Este texto é sobre a importância de dizer “não sei” por três razões: porque nos liberta do fardo de estarmos sempre certos, porque se não sabemos podemos ter o prazer de descobrir e porque a valorização da humildade pode funcionar como defesa contra o totalitarismo.
Em 1961, com um império estabelecido durante os anos dourados de Hollywood, Jessie e John Danz criaram um fundo que permitiu à Universidade de Washington organizar uma série de conferências proferidas por académicos com interesse em ciência e em filosofia. Algumas destas conferências foram depois transformadas em pequenos livros maravilhosos, com reflexões de Francis Crick, Jacquetta Hawkes, François Jacob ou Richard Feynman. Na sua conferência de 1963, com o modesto título “The Meaning of It All”, este último reflectiu sobre a natureza da ciência e o seu papel na sociedade.
Uma ideia central é a da dúvida e como esta está intimamente ligada à liberdade. Escreve Feynman: “Esta liberdade de duvidar é uma questão importante em ciência e, creio, também noutros campos. Nasceu de uma luta. Foi uma luta duvidar, não ter certezas. (….) [Como cientista] sinto a responsabilidade de proclamar o valor dessa liberdade e de ensinar que não devemos temer a dúvida, mas antes devemos acolhê-la como a possibilidade de um novo potencial para os seres humanos. Se sabemos que não temos a certeza, temos a possibilidade de melhorar a situação. Quero exigir esta liberdade para as gerações futuras”[1].
Este “não sei” como privilégio contrasta com duas ideias muitas vezes associadas à ciência. Primeiro, com a pesada “dúvida existencial” (do só sei que nada sei), ao trazer liberdade: não saber é bom, porque nos permite a leveza da procura e a alegria da descoberta. É um “não sei, mas quero poder procurar”. A segunda, é a ideia de que a ciência se faz de respostas, de aplicações, de soluções. Esta ciência faz-se de perguntas e o caminho é tão ou mais importante do que a chegada.
Uma ideia semelhante encontra-se no discurso de aceitação da prémio Nobel da Literatura Wislawa Szymborska, mais de 30 anos depois, em 1996: “A inspiração não é privilégio exclusivo de poetas ou de artistas em geral. Há, houve e sempre haverá um certo grupo de pessoas que a inspiração visita.[2] É composto por todos aqueles que conscientemente escolheram a sua vocação e fazem o seu trabalho com amor e imaginação. (…) Uma revoada de novas questões emerge de cada problema que eles resolvem. Qualquer que seja a inspiração, ela nasce de um contínuo «não sei». (…) Por isso valorizo tanto acurta frase «não sei». É pequena, mas voa com asas poderosas. Ela expande as nossas vidas para incluir os espaços dentro de nós, bem como os espaços externos em que a nossa minúscula Terra está suspensa.”[3]
Um outro paralelo entre os dois textos é encontrado mais à frente. Feynman antecipa o declínio russo pela única razão de que lhe faltava liberdade e que a ciência, ao contrário da tecnologia, não se desenvolve sob controlo e imposição. E escreve Szymborska: “torturadores, ditadores, fanáticos e demagogos de todos os tipos, os que lutam pelo poder através de uns quantos slogans gritados também gostam do seu trabalho, e também eles cumprem as suas obrigações com fervor inventivo. Bem, sim, mas eles «sabem». Eles sabem, e tudo o que sabem é suficiente para eles de uma vez por todas. Eles não querem saber de mais nada, pois isso pode diminuir a força dos seus argumentos. E qualquer conhecimento que não conduza a novas perguntas rapidamente desaparece”[4].
Para além da beleza do texto, quatro ideias me agradam muito neste discurso: 1) não há inspiração sem dúvida; 2) conjugando liberdade e dúvida, é possível avançar o conhecimento e melhorar a sociedade; 3) a incerteza pode servir de antídoto para totalitarismos; 4) nem que seja apenas pela defesa do “não sei”, da liberdade de não saber, cientistas e artistas têm um papel social.
Ao contrário dos três primeiros pontos, que recolhem algum consenso, o último tem sido alvo de debate. Parece-me que a posição maioritária é que cientistas e responsáveis por instituições científicas não devem ter um papel político, sendo que aqui uso “político” nos seus sentidos lato (dos cidadãos, pertencendo aos cidadãos) e estrito, apesar de não necessariamente partidário. Cientistas, dizem-me, devem falar publicamente apenas sobre ciência. Naturalmente, vários medos orientam esta posição: medo de estar errado, medo de repercussões (principalmente num país pequeno e sujeito a nepotismo), medo de exposição pública… Por outro lado, também não existem muitos espaços onde estas conversas possam acontecer e as palestras Danz pareciam querer exactamente criar a oportunidade para tirar cientistas (e mais tarde também artistas e diferentes pensadores) da sua “zona de conforto”.
