O elefante “Hanno” numa cópia de um desenho (perdido) realizado em 1516 por Raffaello Sanzio

O lugar onde os elefantes vão morrer

Em Novembro de 1549, chegou à corte espanhola de Valladolid, proveniente de Lisboa, o elefante “Salomão”, acompanhado pelo seu cornaca e por uma comitiva, sob os auspícios do rei João III de Portugal. Os caprichos dos homens e da geopolítica europeia ditaram que “Salomão” empreendesse, menos de dois anos depois, uma viagem bem mais longa e difícil, que o levou até Viena, onde viria a falecer em Dezembro de 1553. As andanças de “Salomão” andaram esquecidas durante quatro séculos e meio, até que foram dadas a conhecer ao grande público através do livro A Viagem do Elefante (2008), de José Saramago, com as liberdades inerentes ao mister de romancista.

Na versão corrente da história de “Salomão”, este terá sido um presente de João III de Portugal (1502-1557) para o casamento, em Valladolid, de Maximiliano de Áustria (1527-1576), sobrinho do sacro imperador germânico Carlos V (e Carlos I de Espanha, 1500-1558). As núpcias entre Maximiliano e Maria de Espanha, filha de Carlos e de Isabel de Portugal (e, logo, prima de Maximiliano) tiveram lugar a 13 de Setembro de 1548, 14 meses antes da chegada do elefante a Valladolid, um hiato que confere credibilidade a duas outras versões, menos difundidas, que explicam o envio do elefante de Lisboa para Valladolid: uma faz do paquiderme um presente de João III para o seu muito jovem neto Carlos (1545-1568), o primeiro filho de Filipe (futuro Filipe II de Espanha) e de Maria Manuela de Portugal (filha de João III). Outra versão propõe que “Salomão” terá sido enviado por João III à princesa Joana de Áustria (1535-1573), outra filha de Carlos V, que, em 1548, com 13 anos, fora prometida ao primo (duplamente primo, pelo lado da mãe e do pai), João Manuel de Portugal, filho de João III, então com 11 anos (o casamento teria lugar em 1552, mas foi efémero, uma vez que o enfermiço príncipe faleceu dois anos depois, com apenas 16 anos).

Ofertar elefantes poderá hoje parecer uma bizarra prática, mas, num tempo em que ainda não havia Rolexes nem Lamborghinis nem iates de luxo, era frequente no Oriente e tinha antecedentes na Europa: por volta do ano 800, o califa abássida Harun al-Rashid enviou um exemplar albino, baptizado como “Abul-Abbas”, ao imperador Carlos Magno, a fim de cimentar as relações diplomáticas entre as duas potências. Em 1229, noutra aproximação entre potências dos mundos islâmico e cristão, Al-Kamil, sultão do Egipto, ofereceu um elefante ao imperador Frederico II – o pretexto foi a assinatura do Tratado de Jafa, que pôs termo à VI Cruzada e o animal ficou conhecido como “o elefante de Cremona”, por ter sido a atracção principal numa procissão com que o imperador acolheu nesta cidade italiana o seu cunhado, Richard of Cornwall. Em circunstâncias análogas, por volta de 1252, no decurso da VII Cruzada, o sultão do Egipto propôs a Luís IX de França uma aliança contra a Síria e selou esta com a oferta de um elefante, que o rei francês levaria consigo no regresso a França e ofereceria, três anos depois, a Henrique III de Inglaterra.

