Sociedade_III-I

0,71 — A Minha Mãe É Misógina

Espero que o título tenha cumprido a sua função e passo a informar que não vou falar sobre a minha mãe.

A mãe desta história é uma amiga de Nova Iorque a quem a filha adolescente disse há dias:

— Eu e a minha psicóloga achamos que tu és uma misógina inconsciente.

Todas as noites, mãe e filha discutem ao jantar. Os homens da casa também participam, mas num registo fleumático. São debates “acesos”, “desgastantes”, às vezes “violentos”, nos quais a mesa faz de ringue para duelos de feminismo moderno.

— Porque é que eu sou misógina?

— Estás sempre a dizer mal das mulheres e estás sempre a defender os homens.

Gostava de pensar que o pior já passou, que estes anos de politicamente correcto transformado numa coisa esquisita não vão atordoar-nos ao ponto de perdermos o sentido crítico e reduzirmos tudo a visões hiper-simplificadas e sem cinzentos.

Passámos da mulher submissa e silenciada para a mulher emancipada e com voz. Finalmente. Mas a que lugar vamos chegar com a nova ortodoxia?

Há pelo menos 50 anos que Anaïs Nin nos avisou para o “perigo” — a palavra é sua — de o movimento feminista pensar que as mulheres só serão “totalmente adultas, emancipadas e realizadas” se “romperem com os homens”.

Duvidar do novo feminismo talvez seja um cepticismo ridículo, semelhante ao medo que os nossos avós tiveram dos Beatles, do sexo antes do casamento ou do Maio de 68. Talvez seja apenas mais uma prova do “gap geracional”.

Uma adolescente que leia hoje Maria do Ahú, que José Régio escreveu em 1946, não perceberá porque é que o conto faz parte de um livro chamado Histórias de Mulheres que abre com esta dedicatória: “À boa Amiga a quem mentalmente prometi o meu primeiro retrato simpático de rapariga.”

Maria do Ahú nasceu indesejada, sem amor, é feia, maltratada, o pai bate-lhe, a mãe bate-lhe, os irmãos batem-lhe. Mais tarde, quando o filho lhe bate também, ela desculpabiliza-o porque “não era ele, o seu Porfírio, que fazia aquilo”, “ninguém percebia que o Mafarrico se metera no corpo do Porfírio?”, “não dissera o senhor Abade que os demónios entram no corpo da gente?”.

Uma adolescente de 2022 não perceberá qual é a parte do “retrato simpático de rapariga” desta história. Eu também não. É uma história de miséria e cegueira religiosa.

Uma adolescente de 2022 perceberá melhor a ideia “fix the system, not the women”, como no título do livro de Laura Bates (Simon & Schuster, 2022), onde a investigadora e activista critica o facto de a polícia britânica ter o hábito de falar das mulheres assassinadas pelos maridos, namorados e outros homens da família como “incidentes isolados”. “Quando isso acontece de três em três dias, não é um incidente isolado. Essa é a frequência com que as mulheres são assassinadas por um membro da sua família no Reino Unido. No mundo, 137 mulheres são assassinadas por um membro da família todos os dias. Isto não são incidentes isolados. São o oposto. E o oposto de incidente isolado é padrão.”

Claro que a minha amiga nova-iorquina não defende sempre os homens. Mas quando diz à filha, “calma, sabes se isso é verdade?”, “calma, foi violação ou assédio sexual?”, “calma, foi assédio sexual ou mal-entendido?”, “calma, foi mal-entendido ou alguém arrependeu-se?”, “calma, alguém arrependeu-se ou alguém está a inventar?”, “calma, será um caso de tentativa de extorsão?”, “calma, não te estás a precipitar?”… a pergunta, qualquer que ela seja, não é ouvida como um exercício de cepticismo, mas como uma crítica às mulheres. Não à mulher sobre quem se está a falar ao jantar, mas a todas as mulheres do planeta.

E, nisto, uma mulher com olho de águia, chamou-me a atenção para o texto de um espectáculo do Alkantara Festival que usa a palavra “corpas”. Apesar de o Alkantara ser um festival de artes performativas — com muita dança, portanto — não percebi o que me estava a ser dito.

— Corpas…?

— Sim, corpas. O que pensa sobre isso?

— …

— Corpas em vez de corpos.

— Não é possível.

Mas é.

O texto sobre a festa de abertura do Alkantara, no Mercado da Ribeira, em Lisboa, anuncia que seriam “cinco horas de evento em conexão com as corpas”.

Mal googlei a estranha palavra, vi duas coisas: há pessoas cujo nome de família é Corpas e há ensaios de académicos brasileiros sobre “corpas”, o que em português dizemos “corpos”, em inglês “bodies”, em alemão “körper”, em espanhol “cuerpos”. Flávia Meireles, professora de dança num instituto de ensino superior do Rio de Janeiro, pôs a palavra no título do ensaio que publicou numa revista da especialidade: “Corpos/Corpas/Corpes dissidentes e a cena artística”. Não estou a brincar. Na síntese, a autora diz que o “artigo reflecte sobre a presença de corpos/corpas/corpes dissidentes na cena artística e seus questionamentos da norma vigente — branca, masculina e heterossexual”.

Vi também um artigo no Le Monde Diplomatique cujo título é “Experiência de corpas, identidades, artes e saberes afrodissidentes”

Vi que houve, no Brasil, o Seminário Corpas, Saberes e Territórios nas Artes e na Educação, organizado por dois grupos de estudos vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Estadual Paulista.

Percebo a necessidade de “afirmação pela transgressão”, como se explica num dos textos, e de “repúdio aos padrões sociais e de escrita masculinos”. Mas não percebo onde é que usar no feminino palavras que não têm feminino é uma transgressão — para além da puramente gramatical — capaz de mudar o que quer que seja.

Dirão: isso são coisas do Brasil e a companhia que usou “corpas” no texto do Alkantara era brasileira. No Brasil, Dilma Rousseff chamou-se a si própria “Presidenta”, está tudo dito.

Mas não. Passei o último mês baralhada com os press releases dos “jovens climáticos” portugueses, que organizaram a Greve Climática Estudantil. Os textos chegaram a ser escritos todos no feminino, mesmo quando informavam sobre a detenção dos estudantes detidos e levados a tribunal. Nem todos eram raparigas, mas quem lesse os textos do movimento pensaria que sim. Os cartazes de apoio vão na mesma linha: “Não estão sozinhas.” E o estudante rapaz que foi detido, fica sozinho?

Não há como evitar dizer o óbvio: isto cria confusão, baralha a comunicação, complica o discurso.

Pessoas avisadas dizem-me que isto é necessário para compensar o excesso de masculino na linguagem e os anos em que os rapazes e os homens dominaram a cobertura dos media e os livros de História, em que apareciam sempre como protagonistas, mesmo quando ao lado deles — ou à frente e atrás — havia mulheres.

O feminismo gramatical vai provavelmente ter o mesmo efeito que a moda do “he/she” teve nas culturas anglo-saxónicas: zero.

Queimar soutiens foi uma boa ideia radical. Dizer corpas, come on. Inventar uma linguagem codificada na qual passamos tudo a feminino não é uma ideia nem boa, nem radical. É uma ideia má e uma caricatura.

Hoje apetece-me um jantar calmo e não vou mostrar este texto às minhas filhas. Talvez amanhã. À minha amiga de Nova Iorque, também não. Teria de explicar a chatice das regras gramaticais, das excepções e etc. das línguas latinas. Acabaríamos a discutir a poesia dos dialectos. Seria interessante, mas desviar-nos-íamos do essencial. 

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