1.
Na mão esquerda, uma ceira carregada de cravos; na direita, uma escada, uma coluna, uma cruz, uma vara com uma bandeira.
É estranho e bizarro, para dizer o mínimo, pôr uma criança, ademais tão nova, tão pequena, a carregar os artefactos da sua própria morte, mas é isso que sucede nesta estatueta em marfim, de autor desconhecido, vinda da Índia no século XVII e hoje exposta em Coimbra, no Museu Machado de Castro. Não é, aliás, caso único ou sequer raro, pois na peculiar estética da Contra-Reforma foram frequentes as figuras do Menino Jesus da Paixão, ora representadas na tela, ora em esculturas devocionais.
De resto, no presépio de Belém, tal qual surge descrito na narrativa canónica de Lucas (2,7), mas também no evangelho apócrifo de Tiago (XXII, 2), Cristo recém-nascido é envolto em panos por Maria numa prefiguração ou antecipação profética da sua Paixão e Morte. A Virgem que ampara o menino na manjedoura e o enfaixa em vestes alvas é já, naquele preciso instante, a mesmíssima Pietà ou Stabat Mater Dolorosa que, trinta e três anos depois, irá acolher o seu corpo envolto no sudário. O sinal dessa continuidade é dado pelos panos, que tanto encasulam um bebé como um cadáver, assim se marcando, por um lado, a polaridade entre a vida e a morte e, por outro, a eterna ciclicidade do tempo, feito de sucessivas extinções e de outros tantos renascimentos.
2.
Segundo dizem, a mais antiga representação da síndrome de Down conhecida em todo o mundo surge nesta A Adoração de Cristo-Menino, óleo da escola flamenga pintado circa 1515, cuja autoria é atribuída a um discípulo de Jan Joest of Kalkar e que se encontra actualmente exposto em Nova Iorque, no Metropolitan Museum of Art.
No rosto e nas mãos, o anjo ajoelhado à esquerda da Virgem Maria apresenta traços característicos de Trissomia 21, de acordo com um artigo publicado no Journal of Medical Genetics e outro no British Medical Journal.
O facto de a síndrome de Down, descrita cientificamente por John Langdon-Down só em 1866, ter tido uma representação artística no século XVI, e de essa representação constar num quadro da Natividade, talvez seja produto de mera coincidência ou – quem sabe? – signo de mais uma das muitas figurações proféticas em que o Natal é fértil.
3.
É também para cumprimento de um desígnio profético que surgem os animais do presépio, sob a forma do burro e da vaca (ou melhor dito, o boi), desde sempre tidos como símbolos de obediência e de mansidão. Os evangelhos canónicos, porém, não mencionam o burro e o boi, que aparecem tão-só no apócrifo de Pseudo-Mateus, o qual menciona, justamente, o dito de Isaías (“o boi conheceu o seu amo; e o burro, a manjedoura do seu Senhor”) e a profecia de Habacuc (“no meio de dois animais te darás a conhecer”).
E, assim, lá surgem o burro e o boi numa das mais antigas representações da Natividade que se conhecem, um ícone do século VII pertencente ao Mosteiro de Santa Catarina, no Monte Sinai, no qual a jovem puérpera surge reclinada, curiosamente, numa posição que quase se assemelha à de um animal em repouso. Séculos mais tarde, na sequência do Concílio de Trento, tudo o que assinalasse a gravidez de Maria – como a fadiga do pós-parto, retratada neste ícone velhíssimo, ou nas imagens da Senhora do Ó ou da Senhora da Expectação – foi erradicado em nome do dogma da concepção virginal do Menino, à luz do qual o nascimento de Cristo haveria de ser um acto destituído de toda e qualquer fisicalidade corpórea ou, se quisermos, completamente des-naturalizado. Ainda hoje há quem sinta incómodo, e até porventura escândalo, ao ver Maria pujantemente grávida, retratada como uma mulher carnal, tal como a pintou Paula Rego no Ciclo da Virgem Maria e da Paixão de Cristo, conjunto de oito quadros de 54 x 52cm que desde 2004 se encontram na Capela do Palácio de Belém.
