A Almanaque

O que vos propomos é a Almanaque, uma nova revista. Porque existe, está já no pequeno grupo das revistas que não foram apenas sonhadas. Mas logo começou a contagem final para o seu fim, pois na vida só há três certezas: a morte, os impostos e a efemeridade das revistas de ideias em Portugal. Usemos bem o tempo que nos resta. 

Sem recusar a atualidade ou a polémica semanal, o nosso foco é claro: analisar em profundidade o mercado da cultura e os fenómenos editoriais escritos e filmados, a política e a sociedade, as ciências, as artes e também o desporto. 

O que nos distingue: a participação regular de algumas das mais preparadas mentes da nossa praça, na esmagadora maioria juntas pela primeira vez numa publicação. Assumimos a intenção de servir o público a partir de uma convicção sólida: não considerar em demasia a vontade dos leitores. Seremos apenas fiéis à Gramática, à Lógica e à Matemática. Queremos refrescar, se possível até com alusões agrícolas, essa tão gasta palavra: a cultura. 

Almanaques diversos animaram a vida das nossas cidades, desde 1496, altura em que um impressor judeu de Leiria decidiu dar a conhecer as tábuas logarítmicas para medir a declinação do sol em cada dia do ano. Outros Almanaques surgiram ao longo da história, tendo o mais recente por lema, nas palavras do seu diretor, José Cardoso Pires, «a intenção de não poupar ninguém e ser o mais sacana possível». Os tempos são outros e, tendo migrado o ataque sórdido e anónimo para as redes sociais, resta-nos a obrigação de colmatar o défice de crítica assinada. 

Enquanto projeto editorial, arrancamos sem apoios financeiros, preservando a nossa liberdade. O futuro ditará como evoluiremos, mas não venderemos uma recensão simpática por um prato de lentilhas. 

A Almanaque terá independência política, assumindo o escândalo de convocar liberais e marxistas, socialistas e conservadores, para discutir os problemas de todos. Perante a suposta crise da razão, retomamos o desígnio dos famigerados filósofos das Luzes, na convicção de que os argumentos lógicos, universais e sobreviventes a uma crítica severa, acabam por cumprir o objetivo de nos tornar mais sábios, mais filósofos, mais capazes, se não de governar melhor a cidade, ao menos mais tolerantes perante os nossos disparates e os disparates dos outros. Seremos um espaço plural e ficaremos felizes se, um dia, dois dos nossos autores iniciarem uma discussão escrita intensa, ao ritmo lento das antigas partidas de xadrez por correspondência. 

A Almanaque combaterá o isolacionismo e a altivez da academia. Nunca foi tão urgente massificar o conhecimento científico e académico, numa era em que a especialização produz disciplinas científicas a uma velocidade vertiginosa e, por isso, novos analfabetos funcionais, a cada hora. Embora acreditando no manto diáfano da fantasia, somos sobretudo pela nudez forte da verdade, ou seja, pela transparência do discurso, sem comprometer o rigor. E não haverá pruridos em misturar o popular com o erudito. 

A Almanaque não terá receio de promover ou denegrir produtos. Se as primeiras revistas traziam o selo do comércio, em Edimburgo, Londres, Paris ou na Istambul do século XVIII, assumimos essa herança. Queremos informar o consumidor de arte, de cultura ou de outros delírios da mesma família. Numa época de competição selvática, vimos com o intuito de oferecer um oásis de integridade na apreciação desse espantoso e sempre fugidio adjetivo: a qualidade. 

A Almanaque não pretende ser uma revista para coleccionar como um objecto belo ou precioso; queremos sobretudo ser lidos e criticados, marcando presença onde as discussões hoje têm lugar. Sem excluir à partida a produção pontual de objectos, incluindo panfletos, livrinhos, livros e ilustrações, o formato regular será exclusivamente digital, por esta ser a forma mais eficiente e acessível de chegar ao leitor.  

A Almanaque não temerá a crítica. A crítica é o nosso combustível e só esperamos que os nossos exercícios de crítica despertem nos nossos alvos uma vontade de responder na mesma moeda, sobrevivendo ao impulso de simplesmente resmungar. 

Acreditamos que o fim da Almanaque é convencer os seus leitores de que a vida só vale a pena se tivermos consciência da nossa irrelevância e da nossa infinita glória como criadores dos testemunhos artísticos, científicos e críticos de uma fugaz passagem pelo planeta. No fundo, enquanto espécie e indivíduos partilhamos o destino das revistas de ideias portuguesas. Usemos bem o tempo que nos resta.


Junho de 2022,

André Canhoto Costa
Vasco M. Barreto

Ficha Técnica

Edição: André Canhoto Costa e Vasco Barreto
Direcção de Arte: Lia Ferreira
Revisão: André Canhoto Costa, Manuel Eugénio Fernandes e Vasco Barreto.
Web Design: João Lagido