Durante anos, achei Steven Seagal um chato de galochas. Como homem, como actor, como tudo. Tem um ar boçal e pomposo e os seus filmes devem ser muito desinteressantes.
Até que tropecei numa notícia e aqui estou para dizer: Steven Seagal é mais do que maçador.
Começo pelo sexo para chegar à indústria de armamento e à política internacional. Será rápido. Farei uma ligação provavelmente injusta. Vou arriscar.
O hábito é escrevermos sobre o que nos preocupa. Não é o caso. Não estou preocupada com Seagal. Vou fazer aquilo que George Orwell disse em Why I Write ser um dos seus pontos de partida para escrever: quero chamar a atenção para um facto. É só isso.
Em 2017, li sem espanto as descrições que várias mulheres fizeram das coisas que Seagal fazia nos bastidores das filmagens, sempre em pose de caçador sem açaime, um homem que vê uma mulher e só pensa em fazer sexo com ela, agora, já, neste instante.
Não liguei muito. A vida é assim, já todas vimos isso e pior, a diferença é que agora é dito em voz alta, finalmente, mais um machista misógino desmascarado, life goes on, isto vai melhorando, apesar de tudo.
Agora que tropecei na notícia surpreendente sobre Seagal, fui reler as histórias contadas por essas mulheres. Faço uma lista rápida.
A actriz Julianna Margulies contou que, quando tinha 23 anos, a directora de casting da série que estava a filmar com Seagal lhe telefonou a dizer que ele queria rever uma cena que iam filmar no dia seguinte e, por isso, ela tinha de ir ao hotel em Manhattan onde ele estava hospedado.
— Eu morava em Brooklyn e disse: “Não posso fazer isso. Não tenho dinheiro para o táxi — e não tinha — e não gosto de andar de metro à noite.” Ela respondeu: “Não te preocupes, nós pagamos as viagens.”
E ela foi. Quando chegou, a directora de casting não estava. Primeira surpresa. Mal se sentou no sofá do quarto, sentiu uma coisa dura e levantou-se.
— Não te assustes — disse Seagal. — É a minha arma.
Ela só pensava: “Que estúpida que tu és! Ninguém sabe que estás aqui e agora estás sozinha no quarto com este tipo e ele tem uma arma.” Arranjou maneira de se ir embora e a coisa ficou por ali.
A actriz Rae Dawn Chong contou que o seu agente lhe enviou uma mensagem para ela se encontrar com Seagal num quarto de hotel: “21h30 no Hotel Bel Air.” Ela ficou “chocada”, ligou ao agente para saber o que era aquilo, uma reunião tão estranha e tão tardia. Convenceram-na. Rae Dawn bateu à porta do quarto de hotel e Seagal apareceu de roupão de banho. Tentou que ela entrasse, mas ela recusou. — Fiquei do lado de fora, com a porta aberta, mortificada por ter aceitado ir. Quando disse que se ia embora, ele abriu o roupão, tentando dar a ideia de que tinha sido acidental, e enquanto o fechava perguntou-lhe:
— A tua camisa é de seda? Posso tocar para ver?
Ela foi-se embora.
A actriz Portia de Rossi contou que a sua última audição para um filme de Seagal foi no escritório dele.
— Enquanto eu me sentava, ele disse como era importante ter “química fora do ecrã” e abriu o fecho das suas calças de cabedal.
Ela saiu a correr e ligou à agente.
— Imperturbável, ela respondeu: “Bem, não sabia se ele era o teu tipo…”
A actriz Katherine Heigl contou que, quando tinha 16 anos, fez um filme com Seagal e no último dia de filmagens ele lhe disse:
— Sabes, tenho namoradas da tua idade.
— Isso não é ilegal?!
— Elas não parecem importar-se.
— Mãe!!!
A actriz Jenny McCarthy contou que, em 1995, foi a uma audição para Under Siege 2 com um “muumuu”, aqueles vestidos soltos do Havai que parecem túnicas. “Foi de propósito”, explicou. “Queria que eles olhassem realmente para a minha cara e vissem o meu trabalho.” Quando entrou na sala do casting, Seagal estava sozinho. Mal a viu, o actor protestou e disse que não conseguia ver como era o corpo dela, o vestido era “demasiado largo” e ele precisava de ver os seios. McCarthy tinha lido o guião e sabia que o papel não incluía nudez. Disse-lhe isso e ele respondeu:
— Bem, há cenas de nudez fora do ecrã.
McCarthy começou a chorar e gritou:
— Vai comprar o meu vídeo da Playboy! Está à venda por 19,99 dólares!
Foi-se embora a correr e Seagal foi atrás dela e gritou ao longe:
— Não falas disto a ninguém, senão…!
McCarthy entrou no carro e pensou: “Fui a última miúda do dia a fazer a audição. Quantas tiveram de tirar a roupa? Quantas tiveram de fazer outras coisas?”
Blair Robinson, neta de Ray Charles, contou que em 2004 foi contratada como secretária de Seagal e informada no primeiro dia de trabalho que a função incluía “fazer massagens”. Percebeu que era esperado dela que fizesse sexo com ele e despediu-se no próprio dia.
