Gosto de democracia e dedico uma parte substancial do meu tempo a essa causa. Mas, regra geral, aborreço-me ao ler textos sobre ela. Tal como a maior parte das abstracções que reúnem simpatia generalizada entre o público, o tema é um “clássico” para a escrita de textos quando a inspiração escasseia. No artigo deste mês para a Almanaque, vou viver perigosamente.
1. Entre o tanto que se escreve sobre a democracia, raras são as ocasiões em que ela é tratada da minha perspectiva favorita. Não faltam longas odes à democracia enquanto ideal ou valor político; nem discussões acesas sobre se o partido X, o acontecimento Y ou o fenómeno social Z são ameaças à democracia; ou, de forma ainda mais soporífera, apelos à sua protecção como se estivéssemos perante os últimos dois pandas férteis. Então o que falta? Reflexões que tratem a democracia como uma tecnologia: uma tecnologia de decisão colectiva, uma forma de agregar as vontades de muitos para definir um curso colectivo de acção.
Como qualquer ideia, esta pode ser entendida de uma forma mais restrita ou mais abrangente. No primeiro caso, as nossas limitadas democracias actuais seriam uma tecnologia assente em processos como a escolha dos governantes através de eleições; as normas jurídicas que regulam o exercício do poder; os direitos dos cidadãos e o funcionamento das instituições políticas. Se optarmos por pensar a nossa actual “tecnologia democrática” em termos mais abrangentes, então esta incluiria adicionalmente a maquinaria social que cria e sustém uma imprensa livre, uma sociedade civil plural e vibrante, etc. Em ambos os casos, a democracia surge-nos como um processo complexo para atingir um fim, resultado de uma aprendizagem e evolução ao longo do tempo. Ou, resumidamente, uma tecnologia.
2. Ora, calha que nós, humanos do início do século XXI, se há uma coisa em que acreditamos mesmo é nos deuses da inovação tecnológica. Em particular quando olhamos para a tecnologia digital, a lição só dificilmente poderia ser mais clara: tudo avança todo o tempo. Morreu recentemente um dos fundadores da Intel, Gordon Moore, a quem devemos a epónima “lei de Moore”. Foi essa sua observação que gravou na consciência de muitos a ideia do avanço inexorável do poder computacional. É esse avanço do poder computacional, combinado com a inventividade humana, que está por detrás de muito do que aparenta ser a constante inovação tecnológica no plano digital.
3. Ao pensarmos na democracia enquanto uma tecnologia, subitamente torna-se “natural” comparar a sua evolução com a das outras tecnologias que moldam aspectos-chave do nosso quotidiano. Afinal, essas tecnologias são as formas que desenvolvemos, ao longo do tempo, para dar resposta a algumas das nossas mais fundamentais necessidades práticas: como construímos os espaços que habitamos; como nos alimentamos; como nos deslocamos entre o ponto A e o ponto B; como comunicamos; como decidimos em conjunto.
4. Sugiro que uma parte importante da nossa experiência contemporânea de “frustração democrática” resulta justamente da comparação, mesmo que inconsciente, entre a estagnação das nossas formas de fazer política com a rápida evolução da tecnologia – em particular da tecnologia digital. As sociedades em que vivemos prestam culto à inovação e assumem-na como um elemento necessário e definidor do seu próprio sucesso. Enquanto consumidores, aprendemos, desde tenra idade, a esperar – e a exigir – inovação. É fácil escutar, no nosso ouvido mental, o choque e a desaprovação com que alguém exclamaria “tu acreditas que o novo modelo da Samsung tem os mesmos 8GB de memória que tinha o modelo do ano anterior?!”.
No entanto, enquanto cidadãos, a norma é a imutabilidade dos mecanismos como nos governamos. Apenas nos é permitido o fraco consolo de periodicamente optarmos por outro elenco de governantes, uma mudança com impacto limitado nas políticas públicas. (Esticando ao máximo a analogia com os telemóveis, seria talvez o equivalente a trocar um Samsung por um Huawei idêntico.)
Vivemos, sim, em sociedades onde a inovação está largamente compartimentalizada em dois domínios: a tecnologia e a arte. Ambas são vivamente celebradas, pois – num mundo onde, de uma geração para a seguinte, a ordem social se vai reproduzindo de maneira fiel e o sistema económico que originou a crise climática e ambiental continua inalterado – são a tecnologia e a arte que nos ajudam a manter a fantasia de que as nossas vidas se desenrolam num sistema com abertura à novidade e à mudança.
5. Alguns obstarão, razoavelmente, que os riscos da inovação nos mecanismos de governação são maiores do que, por exemplo, os perigos que advêm de novas tecnologias digitais. Seria justificado, por isso, maior conservadorismo (no sentido de aversão ao risco) e cautela ao repensarmos como somos governados.
