Fotografia de Tanja Cotoaga

Autópsia de uma piada

Se uma piada chega à mesa de autópsia, podemos ter a certeza de que não haverá erro médico; a piada está mesmo morta, finada, defunta, liquidada. Excluindo o pequeno grupo de estudiosos do humor, que se interessam tanto pela piada falhada como por aquela que gera uma gargalhada, explicar a nossa piada é sempre um exercício penoso em que a expectativa do autor se vai desnudando perante a indiferença da sala. “Era uma piada” nunca é uma mera descrição, pois soa sempre a declaração de óbito.

A última piada a ter dado entrada numa morgue cada vez mais lotada foi escrita por Miguel Seabra no verso de um cartaz anunciando uma palestra no âmbito do Dia Internacional da Mulher, que esteve afixado nas instalações do Nova Medical School Research, da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, onde Seabra é investigador principal e professor. A piada foi esta: “O homem branco está em vias de extinção na ciência! Miguel Seabra. Vamos comemorar o dia do survivor”.

Quem conhece Miguel Seabra sabe que se trata mesmo de uma piada com aparentes ecos de misoginia e racismo que não reflectem o pensamento e a prática do investigador. Mas para os muitos que não o conhecerão e numa época de tensões identitárias crescentes, o texto foi logo lido como uma tese machista e racista. Nem a afirmação factualmente absurda de que o homem branco está em vias de extinção na ciência foi suficiente para impedir a interpretação equivocada.

A propósito deste caso, na sua habitual defesa da liberdade de expressão, Ricardo Araújo Pereira afirmou que a qualidade da piada é irrelevante, porque não podemos atribuir a ninguém o poder de decidir se piada é boa ou má. Discordo. Avaliar a piada não exige um comité com poderes ilegítimos porque a avaliação atinge o máximo de descentralização possível: é dentro da cabeça de cada um que ocorre, como uma síntese que integra a qualidade técnica da piada, vista à luz de critérios estéticos, com a  mundividência do apreciador (ele estará menos predisposto a rir se se sentir caricaturado ou vir ridicularizados os seus valores) e a apreciação que este faz do contexto (o que, por exemplo, leva um homem branco consciencioso a sentir-se mais predisposto a rir quando a piada racista é dita por um negro). Trata-se de uma equação complexa, mas que cada um resolve numa fracção de segundo. Como resposta a uma piada politicamente incorrecta, uma gargalhada ou riso irreprimíveis dizem-nos que a avaliação foi boa, por muito que quem riu ou sorriu queira depois emendar-se; as manifestações fisiológicas do humor, como as da excitação sexual, são de uma honestidade imbatível. Porque integra a mundividência do receptor, a avaliação da piada torna-se muito subjectiva e só uma maioria funciona como consenso possível, mas é esta integração da mundividência que explica que pessoas com uma “identidade moral forte” geralmente sejam menos divertidas e mais difíceis de divertir ou que Mark Twain tivesse escrito “There is no humor in heaven”. Enfim, num ponto RAP terá razão: a constituição de uma comissão da Nova Medical School para avaliar este caso parece o princípio de uma nova piada: membros de uma comissão de analistas de humor entram num bar…

A posição maximalista de RAP sobre a liberdade de dizer piadas tem a vantagem de não deixar qualquer dúvida sobre a sua posição, mas por vezes soa a deformação profissional que não resiste a um teste de stress. Porque se qualquer piada, pelo simples facto de ser uma afirmação que não é para ser levada a sério, iliba o seu autor de qualquer crítica moral e eventuais penalizações sociais, então se um nosso futuro Presidente da República, por traço de personalidade ou manifestação tardia da síndrome de Tourette, fizesse de um discurso do 10 de Junho um número de stand up de humor insultuoso dirigido a comunidades imigradas em Portugal, deveríamos encolher os ombros e dizer que tinham sido apenas graçolas e não xenofobia de Estado? Será que os imigrantes teriam de ficar com o fardo de interpretar as palavras do Presidente, descobrindo-lhes a essência soterrada em camadas de ironia? E que aproveitamento da ambiguidade discursiva seria feito pelo Chega? Se o exemplo parecer caricato, lembremo-nos do Ministro do Ambiente e Recursos Naturais Carlos Borrego que, em 1993, poucas semanas depois da tragédia que vitimou 25 doentes sujeitos a hemodiálise por excesso de alumínio na água, resolveu contar uma anedota sobre o assunto.

Para RAP, deduzo[1] que o ministro não deveria ter sido demitido, pois era apenas uma piada, mas suspeito que a vasta maioria das pessoas pensou que a demissão foi a decisão correcta. E a maioria é o consenso que nos sobra sobre este assunto.