A história de que eu mais gosto é a de Tia Carrere. Nos anos 1990, a actriz foi a uma audição para um filme com Seagal. A audição foi marcada pelo seu professor de canto. Achou que iria encontrar-me com Seagal no bar de um hotel, “é isso que fazemos, é o normal”. Quando chegou ao Hotel Bel Air, foi informada de que a reunião tinha sido mudada do bar para o quarto de Seagal. Confusa, subiu e bateu à porta. Seagal estava sozinho. Mal entrou, ele perguntou:
— Sentes-te confortável com a nudez?
Ela disse que se “sentia desconfortável” e foi-se embora. End of story.
Gosto deste testemunho porque não aconteceu nada. Ele não disse nenhuma alarvidade, não abriu as calças, não abriu o roupão para se exibir, não estava sequer de roupão, não pediu para ela tirar o vestido. Nada. Fazer a pergunta que fez não é crime, nem na América.
E, no entanto, as mulheres aturam isto há anos. Em Hollywood e em Lisboa. “Temos de estar dispostas a perder o trabalho. Esse é o problema. Temos de levantar-nos e dizer: ‘Não, não me sinto confortável com isso’”. Continua a ser difícil explicar que isto é inaceitável e que criticá-lo não tem que ver com o politicamente correcto. Isto não é sexy, não é sensual, não é sedutor, não é lisonjeiro. É zero viril. É sobretudo agressivo. Para além de ridículo.
Disse que ia ser rápida e já passaram seis mil caracteres, peço desculpa. Já não vou falar das t-shirts com a famosa frase de Seagal — “espero ficar conhecido como um grande escritor e actor e não como símbolo sexual” —, nem da sua colecção de espadas.
Agora que vi o Presidente russo, Vladimir Putin, a condecorá-lo com uma Medalha de Amizade decidi ir ver o que é feito da sua vida, para além de abrir a braguilha a despropósito e de montar armadilhas de meia tijela para pedir sexo às mulheres que estão à procura de trabalho — sim, a célebre circunstância em que quem pede o sexo tem o poder de dar trabalho, naquele instante, sim ou não.
Dito isto, chegamos à ligação provavelmente injusta. Em 2013, Seagal começou a trabalhar para a ORSIS, uma pequena e recém-criada fábrica russa de armamento. Em russo, chama-se Oruzheinye Sistemye (Sistemas de Armas), daí o acrónimo. O trabalho de Seagal é promover as armas ORSIS e fazer lobby a favor da flexibilização das restrições de importação de armas de fogo russas para os EUA.
Na altura, também foi anunciado que Seagal ia desenvolver uma espingarda de longo alcance. Ia chamar-se “ORSIS by Steven Seagal”. Bonito. Penso que não chegou a ser inventada. Pelo menos, no site da fábrica não está na lista dos modelos disponíveis. A novidade foi reportada pelo Moscow Times. Seagal e Putin estão juntos na fotografia. Queriam que todos vissem o princípio da bela amizade.
Pago para promover, promoveu. Disse aos jornalistas russos que a “ORSIS by Steven Seagal” seria “a melhor espingarda do mundo”, pois permitiria disparar com precisão a três quilómetros de distância. Disse também que a usaria nos seus próximos filmes. E disse ainda — tudo isto está nas notícias russas — que não gostava nada das pistolas Glock que os guarda-costas de Putin usavam.
Essa foi a única frase que me surpreendeu. Fui ver e percebi que as Glock são austríacas. Não sei se o contrato se mantém. Sei que, no ano seguinte, lá estava Seagal numa feira internacional de armas, a Oboronexpo, em Zhukovski, na região de Moscovo, ao lado do vice-primeiro-ministro russo, Dmitri Rogozin, com uma pistola SPS-Serdiukov na mão. O título do Russia Beyond é claro: “The SPS: The gun used by Vladimir Putin’s bodyguards”. Abaixo, li na notícia que as “SPS são usadas pelo Serviço de Guardas Federais da Rússia, a força de segurança pessoal do Presidente Putin”. Pronto. Não sei se as SPS substituíram inteiramente as Glock. Mas sim, as SPS são russas.
Diz-se que as histórias reveladas pelas mulheres na onda do movimento #MeToo obrigaram Seagal a virar-se para a Rússia. É falso. Em 2014, o actor já visitava Moscovo com regularidade e já tinha dito que Putin “é um dos melhores líderes do mundo”. Em 2016, já era cidadão russo. Terá recebido o passaporte das mãos do próprio Putin. Em 2018, foi nomeado enviado especial da Rússia para os EUA, como se fosse um diplomata do Kremlin. Seagal diz que faz tudo isto porque é “um diplomata e um diplomata muito bom”. Não estou a brincar. Seagal fala assim. Li que em 2021 se tornou militante do Rússia Unida, o partido oficial do regime. Agora, está a fazer um documentário sobre a guerra na Ucrânia. Fico curiosa com o que vai sair daí.
Não sei como Seagal vai ficar conhecido no futuro. Na Rússia, será certamente como um bom amigo de Putin e dos seus negócios de armas.
Aprende-se muito sobre a vida a ler jornais.