Os sapatos vermelhos são uma coisa nos pés de uma menina e outra completamente diferente nos pés de uma mulher.
Aos cinco anos, são a melhor escolha para ir a uma festa de família ou à Missa do Galo. A partir dos 20, roçam o mau gosto. Se forem de salto alto, são provocadores. Se forem de salto-agulha — os stiletto —, abre-se a porta do herético.
Chegados aqui, há duas possibilidades: se a mulher está acompanhada, é “atrevida”, “descontraída”, “não liga ao que os outros pensam”; se está sozinha, “só quer dar nas vistas” ou “está à caça”.
No calão inglês, diz-se “fuck-me shoes” ou “fuck-me pumps”, como o título de uma canção de Amy Winehouse que ouço com frequência. Nunca tinha pensado no título, nem na letra, até ao dia em que uma amiga que é directora na administração pública portuguesa contou isto à mesa do jantar:
— Uma inglesa veio a uma reunião no meu gabinete e, mal entra, olha para mim e diz: “Tu usas fuck-me shoes?!”
Eram stiletto vermelhos. Simone de Beauvoir diz que o amor verdadeiro é o que dá liberdade à mulher. Beauvoir não está a falar da liberdade de escolher os sapatos, mas do espaço para respirar e tomar decisões sobre o que queremos fazer com a nossa vida. Está a falar de sermos nós próprias, vivermos como gostamos de viver. Está tudo em How to Be You: Simone de Beauvoir and the art of authentic living, de Skye Cleary (Ebury Press, Penguin Random House, 2022), uma filósofa a ler uma filósofa. Está a falar do espaço para libertarmo-nos dos medos e dos estereótipos e sermos verdadeiros, não o que os outros esperam de nós. Está a falar de rebelião e de ignorarmos as convenções.
A minha amiga dos stiletto vermelhos não se sente rebelde, mas sabe que não é bonito uma senhora com poder e responsabilidade usar uns sapatos tão sexy. Se não soubesse, ficaria a saber rapidamente, porque sempre que os calça, os colegas — homens e mulheres — comentam.
Até a Wikipédia, que em teoria é uma enciclopédia sem pontos de vista, propõe uma definição misógina. Começa assim: “‘Fuck-me shoes’ é calão para sapatos femininos de salto alto que exageram a imagem sexual. O termo pode ser aplicado a qualquer calçado feminino usado com a intenção de excitar os outros.”
Esclarecimento: na Wikipédia em inglês, a expressão usada é “worn with the intention of arousing others”. “To arouse” é “provocar” e “excitar” no sentido sexual. Interessante como não se prevê a possibilidade de usarmos sapatos de saltos altos finos e vermelhos porque, simplesmente, gostamos de sapatos assim.
Em Red: The History of a Color, de Michel Pastoureau (Princeton University Press, 2017), aprendi que o vermelho “perdeu prestígio” a partir do século XVI, com a Reforma Protestante. Deixou de ser símbolo de divino e de força vital, e passou a ser sinónimo de indecente e imoral, luxúria e excesso. Em parte, foi por oposição à Igreja Católica, que usa vermelho desde sempre.
Ainda agora, quando o antigo Papa Bento XVI morreu, fui ver que sapatos lhe calçaram para o mostrarem publicamente no caixão. Para minha surpresa, Joseph Ratzinger foi enterrado com sapatos pretos, ele que sempre usou uns belos sapatos vermelhos pontiagudos. Ratzinger não usava os sapatos púrpura-imperial com a cruz dourada que os Papas usaram durante séculos. Eram simplesmente vermelhos. Mas tão vermelhos que era impossível olhar para ele sem notar ao primeiro instante. Para mais, quando Ratzinger foi escolhido, há 26 anos que víamos o Papa anterior, João Paulo II, de sapatos castanhos, que encomendava da Polónia. Uma rebelião inversa à da minha amiga. Estranhamente, na hora da morte, Ratzinger foi enterrado com sapatos pretos e João Paulo II com sapatos vermelhos. A Igreja Católica sempre me baralhou.
Sabemos de onde vem a tradição católica. Na Antiguidade, o vermelho estava associado à guerra, à riqueza e ao poder e, na Idade Média, tinha um significado religioso forte: era a cor do sangue de Cristo e do fogo do Inferno. Mas também era símbolo de amor, glória e beleza. A síntese é de Pastoureau. De qual destas fontes originais vem a carga erótica que os sapatos vermelhos têm hoje?
