[O]ne person’s ‘barbarian’ is another person’s ‘just doing what everybody else is doing.
Susan Sontag
Caro leitor que me olhas do outro lado (da janela do computador, a prótese-extensão que os humanoides carregam constantemente).
Tinha pensado em falar-te sobre Viena, desde a última vez: estive lá a primeira vez pelas mãos de um filme, uma trilogia romântica dos anos noventa, daquelas que nos enchem de esperanças para a vida toda (the right place, the right time, the one).
Depois fui a Viena em plena pandemia, a pretexto do Thomas Bernhard, com um amigo pensar uma performance operática apocalíptica.
Viena é linda com os seus palácios lado a lado com galerias de arte contemporânea.
Trovejou muito no dia de apresentação, e a Notgalerie parecia querer naufragar debaixo da chuva, recordo-me do S., na chuva a arrastar a capa/tenda, enquanto ao meu lado na galeria todos os objectos caíam desordenadamente.
Falamos muito de amor.
E reduzimo-lo a um único, o romântico, acima de todos os outros.
Aceitamos o retrocesso civilizacional nos Estados Unidos da América a decidirem sobre o direito à possibilidade de interrupção voluntária da gravidez revertendo o que foi decidido em 1973 no caso Waden vs Roe.
A tragédia ali ao pé: do perigo, da morte, da vergonha, do dedo na cara, de tantas mulheres, agora impossibilitadas de escolherem.
Aqui sentados, no conforto deste comboio (lembras-te de que aceitámos viajar juntos, por mais alguns meses, caro leitor? podemos pensar no rosto que amamos (e desejamos, ou queremos, nomes vários para enfatuações de toda a espécie).
Mas, por ora, penso neste contraste entre a hipersublimação da pequena dor versus a empatia face ao outro: o vizinho isolado, as mulheres ainda submissas a leis conservadoras, castradoras, punidoras: da Índia à Argentina, passando pela mutilação genital em países africanos e a recente proibição do acesso aos estudos para as mulheres no Afeganistão.
O amor das mulheres é ainda mais difícil, caro leitor.
Vejo-te constrangido do outro lado da janela, leitor: atravessas os dias com as tuas dificuldades, provavelmente cansado, e achas pueril estarmos a discutir as geografias e convulsões políticas, distantes.
Volto ao livro que trago para estes momentos de silêncio desconfortável: A Morte e a Donzela/Dramas de Princesas.
Nesta peça de teatro, Elinek, uma romancista/dramaturga que já foi prémio Nobel da literatura, trabalha a partir da (des)construção de arquétipos: Rosamunda, Bela Adormecida ou Jackie Kennedy, entre outras.
Elinek é feroz, arguta e esgrima connosco, talha palavras.
Tudo aqui é incómodo.
Para todos.
Porque não se trata do politicamente correto (expressão inadequada e fastidiosa) nem de uma atitude de santidade da aura feminina, mas de debater.
Debater exige liberdade.
A liberdade alimenta a poesia, mesmo que venha com a tragédia a tiracolo.
Lembro-me de Sylvia:
Poppies in October
Even the sun-clouds this morning cannot manage such skirts.
Nor the woman in the ambulance
Whose red heart blooms through her coat so astoundingly –
A gift, a love gift
Utterly unasked for
By a sky
Palely and flamily
Igniting its carbon monoxides, by eyes
Dulled to a halt under bowlers.
Oh my God, what am I
That these late mouths should cry open
In a forest of frosts, in a dawn of cornflowers.
Sylvia Plath (27 October 1962)
Volto a ti, a buscar os teus olhos.
Imagino-os azuis cor de safira ou castanho mel.
Imagino-os tranquilos e o teu cérebro a pensar em outras coisas, já: na guerra aqui ao lado, nos custos da inflação, no que nos aguarda num mundo pós-pandémico.
As mulheres ucranianas viram seus companheiros partirem.
Uma legião de horrores entrará para a História futura.
As mulheres russas também aguardam entre guerra, protestos, prisões.
Os jornais tentam, como num western, explicar a narrativa do horror.
Uma ilusão.
Gosto em particular de uma estória de resistência, memória e testemunho de uma poeta russa, Anna Akhmátova: a determinada altura, impossibilitada de publicar autonomamente, convidava Marina Tsvetaeva e depois de os ler uma única vez, queimava os poemas, devendo Tsvetaeva recordar os mesmos e publicá-los.
Porque me perco em tantas vozes?
Porque recordo o amor de Plath (à poesia, a Ted Hughes, ao que nunca chegou a ser suficiente), de Sontag, de Elinek a publicar livros considerados pornográficos por abordarem o desejo sexual do ponto de vista feminino erotónomo, na amizade de Anna e Marina e no amor/amizade, à família, ao país. Penso nos amores escondidos. Penso no amor que acabou, como uma ampulheta que chega inesperadamente ao fim. Penso em Rilke. E penso no desamor da guerra, seja ela fronteiriça, religiosa, ou de direitos civis.
Tomamos um café?