A abertura da rota marítima entre Portugal e a Índia, na viragem dos séculos XV-XVI, tornou os elefantes mais acessíveis na Europa e entre 1511 e 1514 chegaram a Lisboa pelo menos quatro animais, um deles como oferta do rajá de Cochim a Manuel I de Portugal, outro como oferta de Afonso de Albuquerque, vice-rei da Índia, ao rei e mais dois enviados por Albuquerque a pedido do rei. Os animais foram instalados numa ménagerie (parque destinado a albergar uma colecção de animais) adstrita ao Paço da Ribeira, em Lisboa, e um deles, com o nome de “Hanno”, foi, em 1514, enviado como presente para o papa Leão X, integrado numa sumptuosa embaixada a Roma liderada por Tristão da Cunha e que incluía, entre outras riquezas e maravilhas da Ásia e África, uma quarentena de animais exóticos. A embaixada portuguesa entrou em Roma numa procissão triunfal, cuidadosamente coreografada de forma a deixar uma impressão indelével do poderio e esplendor da Coroa portuguesa e em que “Hanno”, com uma imponente torre sobre o seu dorso, foi vedeta – na verdade, a fama do elefante precedera-o e o trajecto entre a costa italiana e Roma fora atrapalhado pelas hordas de curiosos que acorriam para ver a formidável besta. A embaixada portuguesa logrou o efeito pretendido, deixando a Itália febricitante e fazendo correr pela Europa a fama de Portugal, e “Hanno” foi desenhado por artistas de renome – incluindo Raffaello – e inspirou poetas e escritores.

Leão X ficou muito agradado com o presente, que rebaptizou como “Annone”, fez instalar na ménagerie do Vaticano (que, à data, albergava também um urso e dois leopardos) e exibiu em público em ocasiões festivas em Roma. Uma delas, destinada a acolher Giuliano di Lorenzo de’ Medici, irmão do papa, e a sua esposa, Filiberta de Sabóia (irmã de Luís XII de França), cujo casamento fora celebrado dias antes, teve um desfecho trágico: uma salva de artilharia disparada em honra do venturoso casal assustou “Hanno”, cujo destempero fez tombar a torre que fora instalada sobre o dorso e causou uma onda de pânico entre a multidão, de que resultaram 13 mortos. “Hanno” não duraria muito tempo em Roma: em 1516 foi acometido de prisão de ventre, sucumbindo a 8 de Junho desse ano, em resultado dos problemas intestinais ou do purgante administrado pelos médicos da corte papal. Leão X, já abalado pelo falecimento, em Março desse ano, do seu irmão Giuliano di Lorenzo (que o papa e Francisco I de França pretendiam fazer coroar rei de Nápoles), ficou de tal forma tocado pela perda de “Hanno” que encomendou a um alto funcionário da Santa Sé a redacção de um epitáfio, que foi gravado numa placa e afixado na muralha do Vaticano. A sensação causada por “Hanno” teve efeito amplo e duradouro, justificando que, em 1997, o historiador americano Silvio Bedini lhe consagrasse o livro An Elephant’s Journey from Deep in India to the Heart of Rome, que pode ser visto como precursor de A Viagem do Elefante, de Saramago, surgido onze anos depois.

Há semelhanças e diferenças entre as histórias de “Hanno” e “Salomão”: se o primeiro poderá ter sido um presente do rajá de Cochim a Manuel I, o segundo chegou a Lisboa, em 1542, ofertado a João III por uma embaixada enviada por Bhuvanekabahu VII, rei de Kotte, então um dos principais aliados dos portugueses na ilha de Ceilão. Não sendo claro se João III enviou “Salomão” como presente para o neto Carlos ou para a futura nora Joana, tudo indica que na corte espanhola “Salomão” não despertou interesse similar ao que “Hanno” suscitara em Roma: com o passar do tempo, o efeito de novidade desvaneceu-se, a curiosidade definhou e o animal foi negligenciado – de atracção exótica, passou à condição de fardo oneroso. Terá sido então que os destinos do elefante e de Maximiliano se cruzaram: após o casamento, o jovem herdeiro da coroa do Sacro Império Germânico (que assumiria em 1564 como Maximiliano II) quedara-se por Valladolid com a sua esposa, enquanto Carlos e o príncipe Filipe, herdeiro do trono espanhol, iniciavam um demorado périplo pelas possessões imperiais na Itália, Países Baixos e Alemanha. O verdadeiro intuito de Carlos para esta excursão não era recreativo mas político: pretendia impor Filipe como seu sucessor no trono imperial, aspiração que fracassou ao deparar-se com a firme oposição de alguns príncipes e, sobretudo, de Fernando I, irmão de Carlos, pai de Maximiliano e arquiduque da Áustria e rei da Hungria e Boémia. É bem revelador da natureza manipuladora de Carlos que tenha deixado o seu inexperiente e ingénuo sobrinho a assegurar a regência da Coroa espanhola, enquanto andava pela Europa a movimentar influências para lhe subtrair o trono imperial e lá colocar o seu filho.

