Hoje vamos conjecturar que um benemérito do Norte, fundador de uma IPSS dedicada à educação da infância e juventude, teve a ideia peregrina de reunir num fim-de-semana os companheiros de escola que ainda estivessem convencidos de que os exames são uma abominação. Deve presumir-se que estaria ele mesmo convencido disso mesmo: senão, com que fito havia um benemérito de reunir-se com pessoas de persuasão adversa? Hélas! nenhuma pessoa de persuasão nenhuma lá foi. Sendo aliás estranho; um fim-de-semana, pagas as despesas de viagens e alojamento… Como o caracterizasse certa impulsividade, emitiu nova convocação, sem apurar a causa da ausência das pessoas que tomara por certas; não chegou portanto a saber que tinham ido quase todas a Alcochete ouvir as palestras de um filósofo chamado Wittgenstein. Expedição de resto malograda, porque o homem não aprovou as acomodações que lhe proporcionaram, mantendo-se em silêncio até regressar a casa.
O ponto racional deste enredo, dir-se-ia a frustração. Tanto o benemérito como os condiscípulos foram frustrados. Pessoas de certa profissão tenderiam a intrometer-se com o aviso — para elas um modo de vida — de que a tolerância à frustração é uma virtude a cultivar desde a infância; não se dão conta de neste particular preferirem a abominação à mais do que recomendável trivialidade: a lição a tirar é apenas que a vida proporciona ocasiões em que as melhores intenções de pouco valem e os piores imprevistos par contre valem muito.
O desejo de melhorar a vida de todos é evidentemente compreensível. Muitíssimas pessoas o sentem no decurso da passagem pelo planeta; muitas até o manifestam em modalidades variadas; parte não menos significativa alcança satisfazê-lo profissionalmente, ganhando portanto a vida a melhorar a dos outros; neste último contingente, um regimento especial dedica-se às crianças, e um pelotão especialíssimo desse destacamento especial faz publicar pequenos escritos com sugestões e conselhos para educar as crianças, decerto querendo melhorar o mundo povoando-o de crianças bem educadas — ou melhorar a vida dos pais que, uma vez cumprida a contribuição demográfica, almejam um fim-de-semana tranquilo na Foz do Arelho. Esta alternativa, não pondo em causa o desejo de melhorar a vida de todos, ilustra o princípio de que raramente é possível fazê-lo sem piorar a vida de alguns, por vezes muitos. Não obstante, os mais determinados insistem, e agradecemos o exemplo: decerto inspirador, par ailleurs inquietante. Contaram-me pormenores, que naturalmente não divulgo, da vida de certa pessoa que trabalha há dois anos numa versão d’Os Maias em que Pedro da Maia se recolhe a um convento e secretamente, durante a noite, socorre pessoas em aflição, vindo a reconhecer numa delas a filha que desaparecera em criança sem que o narrador do romance se tivesse apercebido. Já se imagina a alegria do encontro — a dificuldade de a narrar num impecável idioma queirosiano é que não se imagina. Ontem mesmo li que a linguagem tem de se adaptar às necessidades das pessoas porque a linguagem está ou deve estar ao serviço das pessoas. As crianças, acredito que acreditem nisso, ou pratiquem tal convicção desconhecendo-a: mas a linguagem ao serviço das pessoas não ia melhorar a vida de ninguém, crianças incluídas. Nem Estaline, reputado ditador, permitiu que semelhante fantasia se propagasse. É conhecido que escreveu uns artigos sobre questões linguísticas, aliás curiosos: nomeava uns camaradas, parece que por ele mesmo inventados, que lhe faziam perguntas a que respondia com esmero e paciência. O ponto controverso, cuidou de o esclarecer estipulando que a linguagem não pertencia nem à base económica nem à superestrutura: e assim, em nome do Estado soviético, decretou que não se melhora a vida das pessoas intimando à linguagem que se ajeite ao dispor das pessoas. Quem sabe se o mesmo Estaline, nos dias desorientados que vivemos, não ousaria desterrar para a Sibéria, a título de abominação, o masculino genérico.
