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Os músicos fingem que tocam, nós fingimos que os escutamos

O episódio que se segue não só é verídico como certamente já se repetiu várias vezes, com pequenas variantes, pelo mundo fora: uma banda de adolescentes, em incipiente estado de maturação musical e que nunca saíra da sala de ensaios, recebe uma proposta para tocar numa festa da escola secundária. No derradeiro ensaio antes do Grande Dia, a excitação de subir a um palco pela primeira vez é moderada por alguma lucidez: é óbvio que o baixista, empurrado a contragosto para o instrumento e sem grande talento nem dedicação ao estudo, está demasiado “verde” para tão momentosa ocasião. Como está fora de questão cancelar a actuação, a banda toma uma decisão radical: a perspectiva de ter o baixista a cometer fífia atrás de fífia, fazendo tropeçar os colegas, é tão assustadora que decidem que ele estará em palco – estamos entre amigos, seria imperdoável excluí-lo –, mas o seu instrumento estará desligado.

Chega o Grande Dia, o breve repertório é despachado com muitas vacilações mas sem falhas flagrantes e o público, que não é muito exigente e conhece os músicos, aplaude calorosamente. O elemento mais aclamado da banda é o baixista: enquanto os colegas, tolhidos pela limitada proficiência e pelo nervosismo inerente a uma estreia, mantiveram uma postura hirta e desajeitada, só levantando a cabeça do chão ou do seu instrumento para trocar entre si olhares nervosos (“O refrão entra agora ou é só na próxima volta?”, “Sou eu que estou fora de tom ou és tu?”), o baixista, liberto de responsabilidades e peias, pôde assumir poses de rock star e saltitar pelo palco com desenvoltura e petulância. O público não se deu conta da lacuna na região grave do espectro sonoro – até porque o repertório da banda só incluía canções em que o papel do baixo é discreto (nada de Red Hot Chili Peppers!) e apenas providencia “enchimento” – mas espera que uma banda de rock irradie swag e achou a postura em palco do baixista convincente.

Se for questionada sobre se gosta de música, a maioria das pessoas responderá afirmativamente, sem hesitar, mas poucas gostam dela o suficiente para realmente a escutar e apenas um número muito reduzido seria capaz de dizer, como Nietzsche, que “sem música, a vida seria um erro”. O sincero gosto pela música não só não é exclusivo dos músicos, como, por estranho que pareça, até há músicos que, possuindo talento inato e formação musical e vivendo profissionalmente de fazer música e/ou ensinar música, não têm grande interesse por música para lá daquele que é estritamente requerido pela sua profissão. O sincero gosto pela música também não deve ser confundido com o coleccionismo de discos, pois este pode ser exercido com o mesmo distanciamento e calculismo com que se coleccionariam selos ou moinhos de café e o apreço que o coleccionador manifesta por este ou aquele disco resulta menos do seu conteúdo musical do que da sua raridade e cotação de mercado. Também há, no domínio da música clássica e do jazz, quem seja frequentador assíduo de concertos e tenha o hábito de emitir comentários que sugerem a sua intimidade com determinadas obras e músicos, apenas porque pertence (ou aspira a pertencer) a um meio social em que a familiaridade com esses géneros musicais é de bom tom e porque alguns concertos são eventos sociais e oportunidades para encontrar ou conhecer personalidades influentes. Na área do pop-rock, há quem seja entusiasta de uma banda e dela conheça a fundo a discografia, as letras das canções, a história oficial e a vida privada dos seus elementos, não perca uma oportunidade de assistir aos seus concertos e coleccione t-shirts, bonés, cartazes e todo o merchandising e memorabilia associados à banda, numa devoção que contrasta com um interesse ténue por outras bandas – e aqui estamos mais perto da idolatria, da monomania e até da erotomania do que da melomania.