Entretanto, em Valladolid, Maximiliano acabou por afeiçoar-se ao desprezado “Salomão” e a infanta Joana ou o infante Carlos (ou os seus tutores) terão visto aqui uma oportunidade de se desembaraçarem de um dispendioso encargo e ofertaram o elefante a Maximiliano. Poderá ver-se no fascínio de Maximiliano pelo exótico animal um prenúncio da voga das Wunderkammer ou Kunstkammer (gabinetes de curiosidades, ou “câmaras de maravilhas”), que floresceria na viragem dos séculos XVI-XVII, entre a aristocracia austro-germânica, e que podem ser vistos como protomuseus, onde se amontoavam, sem grande critério, colecções de “objectos notáveis” de toda a sorte, de relíquias religiosas a fósseis, de esculturas a fragmentos de “estranhos e curiosos animais”.

Em 1551, após o regresso a Valladolid de Carlos e Filipe, Maximiliano empreendeu, finalmente, a longa viagem de regresso à Áustria, acompanhado pela esposa e por “Salomão”. É oportuno referir aqui que não há certeza quanto ao nome do elefante nem à sua origem; é usualmente referido em português por “Salomão”, mas não é seguro que alguma vez tenha sido assim designado; há fontes que sustentam que foi já na posse de Maximiliano que foi baptizado como “Soliman”, supostamente por sugestão de João III e numa alusão ao sultão otomano Solimão I o Magnífico (Süleyman, em turco), inimigo figadal do Império Habsburg, que seria, através da outorga do seu nome ao elefante, “feito seu escravo e apropriadamente humilhado” (como terá argumentado João III numa missiva a Maximiliano, de autenticidade duvidosa).

O percurso da comitiva de Maximiliano incluiu a travessia marítima entre Barcelona e Génova, um trajecto triunfal através de Itália (onde, mais uma vez, o elefante foi alvo de incontrolável curiosidade das multidões) e a transposição dos Alpes, através da Garganta de Brenner. A comitiva passou depois por Innsbruck e Linz e deu entrada em Viena, com pompa, a 6 de Março de 1552, deixando atrás de si um rasto de alusões a “Soliman” em anedotas, lendas e tradições locais – por exemplo, ainda hoje subsiste em Bressanone (Brixen, para os germanófonos), no Tirol do Sul, o Hotel Elephant, no lugar da estalagem onde “Soliman” e a sua “entourage” se retemperaram durante duas semanas, antes de atravessar os Alpes.

Em Viena, Maximiliano fez instalar “Soliman” no parque do Palácio de Kaiserebersdorf, nos arredores de Viena, no local onde antes existira um recinto com lobos, e a ele juntaram-se, ainda em 1552, leões, tigres, girafas e ursos, dando origem ao que é considerado ser o primeiro “jardim zoológico” da Europa. O elefante tornou-se num foco de atenção e inspirou artistas e poetas mas talvez não se tenha dado bem com o clima vienense, sucumbindo em Dezembro de 1553 – uma sorte similar à de “Hanno”, que durou menos de dois anos em Roma. João III de Portugal, ao saber do falecimento de “Soliman”, providenciou o envio de um substituto, que chegou a Viena em 1563, mas sobre o qual pouco ou nada se sabe.