É claro que abominação não é palavra que se use na frente de crianças. Masculino genérico também não, embora por motivos diferentes, menos dispostos a compelir quem lida com pessoas infantis. Insinuar na vida das crianças en tant que tels a ideia de que coisas e fenómenos delas desconhecidos podem designar-se com a palavra abominação pode ser abominação genuína; não as prepara para o futuro, como dizem da escola, antes lhes envenena o presente. De resto, que diabo há-de significar preparar crianças para o futuro se nem sabemos se o futuro está preparado para as crianças? Logo, insensatez maior não há do que querer preparar as crianças estando os próprios preparadores tão inapelavelmente impreparados. É certo que todos mais ou menos esperamos o extermínio, que dispensa preparação; mas nada nos assegura que a inundação das zonas costeiras pelos oceanos não seja antecedida do desmantelamento dos centros de investigação das universidades, da criminalização do sabão azul ou, já agora, da ressurreição de Estaline. Tudo sinais de abominação, alinhados diante dos nossos olhos, que demoram, não obstante, a reconhecê-los: afinal, dar-se-á o caso de a vida propriamente dita não estar ao serviço da vida das pessoas?!
Com efeito! Outra coisa que encontrei impressa há dias foi que ninguém consegue falar com o seu destino, e nisso acreditei sem hesitar, porque é verdade: podemos chamá-lo, até familiarmente “— Anda cá, meu rapaz!”, que ele vai sempre à frente, exercendo a prática de existir sem se manifestar. Não nos fala, nem deixa que lhe falemos: como convencê-lo então de que a nossa vida seria bem melhor se ele não armasse contra nós nenhuma cilada nem desferisse golpes imprevistos de aparência inocente?
Daí o perigo. E daí o aviso: parem de dar sugestões e conselhos para a educação das crianças. Nem é difícil, basta uma dose do melhor remédio: um breve texto de Natalia Ginzburg, “As pequenas virtudes”. Respiguei algumas das suas preciosidades, que candidato a embrião de um programa de suspensão imediata da publicação de conselhos e sugestões para educar as crianças. Na verdade, é uma grinalda, assim:
No que diz respeito à educação dos filhos, penso que se deve ensinar-lhes, não as pequenas virtudes, mas as grandes. Não a poupança, mas a generosidade e a indiferença ao dinheiro; não a prudência, mas a coragem e o desdém pelo perigo; não a astúcia, mas a franqueza e o amor à verdade; não a diplomacia, mas o amor ao próximo e a abnegação; não o desejo de sucesso, mas o desejo de ser e de saber.
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A educação não é senão certa relação que criamos entre nós e nossos filhos, certo clima em que florescem os sentimentos, os instintos, as ideias. Ora, creio que num clima apenas gerado pelo respeito às pequenas virtudes amadurece insensivelmente o cinismo ou o medo de viver.
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Em geral, creio que se deve ter muita cautela a prometer e aplicar prémios e castigos. A vida raramente terá prémios e castigos: no mais das vezes, os sacrifícios não têm nenhuma recompensa e frequentemente as más acções não são punidas, mas pelo contrário lautamente recompensadas com sucesso e dinheiro. Por isso é melhor que nossos filhos saibam desde a infância que o bem não é recompensado nem o mal recebe castigo; e que no entanto devemos amar o bem e odiar o mal, não havendo para isso nenhuma explicação lógica.
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A verdadeira defesa contra a riqueza não é o medo da riqueza, da sua fragilidade e das consequências viciosas que pode trazer: a verdadeira defesa contra a riqueza é a indiferença ao dinheiro. Para se educar um rapaz nessa indiferença, não há outra maneira senão dar-lhe dinheiro para gastar, quando houver dinheiro: porque aprende a separar-se dele sem dor nem remorso. Dir-me-ão que assim o rapaz se habitua a ter dinheiro para gastar e já não poderá passar sem ele; se amanhã não for rico, como vai ser? Mas é mais fácil não ter dinheiro depois de se ter aprendido a gastá-lo, depois de se ter aprendido como nos desaparece depressa das mãos; é mais fácil passar sem dinheiro quando já o tivermos conhecido do que depois de passar a infância a ter-lhe medo e reverência, sentindo-lhe a presença à nossa volta sem que nos tenham deixado levantar os olhos e olhá-lo na cara.
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Não deveríamos ensinar os nossos filhos a poupar: deveríamos habituá-los a gastar.
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Estamos habituados a dar ao aproveitamento escolar dos nossos filhos uma importância de todo infundada.
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Na educação, o que nos deve importar acima de tudo é que os nossos filhos nunca percam o amor à vida.
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Eles devem saber que não nos pertencem, que somos nós que lhes pertencemos, sempre disponíveis, presentes no quarto ao lado, prontos a responder como pudermos a qualquer pergunta possível, a qualquer pedido.
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Quem quiser procurar o texto completo, já leva daqui razoável noção do que o espera; querendo porém evitar, como se fugisse da maior das abominações, estará precavido se o destino lhe deparar As pequenas virtudes e a grande Natalia Ginzburg. O desejo de melhorar a vida de todos continuará quand même compreensível.