Teatro, romance e quotidiano

 

Em 1937, Somerset Maugham publicou um romance chamado Teatro, que conta a história de um casal (ele empresário e ex-ator e ela atriz e vedeta) centrada na figura feminina, Julia Lambert, que se envolve num caso extraconjugal com um jovem contabilista. O que mais me diverte no romance é o modo como Maugham se apoia nos lugares-comuns associados à figura do ator em geral e da atriz em particular. A descrição que o filho Roger, de 18 anos, faz da mãe Julia Lambert é exemplar: “Tu não existes, não passas dos inúmeros papéis que representaste (….) Se te descascássemos como descascamos uma cebola das suas cascas de enganos e insinceridade, de pedaços de papéis antigos e de farrapos de emoções falsas, será que no final chegaríamos a ver uma alma?” 

A ausência de alma ou de essência corresponde ao estereótipo do ator que está sempre a representar, mesmo quando não em palco, e que de tanto o fazer passou a ser nada. Simula-se assim a descrição retirada de O paradoxo do ator de Diderot: “C’est parce qu’il n’est rien qu’il est tout par excellence” [É porque o ator é nada que é tudo]. Sabemos que esta ausência de alma, ou ser nada, se utiliza como insulto para rebaixar as características de um indivíduo. Não tem espinha dorsal, é um vira-casacas, não acredita em nada… Pessoas assim, sabe-se também, mentem, não porque queiram fintar a verdade, mas porque não têm sequer consciência dela. Para elas, a verdade não existe, tal como a alma (o Eu) não existe. 

A associação da verdade à identidade (ser autêntico é ser verdadeiro), bem como à unidade e à essência, é antiga e metafísica. Deste ponto de vista, Julia Lambert, se aceitarmos a descrição de Roger, escapa à metafísica ou nega-a. O seu nada é ser tudo. Não há o nada, mas há o tudo e ser tudo permite a expansão dos limites. Para alguns, por isso, o ator é a figura representativa de uma outra ideia de sujeito que não está presa a essencialismos metafísicos e concordâncias harmoniosas, nem tem vergonha da contradição. 

Ao longo do romance, a atriz confunde o seu discurso com falas de peças em que atuou ou mostra-se consciente de tudo o que faz ou diz, como se estivesse sempre a observar-se de fora, típicos comportamentos de um certo modelo da profissão. A atriz é espectadora de si própria e controla ativamente o seu comportamento e as suas emoções. Mesmo quando triste, é capaz de desenhar a tristeza com o rosto de modo a impressionar-se a si própria ou quem a estiver a observar. Está sempre a atuar, representando o estereótipo de quem não sente o que diz sentir e assim ilustrando o paradoxo diderotiano de que o ator será tanto mais eficaz a produzir emoções no espectador quanto menos sentir as emoções que representa. A própria Julia Lambert fica por vezes confusa com as suas capacidades paradoxais, mostrando-se incapaz de distinguir palco e mundo ou ficção e realidade, esses casais com história no teatro. 

Há disto um momento exemplar, no livro de Maugham, quando Julia Lambert tenta reconquistar Tom, o jovem amante, que está zangado, declarando-se ferido por uma maldade perpetrada pela atriz. Ela sabe que o magoou e não se mostra arrependida, mas quer convencê-lo a reatar a relação. Para isso chama-o ao camarim, no final de um espetáculo, e prepara uma cena para o persuadir e que, a certa altura, é descrita assim: 

[Julia o]lhou-o mais uma vez. Sempre conseguira chorar com facilidade e estava a sentir-se tão triste naquele momento que não precisava sequer de se esforçar. (…) Ela era capaz de chorar sem fungar, com os seus olhos escuros maravilhosos, numa face quase austera. Caíram por ela lágrimas grandes e pesadas. E a sua quietude, a imobilidade daquele corpo trágico, eram extremamente comoventes. Já não chorava assim desde ‘Stricken Heart’. (…) 

E a cena termina com Tom a chorar emocionado com o desempenho de Julia, como se tivesse acabado de ver um espetáculo comovente: “Ajoelhou-se e abraçou-a. Estava destruído.”

Percebemos que toda a cena, executada no camarim, bastidores do palco transformados em palco, foi preparada (ensaiada) previamente com o objetivo de produzir um efeito no espectador. Acontece, porém, que, de acordo com a descrição, não há só um espectador naquele camarim. Na mesma página, Maugham escreve:

Ela não olhava para o Tom, olhava em frente; estava mesmo distraída com a tristeza, mas o que era aquilo? Um outro Eu dentro dela sabia o que ela estava a fazer, um Eu que partilhava com ela a infelicidade e que, no entanto, observava a sua expressão. Sentiu que ele empalidecia.