6. Como é óbvio, é desejável ponderação ao introduzirmos mudanças em algo de importante. No entanto, na minha experiência quem salienta fervorosamente que é “muito perigoso” reformarmos os nossos sistemas de governação tipicamente padece de uma certa forma de cegueira. Após gerações de “democracia” na sua forma actual, estamos amplamente dessensitizados às suas disfunções. Como podemos tomar por aceitável e apenas-dificilmente-melhorável uma tecnologia de decisão colectiva que destrói o ecossistema que sustenta a nossa própria espécie, condena a vasta maioria da população a décadas de trabalho sob a falsa ameaça da escassez económica e onde o poder está concentrado numa ínfima parcela da população? Só por termos aprendido a tomar por naturais e imutáveis estes (entre tantos outros) aspectos basilares das nossas sociedades podemos pensar que a nossa tecnologia actual de desgovernação é algo a preservar com muito cuidado e que só ocasionalmente precisará de uma ligeira “afinação”.
7. Curiosamente, o enviesamento oposto (ou seja, uma perspectiva hipercrítica) é muito comum quando se propõem tecnologias democráticas alternativas. A avaliação de qualquer proposta nova tende a ser feita por comparação com um ideal utópico do que deveria ser uma “democracia plena”. Obviamente, não há tecnologia democrática que possa corresponder a tais expectativas. Quem não vê – ou vê com benevolência e resignação – as profundas e amplamente documentadas disfunções da tecnologia actual tende a ser um atento e exigente crítico face aos hipotéticos riscos e problemas de tecnologias democráticas por implementar.
8. Uma figura recorrente nas discussões sobre inovar a nossa tecnologia de governação é o “papão” do autoritarismo. Este é outro argumento comum de quem receia fazer os tão necessários upgrades à nossa democracia. Ora, calha que se esquecem de que as derivas autoritárias are a feature, not a bug[1], das limitadas democracias em que vivemos. Já vimos o descontentamento popular e as dinâmicas da competição eleitoral entregarem o poder a figuras tão recomendáveis como Hitler, Mussolini e tantos outros facínoras. A dicotomia “democracia-que-temos vs. ditadura” é, por isso, enganadora. Tantas ditaduras foram o produto de escolhermos a quem entregar o poder através de processos eleitorais que devemos reconhecer esses regimes sombrios como (mais) um dos enormes riscos da tecnologia democrática que insistimos em continuar a usar.
9. Talvez a mais interessante proposta que podemos fazer, quando começamos a pensar a democracia como uma tecnologia, não seja propormos a adopção de uma qualquer inovadora tecnologia democrática específica. (Embora eu seja um entusiasta das assembleias de cidadãos e céptico a respeito do uso político de tecnologias digitais.) É, sim, criarmos no nosso sistema político um processo periódico de reflexão e actualização das tecnologias democráticas em utilização.
Por exemplo, poderíamos convencionar que, a cada 7 anos, 100 cidadãos portugueses seriam seleccionados por sorteio para integrarem uma assembleia de cidadãos sobre governança, a qual trabalharia ao longo de vários meses para desenvolver um conjunto de propostas sobre como melhorar a nossa tecnologia democrática. Aprenderiam com um leque diverso de especialistas e escutariam uma variedade de ideias oriundas de diversos quadrantes políticos e da sociedade civil. Poderiam debruçar-se sobre questões tão diversas como o sistema eleitoral; o aprofundamento das ferramentas de participação cívica; a utilização e institucionalização de assembleias de cidadãos a vários níveis de governação; as normas que regulamentam conflitos de interesses e impedimentos no exercício de cargos públicos; e tantos outros aspectos. As suas propostas seriam apresentadas publicamente bem como às instituições políticas, criando um aceso debate público em torno da melhoria da tecnologia democrática.
A tecnologia que utilizamos actualmente não inclui, entre as suas normas de operação, um mecanismo que conduza à sua própria revisão periódica e melhoramento. As inovações tornam-se, assim, batalhas árduas a ser travadas de forma ad hoc contra as forças que melhor souberam aproveitar a tecnologia na sua forma actual. Pensar na democracia enquanto tecnologia convida-nos, assim, a codificar no seu próprio funcionamento o gérmen da sua futura renovação. É um upgrade que vale a pena fazer.
Este texto teve como base uma intervenção no Human Entities 2023.
__
[1] Expressão comum entre programadores para se referir a um comportamento esperado e intencional de um programa que surpreende alguns utilizadores e, por isso, causa a esses utilizadores a impressão (errada) de se tratar do resultado de um erro da parte dos programadores.