“Melómano” é o termo corrente para designar quem gosta suficientemente de música para, habitualmente: 1) ouvir discos em dedicação exclusiva; 2) estar a par do seu ano de edição e posição na discografia do músico (e, quando relevante, o seu produtor, engenheiro de som e editora); 3) encarar a música, gravada ou ao vivo, com espírito analítico, tentando perceber o papel de cada instrumento e o seu entrosamento e descortinar afinidades e contrastes com outras bandas e géneros musicais; e 4) ter curiosidade por descobrir novos discos e novos músicos. Este comportamento é visto como invulgar pelo resto da sociedade e a prová-lo está o facto de o termo “melómano”, embora usado quase sempre com valor neutro, comportar algo de irracionalidade, de obsessão, de desregramento, de desvio à norma – basta ver quem são os outros “manos” no léxico: cleptómano, dipsómano, megalómano, mitómano, opiómano, pirómano, toxicómano…

Se no início da década de 1990, quando teve lugar o episódio acima descrito, a maioria das pessoas não se interessava suficientemente por música para passar do “ouvir” ao “escutar”, as inovações entretanto surgidas nas tecnologias de comunicações e de entretenimento, que provocaram alterações dramáticas na forma como os indivíduos interagem em sociedade e desfrutam do seu tempo livre, resultaram num relacionamento ainda mais distante das massas com a música, passando esta a servir, durante a maior parte do tempo, de mero fundo para outra actividade. Para tal, contribuiu a desmaterialização da música, que levou a que a audição passasse a realizar-se sobretudo através de iPods e outros reprodutores portáteis de música digital, depois suplantados pelos smartphones. Numa primeira fase, os utilizadores de iPods e smartphones ainda tinham de descarregar para o seu aparelho uma selecção de músicas (geralmente pilhadas da Internet), mas com o advento do streaming, o ouvinte tornou-se ainda mais passivo e alheado.

Quem canta? Quem toca? A que álbum pertence esta canção? Este som no refrão é produzido por um teclado ou por uma guitarra? Tanto faz. Desde que a música em suporte físico foi declarada obsoleta, os pontos de referência foram desvanecendo-se e na Era do Streaming o que conta é o fluxo, ininterrupto, ilimitado, avassalador, indistinto, entorpecedor, canção atrás de canção atrás de canção, mais canções do que alguém é capaz de ouvir, mesmo que se ouvisse cada canção uma única vez e não se fizesse mais nada na vida e se vivesse mil anos, e tudo isto por apenas meia dúzia de patacos por mês, uma pechincha, por este dinheiro não se compraria um CD, muito menos um LP, com uma assinatura temos a música toda do mundo e dá para a família toda, pode escolher-se a modalidade, duas contas, quatro contas, seis contas, cada um no seu canto e com a sua música, que hoje ninguém ouve música em conjunto. Muitos ouvintes já nem sequer se dão ao trabalho de escolher o que ouvem, delegaram o arbítrio nos algoritmos das plataformas de streaming, há quem diga que eles sabem melhor do que nós aquilo de que gostamos e, para mais, poupam-nos à angústia e às vacilações da escolha. As vacilações perturbam o fluxo e, como já vimos, o que importa é manter a música a correr, ela é, no nosso tempo, como o rumorejar de um riacho, um fundo sonoro para o nosso quotidiano, jorra sem parar dos headphones, dos smartphones e das colunas, nos carros e nas ruas, nos bares, cafés, restaurantes e hotéis, nos centros comerciais e nos recintos desportivos, nas grandes superfícies e nas pequenas lojinhas, nas repartições públicas e nos consultórios, nas gares, aerogares e terminais rodoviários e nos transportes públicos, está em todo o lado e não está em lado algum, porque ninguém lhe presta atenção. Mas quem pode, na Era da Distracção, dar-se ao luxo da atenção? Quem tem hoje tempo para colocar um CD ou um LP a rodar e sentar-se a ouvi-lo sem fazer mais nada? A “vida moderna” não nos deixa alternativa, diz-se, como se a “vida moderna” fosse uma pena a que fomos condenados por alienígenas sádicos vindos de Betelgeuse e não uma criação e uma escolha nossa.

Há quem admita que a relação das pessoas com a música gravada se tornou remota e desatenta, mas faço notar que o gosto por música ao vivo está mais desperto do que nunca, os festivais de Verão estão a abarrotar, as pessoas desunham-se para conseguir bilhetes para os megaconcertos dos artistas na berra. É verdade, mas os festivais de Verão e os megaconcertos são um logro, concebido pela indústria do entretenimento para maximizar os seus lucros, e em que a qualidade da experiência auditiva e visual do espectador é comprometida, logo à partida, pelo próprio gigantismo do conceito e em que todas as circunstâncias conspiram para gerar distracção e tornar a música secundária

