Os escândalos que rodearam o Campeonato do Mundo no Qatar (da corrupção e espionagem de Estado às violações dos direitos humanos) são apenas os últimos capítulos nos inúmeros episódios que têm afetado a credibilidade do futebol (e do desporto em geral), de tal forma que começam a multiplicar-se as séries documentais que transformam o desporto em entretenimento policial.
A grande maioria destes episódios são dignos das melhores séries criminais. Os escândalos de corrupção detetados no futebol pelo FBI em 2015 eram tão generalizados que as autoridades criminais norte-americanas consideraram seriamente tratar toda a FIFA como uma organização criminosa. Recentemente, o Ministério Público belga revelou um sistema corruptivo que envolvia desde alguns dos principais dirigentes e agentes desportivos a dois árbitros internacionais e até jornalistas (cuja tarefa incluía o requinte de escrever crónicas ilibando os árbitros dos seus erros). E nem falo das sagas envolvendo alguns dos principais responsáveis e clubes portugueses pois — fiéis à nossa tradição que favorece as longas novelas em vez das séries de ficção mais curtas — nunca saberemos quando, se algum dia, irão terminar…
Muitas investigações jornalísticas e relatórios internacionais dizem-nos que estes episódios são apenas a ponta do iceberg. Um ex-Director da Agência Mundial Anti-Doping afirmou que 25% do desporto é controlado por organizações criminosas. A Comissão Europeia e o Parlamento Europeu incluíram o desporto (o futebol em especial) entre as atividades mais em risco de fraude fiscal e lavagem de dinheiro. Os enormes montantes (na ordem dos triliões) envolvidos nas apostas desportivas online têm aumentado os casos de match-fixing, envolvendo hoje não apenas a compra de árbitros e atletas mas dos próprios clubes. As denúncias de assédio sexual e físico sobre atletas têm-se também multiplicado e suspeita-se que são bem superiores às reveladas (dada a cultura de segredo e intimidação que domina o desporto).
Poderia prosseguir facilmente esta litania de horrores. Do doping promovido por Estados, perante (na melhor das hipóteses) a inércia das organizações desportivas, às frequentes violações dos direitos humanos. E poderia incluir nesta lista um conjunto de outros valores que as organizações desportivas frequentemente assumem proteger, como a solidariedade e o equilíbrio competitivo ou o denominado carácter aberto do modelo desportivo europeu (assente na promoção e relegação entre diferentes níveis competitivos), mas que, contraditoriamente, têm vindo a diminuir de forma significativa. Vários estudos demonstram que o equilíbrio competitivo tem vindo a diminuir quer nas competições nacionais quer nas europeias. Muitos se revoltaram, e bem, com o risco de criação de uma superliga europeia, mas na verdade a Champions League está já bastante próxima disso.[1] Nas últimas duas décadas, apenas 5% dos clubes semifinalistas não pertenciam a uma das chamadas cinco Maiores Ligas (Inglaterra, Espanha, Alemanha, Itália, França). Antes, eram 50%… O impacto é ainda mais dramático na crescente assimetria competitiva dentro da grande maioria das ligas nacionais, em particular as mais pequenas (onde a ida de um único clube à Champions League lhe concede uma vantagem sobre todos os outros que se tende a auto perpetuar).
Infelizmente, a retórica desportiva dos valores tem muito pouca correspondência com a prática. O que explica essa discrepância e o fracasso das organizações desportivas na prossecução dos valores que afirmam ser os seus tem de ser encontrado no falhanço do seu modelo de governo.
Invocando uma legitimidade representativa dos diferentes interesses envolvidos nos seus desportos, as organizações de governo do desporto estão bem longe de garantir esse ideal. Como notava um artigo recente, apesar da hiper comercialização do desporto, o seu enquadramento cultural e cognitivo ainda é dominado por uma visão idílica que está longe de corresponder à realidade.