“Soliman” tinha alcançado um estatuto de celebridade que permitiu que continuasse a ser assunto de conversa depois de morto e a sua carcaça foi convertida em várias peças de memorabilia: alguns ossos foram usados para construir uma cadeira, que, após passar por vários proprietários, faz hoje parte do acervo da Abadia de Kremsmünster; uma pata dianteira e uma omoplata foram oferecidos ao burgomestre de Viena; e a pele serviu para criar uma versão empalhada do animal, que foi exibida no Palácio de Kaiserebersdorf, até que, em 1572, Maximiliano decidiu oferecê-la a Alberto (Albrecht) V da Baviera, um munificente patrono das artes, das letras, das ciências e do conhecimento em geral, que, em 1563, começara a erguer em Munique o primeiro gabinete de curiosidades da história europeia, a fim de albergar as vastas e heteróclitas colecções que viera a adquirir pela Europa fora. O elefante empalhado fez parte do gabinete de curiosidades dos Duques da Baviera durante séculos, até que em 1928 foi doado ao Museu Nacional Bávaro (Bayerisches Nationalmuseum), em Munique; o museu foi seriamente danificado por bombardeamentos aliados durante a II Guerra Mundial, mas o elefante empalhado, que, como a maior parte do acervo, tinha sido colocado em lugar seguro, não foi atingido. Porém, a humidade no local de armazenagem tornou-o pasto de bolores, pelo que, após o término da guerra, a pele teve o inglório destino de ser vendida para a indústria de curtumes.

Filipe II, que ascendeu ao trono espanhol em 1556, por abdicação de Carlos I, teve breve contacto com “Soliman”, uma vez que, enquanto o elefante esteve na corte de Valladolid – de 1549 a 1551 – Filipe andou quase sempre por fora, em viagem. Todavia, o elefante talvez lhe tenha causado uma forte impressão, pois, em 1582, 33 anos após a chegada de “Soliman” a Valladolid, decidiu presentear o seu terceiro filho, Diego, com um animal semelhante, pelo que instruiu Francisco de Mascarenhas, vice-rei da Índia, para que lhe enviasse um exemplar (recorde-se que, dois anos antes, Filipe reivindicara com sucesso a coroa de Portugal). Diego, então com sete anos, recebera o título de Príncipe das Astúrias e era o herdeiro da coroa, uma vez que os seus irmãos mais velhos, Carlos e Fernando tinham falecido, em 1568 e 1578, respectivamente. Talvez a morte dos filhos mais velhos e os dotes precoces de Diego tenham contribuído para que Felipe II, ainda que fosse conhecido pelo carácter austero e pela dedicação obsessiva à governação de um império onde o sol nunca se punha, desenvolvesse particular afeição por Diego, que, nos planos do pai, seria também um instrumento para a consolidação da União Ibérica. Para tal, providenciou que o príncipe fosse instruído na língua portuguesa e projectou o seu casamento com uma filha do Duque de Bragança, mas esses sonhos desfizeram-se quando, nesse mesmo ano de 1582, Diego foi vitimado pela varíola, antes que o vice-rei da Índia tivesse tempo de cumprir as instruções do monarca.

