Charles Young, Solar Eclipse, Cadiz, Spain, Dec. 22, 1870

Uma peta sobre a Ucrânia

Ante Gotovina, ex-legionário francês, regressa à Croácia em 1990. Em 1996 é designado comandante do distrito militar de Split, dois anos depois é promovido a major-general. A 4 de Agosto de 1995 o exército croata captura Krajina e Gotovina instala-se. O Tribunal Penal Internacional publica em Maio de 2001 a acusação (caso IT-01-45-1), pela caneta de Carla del Ponte. Gotovina é acusado, entre vários crimes (deportação, destruição de habitações etc.), da execução de pelo menos 150 civis sérvios entre Agosto e Novembro de 1995. A Guerra da Bósnia, um eufemismo para a III Guerra dos Balcãs (as duas primeiras em 1912 e 1913) no século XX, ocorreu já no período da Europa civilizada e curada do seus males: imperialismo, colonialismo, nazismo, fascismo e comunismo. Claro que tiveram de ser os odiosos americanos (Clinton na altura era um safado) a pôr um ponto final no assunto europeu. Não tão final como se pensava. 

Causa indignação – uma modalidade olímpica – a posição do PCP sobre a Guerra da Ucrânia. Nas televisões, se não fosse a presença dos militares  Agostinho Costa e Carlos Branco, os ditos debates seriam mais tranquilos do que uma homilia dominical. É com candura extrema que se tenta compreender a indignação. A lógica da Guerra Fria só foi interrompida por Gorbatchev durante a Guerra do Golfo. E antes da Guerra Fria a Rússia já era um corpo estranho na ordem europeia. Enquanto andaram à rosca com polacos, turcos e suecos, a coisa passou-se bem. A partir da Guerra da Crimeia a coisa mudou. Já no tempo da Catarina a Crimeia foi invadida várias vezes, mas a primeira guerra europeia com imprensa e acompanhamento  prenunciava uma mudança.  

A primeira parte da Guerra Mundial durou entre 1914 e 1918 e teve uma causa que hoje é bem clara. Já no final do século com Moltke (o Velho) a aproximação franco-russa tinha deixado os alemães desconfiados e entalados.  As boas intenções com armas são sempre perigosas e ele há previsões terríveis: 

Then perhaps the world at large will become convinced that a powerful Germany in the centre of the Continent constitutes the best guarantee for the peace of Europe (Helmuth von Moltke. Essays, Speeches, and Memoirs of Field-Marshall Count Helmuth von Moltke. New York: Harper & Brothers, 1893,  vol. II, pp 115). 

 

Anos mais tarde, o objectivo do Kaiser era também a disputa de território com a Rússia. As aventuras dos Habsburgos na Sérvia destinavam-se a enfraquecer os russos na frente leste enquanto os alemães derrotariam (um detalhe, pensavam eles) as forças anglo-francesas. Moltke (o Novo) e Bethmann (Chanceler) estavam de acordo. Este último  sintetizou: o futuro pertence à Rússia; e cresce e cresce, pesando sobre nós como um pesadelo profundo. A ligação alemã à Monarquia Dual (anedota Dual seria mais apropriado dada a minagem permanente dos húngaros) entendia o assunto dos Balcãs para lá da estratégia de enfraquecer os russos apenas no conflito iminente. Um eixo central, de Kiel às portas da Grécia, passando pela Bessarábia, asseguraria a influência prussiana como contraponto à ameaça continental francesa e reduziria a Rússia à insignificância.  

A anexação da Bósnia e da Herzegovina em 1908 pelos Habsburgos e a reacção sérvia (com a Rússia a apoiar ) montou o palco. A despesa militar na Europa subiu 39,4% a seguir à crise bósnia (Stevenson, “Peaceful Outcome”, 132, https://www.berghahnbooks.com/title/AfflerbachImprobable). As duas guerras balcânicas (1912 e 1913) foram uma confusa empreitada contra os turcos. Búlgaros, gregos, sérvios e montenegrinos aproveitaram a baixa de forma otomana, mas depois os búlgaros atacaram os seus antigos aliados. Enfim, uma limpeza étnica nada inferior à da futura Guerra da Bósnia. 

  

O intervalo da Guerra Mundial abriu com a Conferência de Paz de Paris ( 1919-20) que estabeleceu cinco tratados, ainda que o único que entrou para a memória colectiva tenha sido o de Versailles. Os outros quatro foram condenados à damnatio memoriae. Por exemplo, o tratado de Neuilly-sur-Seine (assinado por Afonso Costa e por Batalha Reis, que se tinha safado à justa da revolução bolchevique só conseguindo sair por Murmasnk em 1918).  Nesse, o  artigo 44 obrigava a perda automática da cidadania búlgara dos cidadãos que viviam em territórios entregues à Grécia. Já em Dobrudja, os trezentos mil habitantes incluíam tártaros, turcos, muçulmanos búlgaros, cristãos-búlgaros e romenos. Esta Dobrudja, um retalho permanente, tinha sido em parte (a Dobrudja do Sul) entregue à Roménia em 1913 depois de uma das referidas Guerras dos Balcãs, no caso a segunda), situação que se alterou com a retirada da Rússia da guerra: os alemães e os Habsburgos devolveram-na à Bulgária (tratado de Bucareste, 1918) para apenas um ano mais tarde o referido tratado de Neuilly-sur-Seine voltar a entregá-la à Roménia. Pior, ainda mais para trás, esta Dobrudja tinha sido dada pelos russos ao recém-criado Principado da Bulgária em troca de umas terras na Bessarábia. Esta oferta foi ratificada pelo fabuloso Tratado de Santo Estevão (1878) resultante da vitória russa sobre a Porta. O artigo IV é um exemplo da confusão demencial: os muçulmanos residentes em territórios (antes turcos) entregues à Sérvia (também criada) podiam manter as suas terras desde que administradas por terceiros. O artigo VII limpava por cima enquanto palitava os dentes: nas localidades onde búlgaros estavam misturados com valaquianos, gregos, turcos e outros, os respectivos interesses deviam ser tidos em conta.  As duas primeiras Guerras dos Balcãs (e a terceira também) mostraram isso mesmo, não foi?  