Primeiro, estão longe de ser realmente representativas. Adeptos e atletas não têm praticamente representação. As mulheres são fortemente discriminadas. Apenas 5% das federações desportivas na Europa são presididas por mulheres (os números ainda são piores a nível global) e 2% são presidentes de federações de futebol. Bastam estes números para compreender por que razão a principal conclusão do 2016 International Sports Report Card on Women in Leadership Roles fosse que “a liderança do desporto internacional é um clube exclusivamente masculino”.
A realidade é que, por detrás das eleições e dos congressos desportivos, se encontram verdadeiros cartéis políticos que dominam totalmente o poder no desporto. Isso manifesta-se, desde logo, na ausência de rotatividade no poder. Havelange foi Presidente da FIFA por 35 anos e foi substituído por Blater, o seu Secretário Geral. Este esteve no poder mais de 17 anos, só saindo por pressão das investigações criminais norte-americanas (apesar de ter sido reeleito já depois de presos vários dos membros da sua direção). É raríssimo um incumbente ter um opositor nas eleições e ainda mais raro que as perca… A ausência de oposição está de tal modo estabelecida que é frequente a eleição de presidentes por aclamação, como aconteceu na reeleição de Gianni Infantino (o atual Presidente da FIFA). A cartelização e controlo político é, igualmente, visível nas votações nos congressos, tão avassaladoras que encheriam de vergonha qualquer ditador…
Este controlo político tem correspondência numa enorme concentração de poder na presidência, modelo de governo que se estende da FIFA aos clubes. Ao mesmo tempo, os mecanismos de separação e escrutínio de poderes dentro da governação desportiva são fracos quando não inexistentes. Os órgãos disciplinares e judiciais não garantem condições de verdadeira independência e (como pude comprovar pessoalmente) são rapidamente substituídos quando procuram exercer essa independência. Logo, os instrumentos de escrutínio e responsabilização internos são muito limitados.
A cartelização, concentração de poder, opacidade e inexistência de separação de poderes e escrutínio efetivo fazem com que o modelo de governo do desporto seja incapaz de proteger a sua integridade e os seus valores.
Perante esta realidade, o que surpreende é aquilo que já foi definido como “a extraordinária autonomia das organizações desportivas”. Essa total autonomia, num contexto transnacional e pouco transparente, faz do desporto um “espaço” ideal para a atividade criminal (mais difícil de detetar na ausência de transparência e de entidades reguladoras e jurisdições criminais eficazes a nível transnacional).
O desporto, e o futebol em particular, é hoje, para além de uma área de imensa relevância social, o centro de inúmeras atividades económicas que representam na União Europeia mais de 2% do PIB. E trata-se de uma das áreas que mais crescerá em importância económica na medida em que somos cada vez mais economias orientadas para o lazer. Metade da população mundial é a audiência de um campeonato do mundo de futebol e dois terços seguem os jogos olímpicos. Algumas das empresas que mais cresceram no ranking 500 do Financial Times estão relacionadas com o desporto.
Este enorme impacto económico é o resultado da ainda maior importância social. E, no entanto, esta área de enorme importância económica e social é regulada pelos cartéis que acima descrevi sem qualquer forma efetiva de escrutínio e responsabilização pública e democrática. É quase impossível dar algum sentido a esta realidade. A este paraíso “regulatório” de que beneficia o desporto (incluindo o futebol).
Talvez se possa começar a compreender esse paraíso regulatório (que desagua num inferno de resultados) olhando para a proximidade entre política e desporto. Carl Otto Lenz (Advogado Geral do Tribunal de Justiça da União Europeia no famoso Processo Bosman sobre futebol) escreveu que “em nenhum outro caso, na minha carreira de magistrado de 14 anos no TJUE, sofri tantas tentativas de influenciar uma decisão; não há forma de sobre-estimarmos a influência política e poder do futebol”. A pergunta subsequente é o que explica esta captura da política pelo futebol. Isso exige um texto sobre a natureza da própria política, que fica para outra vez.
[1] https://www.thegu