Um periódico da chamada imprensa regional — impropriamente chamada: a imprensa é por natureza universal, até quando a natureza é ridiculamente local — noticiou, e bem, que Wittgenstein, aquando de breve passagem por Alcochete, foi interpelado por um cidadão anónimo com a insólita pergunta: “— Não concorda que os periodistas de opinião que escrevem nos jornais ou praticam a loquacidade nas rádios e televisões deveriam estar sujeitos a escrutínio, limitados a mandato e designados por eleição?” A notícia terminava informando que o interpelado respondeu: “— A respeito do que não se pode falar, deve manter-se silêncio.”
De imediato, surgiu na caixa de comentários um leitor afoito que contestou essa última informação. Alegava ser ninguém menos que o cidadão anónimo; e o argumento da identidade bastava-lhe — e bem, dizia — para acusar a notícia de ser “parcialmente falsa”. Sem indignação nem vaidade, contrapôs então que Wittgenstein teria apenas respondido: “— Os periodistas de opinião devem ser deixados em paz.”
Obviamente, o leitor afoito não tinha razão nenhuma. A falsidade do desfecho implica, e bem, a falsidade da notícia toda: não existe notícia parcialmente falsa. O que releva para efeitos de verdade ou falsidade não é — e bem! — o acumulado solto de factos avulsos, mas o englobo deles por efeito de remate implacável. Como saber, então, o que teria dito o visitante ao perguntador insólito? A diferença parece miúda, aspecto que aliás desfere, e bem, uns quantos golpes de suspeição sobre o conjunto: é sabido que as melhores mentiras são as que divergem da verdade num pequeno ponto imperceptível para quem ouve ou lê, incluindo, bem entendido, o próprio mentiroso. Não deve ser outra a razão por que se diz, e bem, que se apanha mais depressa um mentiroso do que pessoa com severas dificuldades de mobilidade. Foge-me sempre — e bem? — a razão por que não se diz coxo. Ainda se fosse cambado; seria de repudiar, e bem, pela proximidade com torto. Coxo é o que corre mais rápido do que um mentiroso — e isso é positivo, no plano familiar como no da imprensa regional.
E bem, voltando ao ponto, que havemos de fazer senão aplaudir quer o periódico quer o leitor afoito? Mais vale aplaudir que denunciar — e antes admirar que depreciar. O critério do aplauso é que é o diabo… se falta ou for dado a intermitências, como fazer? Foi então que o autor compreendeu a necessidade de um provedor: um guardião do critério, vamos dizer assim, e bem. Abrimos um concurso público, internacional — e bem, para não alimentar a cena da nefanda endogamia —, entregámos a selecção a dois vigilantes capazes de encontrar minúcias reprováveis num académico esloveno; e apareceu enfim o provedor, que entrou sem demora em funções. E que bem!
Pois foi o caso que, no mês passado, o autor errou ou parece ter errado. Mencionou de passagem certa pessoa que tentava concluir uma versão de Os Maias; pode ser que tenham lido. Um sujeito arreliado exprimiu-se em conformidade — que seria inaceitável ficção malévola, no melhor cenário, o projecto de enclausurar Pedro da Maia num convento —, enquanto outro, como se a desmentir o primeiro, dizia conhecer em pormenor a verdadeira história alternativa, em virtude de certo acesso privilegiado, e acusou o autor de a deturpar quase toda. Não garanto que o privilégio não fosse estar ele próprio a escrevê-la; seja como for, resumia-a assim: sendo certo que Pedro da Maia não se despede da vida, não vai para convento nenhum; sendo certo que socorre de noite pessoas em aflição e reconhece de facto uma delas, o que lhe diz é antes isto: — Oh…tu! sabes tu, Hermengarda, o que é passar dez anos amarrado ao próprio cadáver? E a infeliz responde-lhe: — Cala-te, canalha! Qual Hermengarda?! Não reconheces a tua própria filha?
Perante a manifesta e desagradável desinteligência em torno de matéria de tão escasso interesse, o recém-contratado provedor exigiu ao autor que se explicasse; o autor confessou conhecer a cena alternativa, que de resto o comoveu, mas não a considerou por ser unilateral o reconhecimento e não haver fonte fidedigna a respeito da reacção de Pedro da Maia. O provedor, inexorável — e bem —, obrigou o autor a repor a inteireza da informação, com as duas versões em paralelo, decretando não haver fundamento para decidir qual delas é melhor. E acrescentou: se há Pride and Prejudice and Zombies, porque não há-de haver Eurico, o presbítero e Batman?
Este remate deixou o autor muitíssimo agastado. Notem a inquietação: e se o critério do provedor for pior do que as piores consequências da respectiva inexistência? É claro que o cargo tem âmbito bem circunscrito; não obstante, o autor não pode ignorar o risco de transferir para o provedor parte da sua autonomia, até a parte decisiva, a saber, a vigilância do significado sobre a inscrição do significante. «Transcendental, o significado é transcendental, não esquecer» — podia agora observar o provedor, se estivesse a vigiar. Mas não está; ele próprio de resto sugeriu a cláusula de apenas actuar après coup: mas dizê-lo em francês não se tornou mais rassurant. Aahah, graçola escusada, diria o provedor se estivesse a espreitar. Mas não está; e se não está — donde o problema então?
Não sei dizer. É um desconforto; digamos, e bem, difuso. O autor ter alguém a espreitar-lhe a prosa no acto de a compor, no ponto de ganhar ou forma ou desconchavo, apenas se tolera em condições particularíssimas; aliás repito-me, porque já esclareci que nestas frases ninguém interfere. Salvo o destino. As frases são como as pessoas, parecem depender de se conformarem com o seu destino, e o destino repousa opaco no ventre do tempo. Aqui viria a ponto a intervenção punitiva do provedor: havia de descobrir, por si mesmo ou denúncia alheia, que copiei uma frase de Robert Walser: as frases, o destino que repousa, o ventre do tempo… O receio do autor, vamos dizer assim, e bem, é não estar seguro de ser autor pleno, em regra, por condição, ou algo para o mesmo efeito; o provedor, presente e omnipotente, espreitando evitaria o delito, mas não o receio. Sendo porém fraco de recursos e actuando après coup — e sobretudo se complacente com a denúncia —, receio que corrobore os motivos do receio com a complicação suplementar de enredar o autor num processo incontrolável de correcções e arrependimentos.
Enfim, convenhamos que isto é tudo um tanto teórico; sabe-se lá que tipo de provedor arranjou o autor, se omnipotente se destituído. Se calhar nem chegou a perguntar-lhe se acredita nas propriedades profilácticas do sabão azul. Por outro lado, talvez nem venha ao caso, pois parece não haver caminho para um autor cujo destino nem ao ventre do tempo deve ter chegado. Ou publica, e o provedor recebe queixas; ou não publica, e o provedor fica desempregado. A alternativa alternativa seria: ou publica e ninguém se queixa, ou ninguém se queixa porque ninguém lê. A situação profissional do provedor não melhora; o pesadelo do autor permanece. O provedor continua a vigiar; armazena pequenos e médios delitos, prepara a instrução, deleita-se com certas visualidades, repreensões, advertências.…Dir-se-ia, e bem, que isto do provedor foi uma má ideia. Mas agora já está.