Muitos espectadores não se incomodam com as pífias condições de fruição oferecidas por estes eventos (embora reclamem acerbamente do preço da cerveja ou das longas filas para a comprar), uma vez que a sua relação com a música tem vindo a tornar-se cada vez mais alheada, involução para que muito têm contribuído o smartphone e as redes sociais. O smartphone é um dispositivo com capacidades espantosas e é indiscutível que mudou a nossa forma de estar na vida – antes de mais, ao mudar a nossa forma de estar, já que a sua permanente conexão com a tecnosfera e a mediasfera impede que quem o tem no bolso possa estar, plenamente, num espaço e num tempo. Se o gadget estiver ligado, há sempre solicitações, tentações e distracções a cintilar, a apitar e a vibrar, e não há mal algum em dar-lhes atenção, pois, lá por estarmos num concerto, não quer dizer que tenhamos de ficar na ignorância do resultado do Benfica-Vizela, da mais recente contratação do F.C. Porto, da nova cor de cabelo de Billie Eilish, do novo “desafio” do TikTok, do vídeo “viral” com um cão a andar nas patas traseiras, um bando de gansos a afugentar um meliante, um homem enorme aterrado por um esquilo minúsculo lhe ter entrado em casa.

Por outro lado, o smartphone e as redes sociais inculcaram nos mais anódinos indivíduos a ideia de que não são apenas espectadores passivos no Grande Teatro do Mundo: as fronteiras entre palco e plateia foram dissolvidas e cada um de nós pode reclamar um papel de relevo, mesmo que seja apenas por instantes. É assim que, hoje, tão importante quanto a experiência (ir a um concerto), é o comprovativo da experiência (fotos/vídeos do concerto, incluindo pelo menos uma selfie com o palco em fundo), a exibição pública do comprovativo da experiência (“postagem” de fotos/vídeos na página pessoal no “Face” ou no “Insta”) e a aprovação pública da experiência (uma salva de likes no “Face” ou no “Insta”). As experiências que não forem validadas por este processo são inúteis, é como se não tivessem ocorrido, e é por isso que nos concertos há sempre gente de smartphone erguido, a fazer prova de quão excitante, cool e invejável é a sua vida.

Também o comportamento das bandas em palco foi alterado pelas inovações tecnológicas. No início da década de 1990, os estúdios de som começaram a trocar a velha banda magnética analógica pela gravação em suporte digital, com recurso ao software Pro Tools (ou algo equivalente), o que tornou o processo de gravação de pop-rock mais expedito, flexível e barato e trouxe uma inédita capacidade de edição e correcção de falhas. Com a rápida evolução e vulgarização do Pro Tools e o desenvolvimento de uma panóplia de tecnologias complementares (nomeadamente processadores que ajustam a voz à tonalidade correcta, como o Auto-Tune e o Melodyne), até as bandas mais obscuras passaram a poder gravar (por vezes na sua própria sala de ensaio) em condições que ofuscam as dos mais avançados estúdios das décadas de 1960 e 1970. Todo este progresso tecnológico incitou as bandas a empenharem-se em retocar as suas canções com a mesma minúcia fastidiosa com que as fotos dos modelos são retocadas no Photoshop, até obter uma perfeição irreal, ainda que o público e a crítica nunca tivessem reclamado por os discos gravados pelo processo “tradicional” serem maculados por desafinações e imprecisões rítmicas.

O recurso em estúdio ao metrónomo, ministrado aos músicos através de auscultadores (click track), a fim de garantir tempos consistentes, começara anos antes do advento do Pro Tools, mas uma vez que a edição neste “ambiente de trabalho” é muito facilitada se todos os músicos estiverem sincronizados com um click track, este dispositivo tornou-se praticamente obrigatório no estúdio moderno. A música gravada por este processo (música “quantizada”, no jargão do meio) tornou-se mais precisa ritmicamente e, também, mais “quadrada”, mas os engenheiros de som ficaram com o trabalho facilitado, os músicos ficaram satisfeitos por os seus discos ficarem mais polidos e “profissionais” e o público não deu por nada ou, pelo menos, não se queixou. James Beament (1921-2005), uma das maiores autoridades mundiais em psicoacústica (e também entomólogo e compositor amador), reparou na mudança e não gostou, queixando-se de que a música “quantizada” parecia “desenhada com uma régua T” e proclamava que estas gravações amarradas a uma grelha temporal rígida “não suportavam a comparação com o registo de uma actuação ao vivo, em que os músicos providenciam mutuamente o enquadramento rítmico […] É fácil matar uma actuação musical: basta fazer os músicos tocar com um click track”.

