com as palmas das mãos para cima. Pouco depois, o corpo, provando-se vivo, começa a falar, sem nunca se erguer ou ainda mexer, para um microfone que está deitado junto à boca. Dirige-se ao público, tranquilizando-nos e garantindo que não se irá colocar de barriga para cima, que não se irá levantar. Não seremos confrontados com “as vergonhas” da artista, não haverá nudez frontal. E nós rimo-nos ao espelho do nosso desconforto, enquanto ela se arrasta, em esforço, até ao centro do palco, como uma cobra, brincando com a idiotice da sua proposta de movimento que torna a deslocação desgastante.

O que Gaya de Medeiros nos mostra é que, neste caso, hesitaríamos em puxar o braço e erguer aquele corpo, devolvendo-o à vida, porque, por pudor, não queremos expor as suas “vergonhas” – sendo que a vergonha é da norma. Deixá-la-íamos morta. Mas a prostração de Gaya de Medeiros é também um modo de resistir, com humor vivo e negro, a uma física da gravidade. Numa conversa após o espetáculo, a Alice Azevedo, atriz, artista e ativista, na sessão do Clube Espectador que moderava, referiu-se aliás a este momento inicial como “lie-down comedy”. Aquele corpo resiste para nos provar, por um lado, a possibilidade daquela pessoa  atuar deitada, de nos fazer rir deitada, de se sentir amparada na prostração e de, por outro, nos mostrar a sua (in)capacidade de resistir a um mundo onde se quer corpos trans deitados, ou seja, tapados, ou seja, mortos. Por “vergonha”. Depois deste número, e durante o espetáculo, Gaya de Medeiros continuará a andar e cair.

O direito a cair é cantado por Laurie Anderson, em “Walking and Falling”, que talvez não o pense como direito mas como tropo:

“You’re walking. / And you don’t always realize it, but you’re always falling. / (…) Over and over, you’re falling. / And then catching yourself from falling. / And this is how you can be walking and falling at the same time.”

“Andar e cair” não é uma sucessão, mas uma simultaneidade: caímos e andamos “ao mesmo tempo”. Um desafio à física da gravidade. Se a gravidade serve para justificar a queda da criança na calçada ou da adulta no supermercado, as leis da física da gravidade não leem quem “anda e cai”. Andar e cair também não é caminhar em gravidade zero, nem amparar o desamparo. “Catching yourself from falling” é “apanhar-se a cair”, que corresponde não apenas à ação física de amparar a queda mas também de se aperceber, de tomar consciência, como quem se apanha a cometer o mesmo erro duas vezes – “apanhei-me a fazer isto” -, o que reforça a sua ilegibilidade dentro da física da gravidade (zero) que não só não acompanha a simultaneidade de significados que a palavra contém como é incapaz de descrever um andar que cai.

Andar é cair, da mesma forma que falar é tropeçar. A comparação entre andar e falar surge-me inevitável por culpa da escrita de Laurie Anderson, mas também do microfone de Gaya de Medeiros que amplifica as palavras e das mãos que nos levantam quando caímos perguntando se está tudo bem e da semelhança entre tropo e tropeção que, qual cereja no topo do bolo, e de um modo poético a que prefiro chamar cósmico, permite juntar as peças deste puzzle disforme que se compõe na queda, horizontal, no solo.

Tropo, palavra bonita para o que muitas vezes também designamos de figura de estilo, sentido figurado e coisas assim, implica, etimologicamente, uma mudança ou volta. A filósofa e cientista Donna Haraway gosta de equiparar a língua a um desvio. No “Manifesto para espécies de companhia” escreve: “Tropo (do grego tropós) significa desviar [swerving] ou rodear [tripping]. Todas as línguas têm desvios e rodeios [swerves and trips]”[1]. E, de facto, se falamos e caímos, também é verdade que caímos e falamos, em tropos como “morte”, “desamparo” ou “infância”. Tropeçamos [“trip”] no tropo que nos ampara e embrulha na língua explorando a possibilidade de a tornar horizontal, de a fazer “andar e cair”, se possível sem vergonha por não nos querermos erguer, como é suposto aos bípedes. Laurie Anderson e Gaya de Medeiros contam que, de pé ou deitados, estamos sempre em queda. O bipedismo não é o contrário da prostração. O tropo da verticalidade não serve para este tropo que anda e cai. É uma outra física. A física que está presente na língua que se usa e transforma.

 

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[1] Tradução de Ana Maria Chaves na edição portuguesa da Orfeu Negro.

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