Se não adoptarmos a visão maximalista da liberdade de expressão que o ilibaria de imediato, haverá então defesa possível para Miguel Seabra, tendo em conta que o seu gesto foi criticado quase todos? A resposta parece-me evidente. Não direi que a sua piada foi tecnicamente tão boa que valeu a pena; a minha reacção foi de espanto, não de riso. Mas em nada a sua eventual falha justifica a penalização social de que Miguel Seabra já foi alvo, que o levou a apresentar o pedido de demissão do programa de doutoramento da Champalimaud. A sua piada não causa o desconforto que a piada do Ministro Borrego terá causado aos familiares das vítimas daquela tragédia, porque o assunto não é tão pesado, nem é ofensiva para as mulheres como foi a declaração sem qualquer intenção jocosa de Larry Sommers, quando presidente da Universidade de Harvard, de que há um défice de mulheres entre as pessoas com capacidades cognitivas extraordinárias (que levaria à sua demissão em 2006). Se há uma comparação que vem à lembrança, é com o episódio que levou o Nobel da Medicina Timothy Hunt à desgraça, em 2015, por ter visto uma piada sua, proferida num discurso para mulheres, ser propagada com má-fé de forma descontextualizada, fazendo passá-lo por misógino primário. No discurso que proferiu, já na parte que foi truncada, Hunt fez um aparte autodepreciativo que neutralizou a piada dita instantes antes e acrescentou ainda um rasgado elogio às mulheres cientistas.

No caso da piada de Seabra, o elogio às mulheres também lá está, só que não de forma explícita e a posteriori, como no caso de Hunt, pois tratou-se de um elogio implícito a anteriori. Isto parece-me evidente, mas que esta defesa não tenha ainda sido feita diz algo sobre o receio de abordar este assunto em público. E não se pense que me move a possibilidade de impressionar com uma inusitada transmutação da boçalidade aparente em cavalheirismo subliminar. Acredito na explicação seguinte por me parecer ser a única que torna menos surpreendente o escrito de Seabra, que ninguém tem sequer por provocador ou indelicado.

Há boas razões para celebrar as mulheres na ciência. As mulheres foram durante milénios excluídas da maior parte das profissões a que associamos uma carreira e uma vocação. Nas últimas décadas, caminhou-se muito no sentido da paridade no trabalho. E como este caminho tem sido feito a um ritmo desigual em função da área profissional e do país, ao nível do planeta e, nas sociedades ocidentais, também dentro de cada país, o que vemos hoje é um mosaico com manchas de paridade misturadas com as de quase-paridade e as de paridade muito aquém. Ora, no caso concreto das ciências biomédicas portuguesas, a paridade foi plenamente atingida. Em Portugal, há mais de 30 anos que, todos os anos, sem uma única excepção, se formam mais mulheres em medicina do que homens. A directora da faculdade de Miguel Seabra é uma mulher. Dos três investigadores do Nova Medical School Research que têm o financiamento europeu mais apetecido (os projectos ERC), duas são mulheres. O primeiro projecto ERC que veio para Portugal foi atribuído a uma mulher. Dos cinco prémios Pessoa entregues a cientistas de Biomedicina portugueses nas últimas décadas, três foram para mulheres. Dois dos directores dos três principais institutos de investigação biomédica da Grande Lisboa (IMM e IGC) são mulheres e o terceiro (o Center for the Unknown) confunde-se com a Fundação Champalimaud, presidida por uma mulher. É absolutamente incontroverso e óbvio que as mulheres portuguesas têm tido carreiras de sucesso na academia e investigação em Biomedicina, não devendo favores a ninguém. Não quero com isto dizer que é disparatado celebrar o Dia Internacional da Mulher numa instituição portuguesa de Biomedicina. As sociedades querem-se coesas e devemos defender as causas nobres e não apenas aquelas que servem os interesses mais imediatos e próximos de cada grupo. Nem estou a sugerir que vivemos uma crise de homens na Biomedicina, obviamente. Apenas procuro identificar os elementos que terão levado Miguel Seabra a escrever uma frase que surpreendeu todos os seus colegas.

Nunca se saberá plenamente. A tentação da piada é um mistério e, como dizem os brasileiros, por vezes “perdemos um amigo mas não perdemos a piada”. Porém, neste caso, a piada foi facilitada por ter sido escrita aqui e não no Afeganistão. Na sua piada, o mecanismo explorado é a inversão de papéis, ao pôr “o homem branco” no lugar da mulher – en passant, o “branco” apenas frisa que se trata de uma inversão que involve o grupo tradicionalmente mais poderoso (poderia ainda ter juntado “heterossexual”), não tendo por isso qualquer conotação racista. Seabra terá pensado que a paridade na Biomedicina já teria dado às mulheres cientistas o direito a serem gozadas como gostamos de gozar com os poderosos. Acredito que foi esta boa-fé que o moveu naquele dia. O seu erro terá sido pensar que elas já conquistaram esse direito sem se dar conta de que ainda não ganharam o hábito.

Entristece-me que uma reacção intempestiva e uma catadupa de exibições de virtudes que atingiu o nível institucional tivesse depois transformado uma piada numa espécie de blasfémia e  “verdadeira metáfora do poder instituído – conservador e antiprogressista”. Calma. Que haja lugar nas universidades e nos institutos de investigação para alguma ousadia e surpresa no discurso, ainda que por vezes se estranhe e não se entranhe. Se começamos a ter medo de arriscar nas piadas, ainda mais depressa deixaremos de correr riscos nas ideias.
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[1] Adenda: Ricardo Araújo Pereira contactou-me para corrigir a minha dedução sobre a sua posição no caso da piada de 1993 de Carlos Borrego. Disse-me até que já escreveu que concordou com a demissão do Ministro do Ambiente, texto que eu desconhecia. Fica feita a correcção e resta-me pedir-lhe desculpa pela interpretação abusiva e por não ter procurado saber se já havia expressado alguma opinião sobre este episódio.

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