Beament escreveu este elogio da música ao vivo em 2001, não contando, talvez, que a tecnologia tem a sua própria e inexorável lógica, que se sobrepõe à lógica de quem a usa: os bateristas, tendo consciência de que o seu desempenho ao vivo era menos rigoroso do que fora registado em estúdio, passaram a tocar ao vivo com um click track. É difícil compreender que os bateristas, que têm como uma das suas missões principais a marcação do tempo, tenham dela abdicado para se sujeitarem à ditadura de uma máquina. E a capitulação é tanto mais bizarra por, no início da década de 1980, já terem tido de lutar contra máquinas usurpadoras: a aparição, em 1980, das primeiras caixas de ritmos programáveis (a Linn LM-1 e a Roland TR-808) foi entusiasticamente acolhida pelo pop-rock e este entrou numa vaga de “automação” que ameaçou lançar os bateristas no desemprego – com benefícios para a banda, que teria menos um elemento com quem repartir cachets e royalties, e para produtores e engenheiros de som, que teriam o trabalho simplificado no estúdio. A voga das caixas de ritmo atingiu o auge em meados dos 80s, altura em que, mesmo que a banda tivesse um baterista de carne e osso, produtor e engenheiro de som manipulavam a bateria para que soasse como uma caixa de ritmos, mas no final da década o deslumbramento tecnológico dissipou-se e os bateristas foram reabilitados. Todavia, o advento do Pro Tools sujeitá-los-ia a mais uma desconsideração: uma vez que obter uma captação de alta qualidade de uma bateria acústica dá muito trabalho, os técnicos dos estúdios começaram a substituir o som real produzido pelas várias peças da bateria por sons-padrão escolhidos a partir de bibliotecas digitais de samples de baterias captadas em “condições ideais”. Ou seja, numa moderna gravação de estúdio, o baterista 1) tem de seguir um metrónomo; 2) as suas (inevitáveis) imprecisões são corrigidas, a posteriori, no computador, uma a uma; e 3) o som que produziu, e que deveria constituir uma marca pessoal, resultante da conjugação do seu estilo de tocar, do seu instrumento e da afinação que escolheu para este, é integralmente descartado e substituído por um som de “marca branca”. Tudo em nome da conveniência e do profissionalismo…

Mas regressemos aos concertos ao vivo: o facto de, no século XXI, os bateristas terem começado a tocar com click track deu ensejo a que alguém se lembrasse de que a amarração a uma grelha temporal rígida permitiria facilmente adicionar ao som produzido ao vivo faixas pré-gravadas com alguns dos muitos instrumentos, vozes e efeitos sonoros que tinham sido incluídos na elaborada versão de estúdio, e que limitações logísticas, financeiras e técnicas obrigavam a dispensar na versão ao vivo. As limitações financeiras sempre tinham existido, mas agudizaram-se no século XXI, com a quebra vertiginosa nas vendas de discos a não ser compensada pelos avaros pagamentos feitos pelas plataformas de streaming, forçando as bandas a fazer tournées com orçamentos cada vez mais apertados – e quem pode dar-se ao luxo de convidar um teclista ou um violoncelista que só entram em duas ou três canções por noite, quando a equipa técnica foi reduzida ao mínimo e toda a gente dorme em sofás arranjados pelo promotor do concerto ou cedidos por amigos, ou até na carrinha?

O recurso a música pré-gravada (backing tracks) nas actuações ao vivo não era nada de novo no pop-rock – na década de 1980, por exemplo, foi amplamente usada pelos Cocteau Twins, que, contando apenas com uma vocalista, um guitarrista e um baixista, seriam de, outro modo, incapazes de reproduzir ao vivo a densa e rendilhada textura dos seus discos de estúdio –, mas o triunfo esmagador do Pro Tools (e similares) e a adopção do click track pelos bateristas nas actuações ao vivo abriram as portas para a generalização do uso de backing tracks. Esta começou por ser pontual – uma secção de cordas aqui, uma percussão acolá – mas o zelo das bandas em reproduzir o mais fielmente possível a música criada “em laboratório” levou a que, nalguns casos, os backing tracks tenham deixado de ser um “suporte”, como o nome pressupõe, para se tornarem num pilar – até porque, pontualmente, soam mais alto na mistura do que os músicos.