Logo no início da palestra, Feynman justifica-se: “O que sei de religião e política? Vários amigos do departamento de física e de outros lugares riram-se e disseram «gostava de ouvir o que tens para dizer. Não sabia que te interessavas por esses assuntos». O que eles queriam dizer, é claro, é que me interessava por eles, mas que nunca me atreveria a falar sobre eles. Ao falar do impacto das ideias de um determinado campo noutro campo, estamos sempre sujeitos a fazer figura de parvos. Nestes dias de especialização há muito poucas pessoas que tenham um conhecimento suficientemente profundo de dois campos para não fazerem figuras de parvas num ou noutro desses campos.” Feynman compreendia os riscos e a sua ignorância, mas fez divulgação de ciência, pensou publicamente sobre temas sociais e a certa altura até ficou obcecado por formigas, por exemplo. Ao seu “não sei”, foi sempre acrescentando um “mas gostaria de saber e tenho algumas ideias sobre o assunto”. Ao ir arriscando estes “mas”, pessoas como Feynman contribuíram imenso para avançar o conhecimento e para comunicar esses avanços tanto a especialistas como a não-especialistas. Essa inquietude tem sido uma benesse.
Mais uma vez Szymborska, enquanto celebrava o prémio dado à sua poesia: “Se a minha compatriota Marie Sklodowska-Curie nunca tivesse dito a si mesma «não sei», teria provavelmente acabado a ensinar química em alguma escola particular para meninas de boas famílias, e teria terminado os seus dias a fazer esse trabalho perfeitamente respeitável. Mas ela continuou a repetir «não se»”, e essas palavras conduziram-na, não apenas uma, mas duas vezes, a Estocolmo, onde espíritos inquietos e questionadores são ocasionalmente premiados com o Prémio Nobel.” Seja na física, na química, na literatura ou na paz.[5]
É esta a ideia que guiará os textos neste espaço: como promover o “não sei, mas…” e criar inquietude, fazendo pontes mais ou menos improváveis entre temas que me interessam e sobre os quais sei alguma coisa (ciência) ou muito pouco (artes e política). E no espírito das conferências de Danz irei, a cada mês, trazendo quem me ensine. A primeira convidada será a Patrícia Azevedo da Silva.
_
[1] Richard Feynman. “O Significado de Tudo – Reflexões de Um Cidadão-Cientista”, Gradiva (2001), p. 37.
[2] Para uma cientista esta constatação tem graça, porque é comum cientistas definirem o seu trabalho como criativo. E foi com surpresa que ouvi pela primeira vez arquitectos referirem-se a uma ideia para um projecto como “uma solução”.
[3] Wislawa Szymborska, discurso de aceitação do Prémio Nobel da Literatura, 1996, disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/literature/1996/szymborska/lecture/ “Inspiration is not the exclusive privilege of poets or artists generally. There is, has been, and will always be a certain group of people whom inspiration visits. It’s made up of all those who’ve consciously chosen their calling and do their job with love and imagination. (…) A swarm of new questions emerges from every problem they solve. Whatever inspiration is, it’s born from a continuous «I don’t know.» (…) This is why I value that little phrase «I don’t know» so highly. It’s small, but flies on mighty wings. It expands our lives to include the spaces within us as well as those outer expanses in which our tiny Earth hangs suspended.” Tradução da autora.
[4] Mesma referência. No original em inglês: “all sorts of torturers, dictators, fanatics, and demagogues struggling for power by way of a few loudly shouted slogans also enjoy their jobs, and they too perform their duties with inventive fervor. Well, yes, but they “know.” They know, and whatever they know is enough for them once and for all. They don’t want to find out about anything else, since that might diminish their arguments’ force. And any knowledge that doesn’t lead to new questions quickly dies out”. Tradução da autora.
[5] Mesma referência. No original em inglês: “Had my compatriot Marie Sklodowska-Curie never said to herself “I don’t know”, she probably would have wound up teaching chemistry at some private high school for young ladies from good families, and would have ended her days performing this otherwise perfectly respectable job. But she kept on saying “I don’t know,” and these words led her, not just once but twice, to Stockholm, where restless, questing spirits are occasionally rewarded with the Nobel Prize.” Tradução da autora.