A distração de Julia com a tristeza é a distração consigo própria. Um “outro Eu” observa a expressão da sua tristeza, ao mesmo tempo que observa quem a está a observar, não deixando escapar a palidez de Tom.  O ator é de tal maneira tudo, que ocupa o lugar de protagonista e de espectadora da protagonista e de espectadora dos espectadores, reproduzindo a sensação de uma pessoa que está tão atenta ao modo como é percecionada quanto está atenta ao que está a fazer. Sobe as escadas, atenta aos degraus para não tropeçar, e vê-se a si própria, distraída, a subir as escadas atenta aos degraus para não tropeçar. E consegue fazer ambas as coisas em simultâneo, num exercício de virtuosismo que acumula a distração com a atenção, como quem anda e cai. 

O voyeurismo é um pecado bem mais comum nas representações femininas da profissão do que nas masculinas. Julia Lambert procura um espelho onde possa observar a sua atuação e a observação dá-lhe prazer, correspondendo assim à imagem da atriz com uma sexualidade lasciva, narcisista e escopofílica, a atriz que projeta o seu corpo para o outro. Sabemos quem é esse outro: o macho que esconde a sua atuação e o seu domínio por trás dos “maravilhosos olhos escuros” da atriz. O estereótipo não é novidade. Há um famoso ensaio, escrito em 1975 pela crítica feminista Laura Mulvey a propósito do olhar masculino e do “prazer visual” no cinema mainstream norte-americano deste período e das décadas que se seguiram, em que a britânica demonstra como o inconsciente da sociedade patriarcal estruturou o cinema de Hollywood. A mulher serve de objeto erótico para as personagens do filme e para o espectador na sala, produto do olhar e diversão masculinos, “controladores ativos do olhar”.

A possibilidade de ser tudo, em Julia Lambert, esbarra por isso contra a representação masculina que a objetifica. A atriz afinal é nada, ou melhor, a atriz é o desejo patriarcal. O paradoxo do ator não funciona para todos da mesma forma. Ser nada, para alguns, é mesmo ser nada. 

A comoção de Tom, que pretende representar a fragilidade masculina, percebemo-lo pouco mais tarde no romance, é falsa. O jovem amante aproveita-se financeiramente de Julia Lambert e não lhe é fiel, trocando-a por atrizes mais jovens. Julia Lambert é que está fragilizada, como uma espectadora a ser enganada pelo que se passa em palco, a comover-se com quem está a fingir comoção. Porque, como descreve Diderot, o melhor ator é um trapaceiro: “o seu talento consiste não em sentir (…), mas em transmitir os sinais exteriores do sentimento de modo tão escrupuloso que vos engana”.

 A Julia Lambert espectadora, a que observa as lágrimas pesadas que caem pela sua face austera, julga-se a assistir ao seu próprio espetáculo quando, de facto, está a assistir ao espetáculo de Tom. É ele o protagonista, mas Julia não se apercebe porque é ludibriada por Tom e, ao ser ludibriada, é-o por si própria, num contorcionismo ontológico difícil de acompanhar. Parece aquela conhecida litografia de Escher em que mãos se desenham a si próprias, aqui porém com o apimentado de se enganarem a si próprias, voluntariamente e ativamente, enquanto se desenham. Julia representa para Tom o que Tom quer que ela represente porque Julia é nada e vive como nada que é, enganando-se a si própria, espectadora e atriz. Ao contrário do que possa parecer, não há uma terceira mão escondida, a verdadeira que tudo estrutura e esclarece, a atuar em segredo: a mão de quem escreve tudo isto está ela própria a ser enganada pelo que escreve.

Quantas vezes não nos apercebemos do que estamos a ver? Ou seja, quantas vezes não somos enganadas pelo que vemos? Quantas vezes não nos enganamos, propositadamente, como forma de sobrevivência ou de estar? O teatro, nestas descrições, é a representação do engano quotidiano. Ou então é ele próprio o quotidiano, como a atriz ou o ator são o quotidiano. Se o quotidiano, o que se passa fora do teatro, é metafísico ou masculino, o teatro provavelmente também o será, porque são pessoas, que vivem também fora do teatro, que fazem o teatro. Mas também porque, entre teatro e mundo (ficção e realidade) não há fronteiras. Quando está em palco ou no camarim, dentro ou fora do palco, Julia Lambert comporta-se da mesma forma, observando-se sempre com os olhos de um Eu que é de um outro género e que é metafísico, e comovendo-se e distraindo-se consigo própria.

Somerset Maugham sabe o que é um ator ou uma atriz. Ele conheceu muitas atrizes, como afirma no prefácio do livro. Nenhuma delas serviu de inspiração direta para o romance, mas, segundo escreve, foi o conjunto de conhecimentos que o ajudou a escrevê-lo e a chegar a Julia Lambert. O problema deste conhecimento é que, sendo o ator uma figura traiçoeira e trapaceira, ninguém sabe quem ele é. E assim sendo, Maugham sabe e não sabe o que é um ator ou uma atriz, embora esteja convencido de que sabe. Maugham é um ator espectador ludibriado pelo seu próprio desempenho de escrita e Julia Lambert é uma atriz que é um ator, um nada que é os olhos do ator-escritor-espectador enganado, que tenta controlar a representação, consciente em simultâneo de que tudo lhe escapa, até o teatro que é o romance. Tudo escapa.

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