E como os trechos pré-gravados se multiplicaram, hoje já não é só o baterista que deve obediência ao metrónomo, é toda a banda que, graças ao in-ear monitoring (mini- auscultadores implantados no canal auditivo), toca sob o implacável estalar de chicote do click track, que controla as entradas de teclados, guitarras, coros, secções orquestrais, percussão acústica, caixas de ritmos, efeitos sonoros, etc., numa sequência que tem de ser meticulosamente programada num laptop, que assume as funções de maestro. A dependência dos backing tracks atingiu um ponto tal que já aconteceu bandas cancelarem concertos por o laptop ter “crashado” ou se ter extraviado – quando isto aconteceu em Setembro passado com a banda de emo/metal Falling in Reverse, o vocalista, Ronnie Radke, justificou-se assim: “Não tínhamos outra opção […] Estamos em 2022, precisamos dos nossos laptops. É como querer conduzir um carro sem motor”. Para lá do facto de Radke ter noções confusas sobre mecânica automóvel e confundir o motor com o volante, o episódio e a sua justificação são reveladores do estado de coisas a que se chegou e faz ter saudades do tempo em que os motivos mais frequentes para o cancelamento de um concerto de rock eram o baixista ter tirado partido do bar aberto e estar mergulhado num profundo torpor alcoólico ou o vocalista ter desaparecido com duas groupies e estar incontactável.

Nos concertos-assistidos-por-computador do século XXI não há lugar para o erro, para o acidente ou para a imperfeição – nem para a espontaneidade, que deveria ser o principal atractivo da música ao vivo. O guitarrista não pode prolongar o solo, mesmo que se sinta inspirado, porque a máquina lhe reservou oito compassos, nem mais um, nem menos um, e, se não terminar no ponto certo, fará descarrilar tudo o que se segue. E, todavia, seria expectável que os músicos se enfadassem de reproduzir a “matriz” do disco, concerto após concerto, durante anos a fio, e que preferissem encarar o palco como espaço de recriação (e recreação), como oportunidade para experimentar variações e diferentes arranjos. A própria circunstância de, ao vivo, a banda estar limitada àqueles músicos e àqueles instrumentos deveria estimular soluções inventivas para compensar a falta da trompete numa canção ou de uma guitarra extra noutra.

Seria de esperar que essa recriação fosse também o principal atractivo do concerto ao vivo para o público, pois, para obter uma exacta reprodução da gravação de estúdio, seria mais cómodo e económico ficar em casa a ouvir o disco. Mas o público não parece incomodado pelo facto de parte do concerto ser em playback: alguns espectadores, tal como não são capazes de perceber que um dos instrumentos em palco não produz som algum, também não reparam que alguns dos sons que ouvem não provêm dos instrumentos em palco; outros estão demasiado ocupados a fotografar ou a filmar o evento ou a consultar o smartphone – quiçá a tentar obter bilhetes para outro concerto; outros ainda, cumprindo a “tradição” de desfrutar de concertos de pop-rock num estado mental alterado, estão tão obnubilados pelo álcool e pelos estupefacientes que poderão assistir à actuação da banda de abertura crendo tratar-se da banda principal.

As vogas da “quantização” das gravações de estúdio e do recurso a backing tracks nos concertos ao vivo não dão respostas a problemas reais, são apenas o que acontece quando, por inércia, preguiça ou conveniência, os humanos abdicam do questionamento e do livre arbítrio e permitem que a tecnologia assuma as rédeas. O Pro Tools e o click track não são artefactos diabólicos concebidos para corromper a música, são ferramentas criadas para ajudar os músicos – mas, como alertou John M. Culkin, especialista em comunicação e media e discípulo de Marshall McLuhan, “Nós moldamos as nossas ferramentas e, depois, as nossas ferramentas moldam-nos”. Esta advertência data de 1967, quando as mais poderosas ferramentas disponíveis eram brinquedos toscos e inócuos, quando comparadas com os que hoje temos no bolso ou ao alcance de um click.

 

Imagem: © José Carlos Fernandes

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