Passei muito tempo fixado na figura de James Krivchenia, colocado numa das pontas do palco, com uma camisa clara e calções, óculos quadrados e barba, careca, e com algum cabelo comprido. Lembra-me a figura de David Berman, vocalista dos Silver Jews, numa fotografia em que este está sentado num sofá, de casaco azul semiaberto, calças bege, e sandálias. Creio que vi a imagem quando li a notícia da sua morte, há uns anos. No entanto, quando canta, Krivchenia não me faz recordar uma pessoa, muito menos um artista, mas sim uma personagem. Falo de Murray Baulman, o teórico da conspiração preferido de Hawkins, da série Stranger Things.
Krivchenia é um baterista engraçado. Parece-me ter os tambores da bateria demasiado em baixo para a sua figura magra, de braços compridos. Está ligeiramente virado para o resto da banda, com um olho no público. Entre baterias vai acompanhando, enquanto segunda voz, as letras, com uma colocação desesperada. É desta forma que vai adicionando mais presença e potência à já épica catarse da música dos Big Thief. Toca com força, o som está bom nesse aspecto: sente-se o ritmo a subir, a crescer, e depois a baixar, a assentar. A música dos Big Thief é feita de oscilações desenvolvidas com uma precisão quase ritualística. O equilíbrio de todos os elementos – a bateria de Krivchenia, o baixo de Max Oleartchick, a guitarra de Buck Meek e a vida de Adrianne Lenker – é a essência do encanto deste quarteto, formado em 2015 em Brooklyn.
Os Big Thief são uma banda poderosa, artistas de uma sonoridade que fica entre o rock n’roll e o folk: um som que tanto rasga como conforta em igual (e grande) medida. No concerto de 29 de abril que deram na sala Lisboa ao Vivo começaram tarde (problemas com a guitarra de Meek), mas compensaram com um espetáculo irrepreensível. Lenker estava em modo guerrilha, com um top branco, calças escuras, e a guitarra muito subida. Longe está o ar de feiticeira mística que adotou em outras ocasiões, como em Paredes de Coura em 2018 (aí, de noite, apenas com Oleartchick e Krivchenia, deliciosamente perdidos debaixo das luzes do verão).
A vocalista liderou o quarteto por uma viagem que passou por todas as fases da sua discografia, composta por cinco álbuns (o último dos quais – Big Thief Dragon New Warm Mountain I Believe in You – editado no ano passado). Apesar de a força do coletivo estar na naturalidade e rigor que é a sua unidade, é inegável o quão principal é Lenker na banda. A voz, ora cândida, ora cortante, transporta narrativas muito vivas, construídas à volta de carne, sangue, terra e dor. Meek é o menos interessante dos membros, pelo menos em palco, e achei neste concerto Oleartchick demasiado preocupado, em algumas canções, com o som do seu monitor. Quanto a Krivchenia, é baterista, e por isso é rei.
É difícil resistir aos Big Thief quando acertam e rejeitá-los quando, tão-somente, são. Nos seus melhores momentos, são capazes de produzir belezas de uma atrocidade desarmável. O meu disco preferido, aquele onde esta beleza dura, bruta e cristalina melhor surge, é Capacity, lançado em 2017. A capa é uma fotografia de Lenker em bebé, nos braços do seu tio. O disco, com canções que tocam em crescimento, relações, tubarões e diamantes negros, é arrebatador. Em Lisboa só tocaram duas: Shark Smile e a oração que é Mary (“Your eyes were like machinery / Your hands were making artifacts in the corner of my mind”, enfim, o amor). Não que tenha sentido falta (senti, admito: faltou Mythological Beauty, que no verão de 2017 me serviu de cama para sonhos, e que me encorpou, em passeios, um sentimento) pois toda a prestação foi ótima. Gostei muito, vibrei muito, senti-me vivo, presente.
Lá fora apercebi-me de uma divisão: a geração acima da minha comungou do meu sentimento, enquanto a geração abaixo estava mais reticente. Pensando em retrospetiva, podia ter havido mais espaço para devaneios menos roqueiros e mais etéreos e calmos, do género a que a banda se dedicou em U.F.O.F. (um disco que, para mim, é uma viagem noturna em abril para “o lugar de” Porto Covo, numa estrada nacional, sob um imenso céu aberto). No geral, a sala acolheu-os entusiasticamente desde o primeiro momento, e não houve dúvidas de que o “set” escolhido encheu as medidas do público.
A sala estava muito composta, se não mesmo cheia, ou pelo menos perto disso. Reparei que estavam muitos estrangeiros. Encontrei pessoas amigas, outras conhecidas, e vi o concerto com amigos “que fiz online”, como na canção dos Joyce Manor. A presença na plateia de referências culturais do presente e do futuro só mostra o quão canónicos Lenker e amigos se tornaram. Descobri recentemente que foram nomeados para Grammys, o que é engraçado: não os considero nada óbvios enquanto produto comercial. Têm uma aura muito “quirky”, ainda que tremendamente americana no sentido clássico, género aquelas bandas dos anos setenta tipo Neil Young e Crazy Horse. Podiam ter vivido num tempo passado, e ao mesmo tempo são claramente daqui, desta era condenada. Têm pinta, mas não de estrelas, só de artistas.
O espaço, apertado e baixo, assentava-lhes bem; estou em crer que num Coliseu ou noutro lugar maior e mais aberto que este (leia-se: menos aconchegado) muita da energia se perderia. Mas é apenas um palpite.
No dia seguinte acordei e fui sentar-me no sofá, a descansar de uma vida que merece um outro ritmo. Ao ver um vídeo do concerto no instagram lembrei-me, novamente, de David Berman. Liguei a coluna na sala e pus a tocar Random Rules, a canção-quadro que abre American Water, o terceiro álbum dos Silver Jews. Começa com uma frase que já é escritura: “in 1984 I was hospitalized for approaching perfection”. Musicalmente, tem uma onda meio “sloppy”, meio sábado à tarde em casa, a desesperar (imagino que a guitarra de Stephen Malkmus possa ter alguma coisa a ver). Era domingo, e o sentimento era relativamente equivalente. Não me apeteceu ouvir os Big Thief, o que é um bom sinal nestas coisas: sinal de que já tinha tido a missa que precisava, e uma rica dose de beleza existencial preenchida.
Agora, sozinho no sofá, restava-me apenas o suficiente: estar.