Continuo a ler Red, de Pastoureau. O vermelho era uma cor tão importante que, em algumas culturas, a palavra “vermelho” e “cor” era a mesma. A seguir à Revolução Francesa, o vermelho “ganhou prestígio” e passou a ser associado aos movimentos progressistas e às “políticas radicais de esquerda”. Será esse o problema? Se fosse, o que dizer dos sapatos-agulha vermelhos de Theresa May, ex-primeira-ministra britânica, da ala direita do Partido Conservador? A propósito: Jacinda Ardern, ex-primeira-ministra neo-zelandesa, da ala esquerda do Partido Trabalhista, usa vestidos vermelhos dia sim, dia não. Hipótese absurda: o vermelho está reservado às mulheres no poder e proibido a todas as outras porque, é sabido, as mulheres poderosas que usam stiletto vermelhos têm um gosto ousado, mas as mulheres sem poder que usam stiletto vermelhos estão à caça. Coisa estranha. Hipótese mais realista: há mulheres que gostam de vermelho.
O livro Nudez e pudor – O mito do processo civilizacional, de Hans Peter Duerr (Editorial Notícias, 2002), abre com uma citação de Wittgenstein: “Lutamos agora contra uma corrente. Mas essa corrente morrerá, suplantada por outra corrente; então não mais se compreenderá a nossa argumentação contra ela; ninguém entenderá porque foi necessário dizer tudo isto.” Fala da história da nudez, mas podia estar a falar da história dos sapatos e dos vestidos vermelhos.
Ninguém acha erótico ou provocador o atelier de Peter Paul Rubens ter pintado, no início do século XVII, Jesus Cristo com um manto vermelho — e ele está praticamente nu (Cristo triunfando da Morte e do Pecado, colecção do Museu Nacional de Arte Antiga). Repare: Cristo acaba de ressuscitar, tem aos pés um esqueleto e uma serpente — símbolos da morte e do pecado —, um anjo toca um trompete e outro põe uma coroa de louros na sua cabeça — símbolos de vitória — e, para não estar nu, como é que o pintor cobre Jesus Cristo? Com um manto vermelho.
E as fardas de tantos exércitos, tantas vezes vermelhas? E a cama de D. Pedro V e D. Estefânia, forrada a sede vermelha, ainda a uso no Palácio de Belém quando a monarquia portuguesa caiu? Foi neste “leito nupcial” que, no início do século XX, ainda dormiram um Presidente francês, um rei de Espanha, um imperador alemão e os duques de Connaught. Esses convidados de honra do Estado português olharam para a seda da cama onde iam dormir como símbolo de poder, sangue, fogo castigador ou amor carnal?
Há a maldição das sapatilhas de ballet vermelhas do filme The red shoes, de Michael Powell, que sugam a bailarina do teatro e a arrastam pelo ar, a castigá-la por ter escolhido o palco em vez do amor. E há os sapatos vermelhos do Feiticeiro de Oz que ajudam a inocente Dorothy. Está a ver a diferença das idades? Perfeitos na infância, demoníacos na maturidade. Como a capa do Capuchinho Vermelho, dos irmãos Grimm, de 1857, ou O vestido cor de fogo, de José Régio, de 1946. Um é inocência, outro é loucura.
Olhamos para os vermelhos de Piet Mondrian ou de Ellsworth Kelly ou de Wassily Kandinsky ou de Mark Rothko ou de Kasimir Malevich e vemos o quê? E o vermelho das flores de Georgia O’Keeffe? Todos vêem sempre sexo, ela sempre disse que eram apenas flores.
Leio a interpretação que Matthew Collings faz do quadro The Dance of Life, de Edvard Munch, de 1899, em This is Modern Art (Seven Dials, 2006): “Pessoas dançam à beira-mar sob um céu vermelho. Estamos no século XIX. Uma pintura de Munch. Os homens estão de fato preto elegante. As mulheres estão de vestido comprido com cores simbólicas. Uma mulher é inocente. Flores crescem na relva à volta do seu vestido branco. Uma está consternada. Vestido preto. Não há flores. Uma está a ser devorada por um homem. Vestido vermelho-sangue. É a dança da vida.”
Olho outra vez e outra vez para o quadro. Vou ao Google para ver a pintura aumentada e ampliar a expressão dos dois, os corpos, as mãos. Não sei onde Collings, célebre crítico de arte, vê a mulher a ser “devorada”. O par está no centro da pintura, os dois dançam concentrados, muito direitos, olhos nos olhos, seriíssimos, quase tristes e passivos. Não há tensão, muito menos paixão, estão quase murchos. Fico a pensar que o “devorar” só pode ter vindo do vestido vermelho. É assim tão básico? Collings, como tantos homens à nossa volta, ficou preso ao vermelho do século XVI. Querido amigo, move on. Vermelho é vermelho.
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Imagem de destaque: Atelier de Rubens (Foto José Manuel) // © Museu da Presidência da República («Cristo triunfando sobre a Morte e o Pecado», na Sala Dourada: pintura a óleo atribuída à oficina de Peter Paul Rubens. 1600-1650)