4.
Em 2016, nas páginas do The New York Times, foi aventada a surpreendente hipótese de que a representação mais remota de Maria é um fragmento vindo de uma igreja de Deir ez-Zor, no leste da Síria, do século III, hoje conservado na Yale University Art Gallery.
Pensava-se que a pintura ilustraria o encontro entre Cristo e a samaritana arrependida, relatado no evangelho de João (4, 4-30), mas, como representações dessa cena colocam tradicionalmente as duas personagens em diálogo, o que aqui não sucede, reputados especialistas levantaram a hipótese de que se poderia tratar da Virgem Maria ou, mais precisamente, de uma imagem da Anunciação, tal como é descrita no apócrifo de Tiago (XI-1-3):
E <Maria> pegou numa bilha e saiu para tirar água. E eis que uma voz lhe diz: «Salve, favorecida! O Senhor <está> contigo! És bendita entre as mulheres.» E Maria olhou para a direita e para a esquerda, <para ver> donde <vinha> esta voz. E, tendo ficado receosa, entrou na casa dela e pousou a bilha; e, pegando na púrpura, sentou-se na cadeira dela e puxou-a.
E eis que um anjo do Senhor estava diante dela, dizendo: «Não temas, Maria. Pois encontraste graça diante do Amo de todos. Conceberás a partir do Verbo d’Ele.» (na tradução de Frederico Lourenço: Evangelhos Apócrifos Gregos e Latinos, Lisboa, Quetzal Editores, 2022).
A ideia de que a Virgem se fez grávida a partir da Palavra de Deus levou alguns padres da Igreja a afirmarem que Maria terá concebido através do ouvido, por uma obediente audição de um mandamento celeste, daí derivando, segundo se diz, a expressão popular “emprenhar pelos ouvidos”. Si non è vero, è molto ben trovato.
5.
Não se sabe ao certo onde foi Cole Porter buscar a inspiração para escrever a popular canção “Night and Day”, celebrizada por Fred Astaire em 1932, num musical da Broadway, e levada à tela dois anos depois, em épico dueto com Ginger Rogers. Uns dizem que a fonte de “Night and Day”, mais tarde entoada por Frank Sinatra, Billie Holiday, os U2, Ringo Starr, Tony Bennett e Lady Gaga, Rod Stewart, Cliff Richard, Diana Krall, The Temptations, etc., terá sido um cântico religioso islâmico, que Porter ouvira em Marrocos, outros garantem que o músico se inspirou na arquitectura mourisca do Hotel Alcazar em Cleveland Heights, no Ohio, mas as gentes e o turismo de Ravena afiançam que a origem da canção se encontra no Mausoléu de Gala Placídia, erguido entre 425 e 450, cujos mosaicos do tecto mimetizam assombrosamente a abóbada celeste, e que Cole Porter visitou nos anos 20, durante a sua lua-de-mel. Na entrada norte do templo, Cristo surge-nos como Bom Pastor, tal como é descrito nos evangelhos de João (10, 11-17) e Lucas (15, 4-7).
O musical de estreia de “Night and Day”, o último que Fred Astaire faria na Broadway, chamava-se, curiosamente, “The Gay Divorcee” e o seu enredo envolve um escritor americano apaixonado por uma mulher deslumbrante, o marido desta (Robert, um geólogo aborrecidíssimo), um advogado inglês e dois adultérios em Brighton, um verdadeiro, o dele, outro simulado, o dela.
Não se sabe ao certo se Cole Porter terá buscado inspiração para a sua música nos tectos de Gala Placídia, mas que uma historieta destas, com divórcio e adultério, surja associada a um mausoléu paleocristão do século V, evocativo da filha do imperador Teodósio, é só um, mais um, dos muitos e esplendorosos mistérios da Natividade.
Aos leitores deste almanaque, muitas e Boas Festas.