Após uma longa viagem pelos meus arquivos virtuais, lá consegui encontrar a primeira vez em que pisei um navio científico: foi em junho de 2008. Tinha 21 anos. Nesse primeiro cruzeiro científico, foram quase trinta dias sem pôr pés em terra: de Cádis, no Sul de Espanha, a Lisboa. Quase um mês a bordo de um navio russo, o simultaneamente admirável e decrépito Professor Logachev, com o alto patrocínio do programa Training-Through-Research (TTR) – Floating University da UNESCO. Durante esse período, acontecia em simultâneo o campeonato europeu de futebol organizado conjuntamente pela Áustria e Suíça. Enquanto a seleção espanhola de futebol se sagrava campeã europeia, ficámos uma noite sem motores em pleno estreito de Gibraltar à deriva na principal autoestrada do Mar Mediterrâneo. Um pequeno incidente que resultou na escassez de comida a bordo durante a última semana de cruzeiro. Ainda assim, o mais marcante para mim foi a impressionante quantidade de dados, geológicos e geofísicos, recolhidos sobre o mar profundo de Alborán, do Golfo de Cádis e da zona do Esporão da Estremadura a oeste de Lisboa.
Ir para o mar é caro e exigente, mas este programa low-cost que se repetia ano após ano permitiu formar uma brilhante geração, de biólogos, geólogos e geofísicos marinhos, apesar do crónico subfinanciamento do sistema científico português. Dezenas de cientistas que ainda hoje desenvolvem investigação relacionada com as ciências do mar tiveram a possibilidade de sair para o mar a baixo custo, num navio com equipamento que à época não estava facilmente disponível para a comunidade científica portuguesa. Foi com muitos dos dados adquiridos por este navio que o até então desconhecido mar profundo português foi mapeado, assim como alguns dos seus recursos minerais. Foi com estes dados que se fizeram diversos trabalhos de Mestrado e Doutoramento em várias instituições académicas nacionais e internacionais que ainda hoje têm impacto. Apesar de algumas teorias conspirativas sobre a utilização de um navio russo para adquirir informação demasiado importante sobre recursos naturais de países europeus, este cruzeiro científico foi definidor para o meu futuro profissional.
No meio do mesmo passeio virtual, descobri que é também desde 2008 que se celebra o Dia Mundial dos Oceanos, anualmente a 8 de junho. Um dia decretado pelas Nações Unidas para destacar o papel central dos oceanos à escala global e no nosso quotidiano. 50% do oxigénio é produzido nos oceanos e é também nos oceanos que cerca de 30% do dióxido de carbono produzido por fontes não-naturais é absorvido. O oceano funciona como regulador do clima e da temperatura globais e é ainda uma fonte de rendimento para milhões de pessoas em todo o planeta. Ainda assim, a lengalenga que já quase todos ouvimos sobre conhecermos melhor a superfície da lua do que o oceano (profundo) continua atual. Porquê? Comecemos pelo óbvio, o oceano é vasto e as suas condições naturais são severas para este ser estudado de forma exaustiva no espaço e por longos períodos. Os componentes eletrónicos dos equipamentos não se dão bem com a água salgada, há vento, ondas gigantes e a pressão aumenta com o aumento da profundidade, dificultando a descida de equipamentos científicos a profundidades elevadas. Esta realidade entrou pelos nossos écrans adentro no passado mês de junho, com o desastre do submersível destinado a descidas turísticas ao local onde está afundado o Titanic. Não existem atalhos para estudar o mar profundo.
São também estas as razões que levam a que investigação em ciências do mar, no sentido mais lato possível, necessite de infraestruturas de grandes dimensões e de uma visão estratégica, de larga escala, que permita aos cientistas o acesso fácil e regular ao mar e a dados sobre os oceanos. Apesar das dúbias condições de sobrevivência a bordo, era esta a chave do sucesso do programa TTR que mencionei no início deste texto. Portugal tem uma das maiores zonas económicas e exclusivas a nível global. Investiu, e bem, no pedido de extensão da plataforma continental, num processo que se iniciou em 2009 e para a qual foi criada uma Estrutura de Missão que ainda sobrevive após um percurso acidentado, mas falta tudo o resto.
O fundo do mar português, e a subsuperfície abaixo deste, que se acredita rica em recursos minerais críticos, que são importantes para fazer cumprir a transição energética e a neutralidade carbónica, são ao dia de hoje largamente desconhecidos. Não existe o mapeamento exaustivo deste tipo de recursos e muito menos informações quantitativas sobre concentrações e volumes. O resultado mais visível da falta de financiamento e investimento na investigação em ciências do mar é um conjunto de instituições académicas que fazem isoladamente o seu trabalho e que raramente colaboram porque se veem competidoras entre si. O Instituto Português do Mar e da Atmosfera não cumpre os critérios necessários, de escala, e de financiamento, para que estes objetivos sejam cumpridos.
Por coincidência, foi também neste mês de junho que foi anunciada a celebração de contrato para a instalação do Hub do Mar em Lisboa, ou segundo o atual presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, o primeiro passo para a criação de uma ‘fábrica de unicórnios do mar’. Um espaço que se quer agregador para as instituições que se dedicam à ciência e investigação no mar, para a indústria e para as organizações relacionadas com o mar e a economia azul. Se nada mudar radicalmente, suspeito que só mesmo os unicórnios terão a capacidade de agregar instituições e cientistas e de permitir o acesso fácil ao mar e a dados. Até hoje os unicórnios do mar continuam por provar.