A monarquia espanhola voltaria a cruzar-se com elefantes em 2012 – com resultados funestos para três paquidermes e sérios danos reputacionais para um soberano. Por esta altura, muito tinha mudado no mundo: por um lado, deixara de ser “chic” entre os monarcas europeus manter ménageries nos seus palácios; o que estava em voga, desde o início do século XX, era que as cabeças coroadas fossem massacrar animais exóticos nos seus habitats naturais. Por outro lado, os Borbón já há muito tinham substituído os Habsburg como dinastia reinante em Espanha e ocupava o trono Juan Carlos I, cujas fotos posando junto a um elefante morto no Botswana correram mundo. A caçada real suscitou indignação, não tanto por o rei, presidente honorário da secção espanhola do World Wildlife Fund, ter abatido três elefantes em três dias, como por se entregar a actividades de lazer sumptuárias numa altura em que o país atravessava uma grave crise socioeconómica (estava no auge a “Crise das Dívidas Soberanas Europeias” e o desemprego em Espanha rondava os 25%). O episódio ganhou contornos mais sórdidos quando se apurou que o safari tinha sido pago por um magnata sírio da construção civil, com fortes conexões à monarquia saudita, e tinha sido organizado, a pedido do rei, pela sua amante Corinna zu Sayn-Wittgenstein, uma empresária dinamarquesa com curriculum na promoção de safaris e na prestação de serviços de consultoria a empresas e governos, o que erodiu apreciavelmente a imagem de Juan Carlos junto dos seus súbditos e levou o rei a abdicar em favor do filho dois anos depois.

Também muito mudou em Portugal nos últimos cinco séculos, como comprova a notícia, surgida no Diário de Notícias de 20.12.2022 e no Público de 22.12.2022, que dá conta da intenção de criar no Alentejo um santuário para “receber [elefantes] em fim de vida”. O santuário pretende “dar condições dignas aos elefantes perto de morrer”, irá ocupar cerca de 400 hectares (correspondentes a três propriedades que se repartem pelos concelhos de Vila Viçosa e Alandroal), albergará até duas dúzias de paquidermes e tem como promotor um fundo internacional (não nomeado) para a protecção de elefantes. Os animais provirão de circos e outras situações de cativeiro, que a evolução da legislação europeia tem vindo a restringir ou interditar, e, uma vez que passaram toda ou a maior parte da vida privados de liberdade, não seria viável devolvê-los à natureza nos seus habitats naturais em África ou no Sudeste Asiático – e há que admitir que o Alentejo tem alguma similitude climática e paisagística com a savana africana. E é assim que Portugal, que no século XVI fornecia elefantes às cortes europeias e era a porta da Europa para os prodígios de África e da Ásia, se perfila, no século XXI, como o lugar onde os elefantes da Europa vão morrer.

É inevitável que esta notícia desperte uma inquietante sensação de familiaridade em quem tem acompanhado – com perplexidade e consternação – a sucessão de delírios em torno do Aeroporto de Beja, um dos “elefantes brancos” do Portugal do século XXI e um pungente testemunho da leviandade e inconsciência dos nossos governantes e da sua extraordinária apetência para malbaratar dinheiros públicos. Tendo a aberração sido inaugurada em 2009 e tendo sido comprovada a sua mais do que previsível inutilidade (nenhuma companhia aérea revelou real interesse em voar para lá), começaram a surgir “visionários” com sugestões alternativas visando dar algum uso ao mono – foi assim que, em 2012, começaram a surgir nos media notícias insistentes que davam conta do interesse de lá instalar “uma unidade industrial de manutenção e desmantelamento de aviões e valorização de activos aeronáuticos”, ou, em linguagem menos tecnocrática e falaz, um depósito para elefantes voadores em fim de vida.

Estes rumores continuaram a ser propagados, o investimento anunciado passou de oito para 16 milhões de euros e o promotor ganhou nome – Aeroneo –, até que em 2019, a empresa anunciou desistir da sua intenção, para grande ira das “forças vivas” da região, que acusaram o Governo de “discriminar-nos e bloquear o nosso crescimento” (presidente da Distrital de Beja do PSD dixit). O que ninguém parece disposto a aceitar – nem sequer a nova comissão técnica encarregada, no final de 2022, de fazer a avaliação estratégica das opções para o novo aeroporto de Lisboa, que decidiu incluir o “elefante branco” de Beja nas alternativas a estudar – é que a única solução sensata para o Aeroporto de Beja passa pelo desmantelamento, não de aviões, mas do próprio aeroporto.