 

Nesta altura um leitor caridoso perguntará o que quero com este arrazoado. 

Uma pequena nota (The Discourse over the Nationality Question in Nazi-Occupied Ukraine: The Generalbezirk Dnjepropetrowsk, 1941-3  

Simone A. Bellezza, Journal of Contemporary History, Vol. 43, No. 4 , Oct., 2008, pp. 573-596 ) 

encontrada no arquivo do comissário do Reich para os territórios ocupados do Leste, Otto Brautigam, foi depois utilizada para uma fantasia que, como sabemos, ainda hoje vai a jogo: os ucranianos são nazis.  

Fizeram parte do Reich, sim, vigiados pelo Generalkomissiariat, mas sobretudo pelo  Generalbezirk Dnjepropetrowsk (o mais oriental território sob administração nazi incluía Zaporíjia ) tanto quanto fizeram os franceses ou os dinamarqueses. Todos conhecem a longa história da partilha dos territórios da fronteira (ukraina/Krajina): polacos, lituanos, austríacos, russos, todos molharam na sopa. De certa forma, e nos últimos dois séculos, uns Balcãs nortenhos em que o papel dos turcos foi desempenhado à vez por russos e polacos, mas não só. Depois de uma certa (mais entre a facção nacionalista e a soviética) guerra civil (1917-21), Lenine ordena a indigenização (korenizaciya) dos territórios soviéticos, incluindo esta recém-Ucrânia. O resto também sabemos, planos quinquenais, uma fome brutal, etc. Os nazis juntaram-se à desgraça, sim, mas o retalho era tal que de fora da sua alçada ficaram muitos territórios como o oblast transcarpatiano (domínio húngaro) e a Transnístria (zona de Odessa, gestão romena) que ainda hoje é um berbicacho para a Moldávia.  

Em Dnipro a ocupação alemã permitiu a herança czarista. A partir de Janeiro de 1942 a administração da cidade adoptou o brasão de armas com o tridente ucraniano com a inscrição Dnipropetrovs’ka Mis’ka Uprava. Este brasão aparecia juntamente com o antigo símbolo czarista: um escudo azul com o nome de Catarina II gravado a ouro (Karel C. Berkhoff, Ukraine under Nazi Rule (1941-1944): Sources and Finding Aids: Part I, Jahrbücher für Geschichte Osteuropas, Neue Folge, Bd. 45, H. 1,1997, pp. 85-103). 

Ou seja, olhar para uma manta de retalhos histórica, cultural, militar e religiosa, seja a Bósnia ou a  Crimeia, e definir o momento actual como o único válido é idiota. Se na Crimeia  ouvirmos os tártaros, eles entendem ser anteriores ao grupo étnico ucraniano e à colonização russa em 1783. Em 1917 estabeleceram a Assembleia do Povo (kurultai), mas os bolcheviques tiraram-lhes  logo a ideia da cabeça. Os ucranianos por seu turno eram apenas ¼ da população no final da era soviética (Ethnicity, Ideology and Geopolitics in Crimea,  Jane I. Dawson, Communist and Post-Communist Studies, Vol. 30, No. 4, December 1997, pp. 427-444 . 

 

Enfim, podemos e devemos execrar o regime de Putin e a dita operação especial mas isso não apaga o histórico geopolítico da região (como o dos Balcãs). O PCP é fiel ao sentimento religioso e não faz nada de novo.  Na Guerra das Malvinas não teve problema nenhum em defender o regime fascista de Gualtieri. A lógica da Guerra Fria é sempre implacável e por isso os EUA, campeões da democracia, nessa altura financiavam ditadores centro-americanos. A moral vive e viverá longe destas andanças, as coisas são o que são. 

 

Sobra um argumento para a condenação da guerra russa a Kiev: “vivemos agora num mundo, leia-se Europa, regido pelo respeito pelo direito internacional”.  

Este mundo é sempre referido como o pós 1945. A invasão israelita  do Sinai (1956, crise do Suez) com a colaboração activa e cúmplice de ingleses e franceses foi  decidida em Sèvres. Ben Gurion, Moshe Dayan e Shimon Peres estavam nos arredores de Paris e na manhã de 24 de Outubro os três traçaram o destino de uma das mais perigosas crises da Guerra Fria. No jardim da casa, não havia papel, por isso Peres ofereceu o papel do seu  maço de tabaco e assim assinaram os três. Ingleses (por causa do Canal) e franceses (por causa do apoio egípcio à Argélia) juntaram-se no documento político e final  da coisa. O argumento foi rasgado.   

A terceira guerra dos Balcãs, vulgo guerra da Bósnia, enterrou de modo definitivo o argumento. E o argumento é o gato de Schrödinger. Esse mundo existe e não existe. A cada instante. 

Uma peta sobre a Ucrânia
Charles Young, Solar Eclipse, Cadiz, Spain, Dec. 22, 1870

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