Se as ideias para revitalizar o cada vez mais despovoado e inerme Alentejo passam por convertê-lo num cemitério para elefantes e aviões, a verdade é que as perspectivas de evolução do país em geral não são menos lúgubres. Ao mesmo tempo que Portugal tem vindo, nas últimas décadas, a ser eleito por muitos reformados da Europa Setentrional para passar os seus últimos anos de vida, também a população indígena se encontra num vertiginoso processo de envelhecimento, em resultado da combinação do declínio da taxa de natalidade e da emigração dos seus membros mais jovens e dinâmicos, o que fez com que o índice de envelhecimentos (o quociente entre o número de indivíduos com 65 ou mais anos e o número de indivíduos com 0-14 anos) tenha aumentado de 27,5 em 1961 para 182,7 em 2021. No que respeita à percentagem de população com mais de 65 anos, Portugal surgia, em 2021, em 3.º lugar do ranking mundial, ex-aequo com Grécia e Finlândia (23%), com Japão (30%) e Itália (24%) a ocuparem o 1.º e 2.º lugares, respectivamente. Para agravar a situação, Portugal combina uma esperança média de vida elevada (superior à de países como a Finlândia, a Áustria ou a Alemanha) com pensões de reforma exíguas e uma das mais baixas esperanças médias de vida saudável da União Europeia (sobretudo nas mulheres) – ou seja, vive-se durante muitos anos, mas a velhice é ensombrada por padecimentos e achaques vários.

Os especialistas alertam, há décadas, para este crescente desequilíbrio da pirâmide demográfica e dos seus efeitos negativos na economia e na sociedade, pondo em causa a sustentabilidade dos sistemas de segurança social e de saúde, e os media publicam periodicamente artigos em tom alarmista que agitam a possibilidade de a população de Portugal cair para sete milhões no final deste século. A dimensão total da população é pouco relevante – há países mais prósperos e dinâmicos com densidades populacionais bem mais baixas – mas a sua composição etária e a forma como esta se distribui no território é crucial. E em Portugal não só os jovens escasseiam como têm vindo a concentrar-se no litoral – e, em particular, nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto –, deixando no “interior” uma população residual de anciãos.

O envelhecimento de Portugal tem contado com a colaboração de sucessivos Governos, que, apesar da incessante propaganda em prol dos “jovens” e da sua “qualificação”, têm sido incapazes de lhes proporcionar perspectivas estimulantes de vida e carreira. Resulta daqui que os membros mais qualificados e empreendedores da “geração mais bem preparada de sempre” (para usar um cliché papagueado por gente de todo o espectro político) tenham vindo a emigrar em massa para países mais acolhedores – o que, aliás, foi explicitamente encorajado, em 2011, pelo Secretário de Estado da Juventude do Governo de Pedro Passos Coelho: “se estamos no desemprego, temos de sair da zona de conforto e ir para além das nossas fronteiras”. Em contrapartida, o Governo português tem incentivado a instalação de reformados da Europa Setentrional, através da concessão de generosos benefícios fiscais, mesmo que estes suscitem o protesto e a ira dos Governos dos países de origem (como aconteceu com a Finlândia e a Suécia). Acontece que o afluxo de estrangeiros (reformados ou não) com poder de compra bem superior à média portuguesa tem sido um dos factores principais para o forte aumento do preço da habitação, que, por sua vez, é um desincentivo a que os portugueses no início da vida activa se fixem no país – uma realidade para a qual o Governo de António Costa despertou, estremunhado, em 2023.

Como se esta conjugação de factores não fosse já suficientemente desalentadora, periodicamente surgem empresários, consultores e CEOs que defendem que Portugal deveria apostar maciçamente na criação de “lares residenciais seniores” vocacionados para clientes da Europa a norte dos Pirenéus. Ou seja, há quem entenda que a solução para injectar nova vida num dos países mais envelhecidos do mundo, que já não é capaz de cuidar dos seus velhos nem de “proporcionar condições dignas aos que estão perto de morrer”, onde os lares de terceira idade têm intermináveis listas de espera e o Serviço Nacional de Saúde dá sinais cada vez mais evidentes de sobrecarga, é atrair de toda a Europa uma multidão de anciãos com autonomia limitada ou nula e permanentemente necessitados de assistência e cuidados médicos.

Este tipo de propostas equivale a uma declaração de capitulação: se o país não é capaz de atrair investimento em tecnologias de ponta, ao menos tem a seu favor a amenidade climática, o custo de vida baixo (pelos padrões da Europa mais abastada), a pacatez e a disposição afável e prestável dos autóctones, factores apelativos para quem tenha como perspectiva de vida passear os cães, conversar sobre o tempo, inventariar maleitas, comparar medicações e contemplar os gatos a dormitar ao sol de Janeiro e a relva a crescer no jardim (para os que têm energia e posses para dar umas tacadas, o que não falta são campos de golfe). Aos muitos portugueses que se queixam de que é cada vez mais difícil viver em Portugal há que fazer ver que não se pode ter tudo – em contrapartida, Portugal é um bom lugar para se morrer. Resta saber se os autores e propagadores destas tétricas propostas aspiram a que os seus filhos tenham como horizonte de vida desmantelar aviões à força de maçarico e marreta ou mudar a fralda a octogenários alemães com Alzheimer, ou se desejam antes proporcionar-lhes estudos numa “business school” em Londres, ou em Sciences Po em Paris, cabendo aos filhos dos “outros” ocupar-se da decadência de aeronaves e seres humanos.

Existe um abismo entre o Portugal vibrante propagandeado pelo primeiro-ministro – na mais recente mensagem de Natal, deu largas ao seu optimismo delirante, afirmando que o “investimento feito nas qualificações, na ciência, na inovação e na transição energética e climática garante-nos que estamos no pelotão da frente para vencer os desafios do futuro” – e o Portugal cuja ambição é ser um íman de decrepitude, um hub da caquexia, a Florida da Europa (mas sem jacarés!), um recanto ensolarado e entorpecido num extremo do continente, para onde convergem criaturas e máquinas em fim da vida. O primeiro Portugal está limitado a alguns focos nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto e numa estreita faixa costeira, o segundo alastra-se por todas as parcelas do “interior”, um conceito que, em Portugal, designa qualquer lugar sem vista para o mar.

É igualmente instrutivo comparar o Portugal crepuscular de 2023 com o Portugal que era promovido em 2007, no auge do triunfalismo do Governo de José Sócrates, como “Europe’s West Coast” – “o oeste está associado à descoberta e à inovação”, explicava o então Ministro da Economia e principal instigador desta campanha milionária, Manuel Pinho, sugerindo que a West Coast of Europe iria rivalizar com a West Coast americana , com os polos empresariais e tecnológicos de Seattle (Amazon, Boeing, Costco, Microsoft, Starbucks) e Silicon Valley (Adobe, Alphabet/Google, Apple, Cisco, eBay, HP, Intel, LinkedIn, Meta/Facebook, Paypal, Zoom), o glamour de Hollywood. Porém, o Portugal de hoje está tão distante de Seattle ou Silicon Valley como em 2007 e parece ter adoptado um desígnio bem menos ambicioso: converter-se na unidade de cuidados geriátricos da Europa.

E os portugueses resignam-se a este fado e alguns até defendem convictamente que os cemitérios de elefantes são a solução para “desbloquear o nosso crescimento”, o que confere credibilidade à velha e cínica teoria de que os portugueses com sangue na guelra já deixaram o país, em levas sucessivas, primeiro em busca de pau-brasil, ouro, especiarias e elefantes, hoje em busca de empregos com remunerações dignas e perspectivas de uma vida desafogada, deixando para trás uma massa inerte, conformista e mais inclinada ao queixume do que à acção.

O lugar onde os elefantes vão morrer
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