Há muito que mergulho com uma garrafa de ar comprimido às costas, mas ainda me lembro da primeira vez que respirei por uma na gelada piscina dos bombeiros de Lisboa. Num primeiro instante mais a medo, pois até esse dia sempre bloqueara a respiração para imergir, mas logo veio a festa: “agora ninguém me para!”. E não parou. Esse poderoso aparelho, a que chamamos escafandro autónomo, foi uma daquelas invenções da Segunda Guerra Mundial: Émile Gagnant estava a trabalhar na Air Liquide em Paris num projeto de um redutor de pressão de gases a pedido, ou seja, que disponibilizasse um gás à pressão certa consoante a demanda e Jacques-Yves Cousteau tinha em mente um aparelho autónomo de mergulho, que o livrasse do cordão umbilical com a superfície. Desta conjugação de esforços, terão surgido os primeiros mergulhos autónomos em tudo parecidos com os que hoje fazemos. O equivalente à caminhada espacial do astronauta Bruce McCandless em 1984 à volta do vaivém espacial Challenger. Mas com mais para ver.
E foi essa forma de ver o mar, autonomamente, que Cousteau aproveitou como ninguém. Como pioneiro, teve o mundo a seus pés, e a ele devemos uma geração inteira de pessoas ligadas ao mar numa perspetiva imersiva. Destaco o filme O Mundo do Silêncio em coautoria com Louis Malle, Palma de Ouro em Cannes em 1956 e vencedor do Óscar para melhor documentário no ano seguinte. Pela primeira vez, milhões de pessoas tiveram oportunidade de ver filmagens subaquáticas a cores, com uma narrativa muito interessante de rever quase setenta anos passados do início das filmagens. O filme deriva do sucesso do livro com o mesmo nome, publicado uns anos antes. A meu ver, nem um nem outro, livro e filme, têm um título feliz. O mar é tudo menos um mundo de silêncio, do sonar dos golfinhos às vocalizações dos xarrocos ou das corvinas. Mas o mais interessante é a necessidade de esses exploradores pioneiros passarem essa mensagem de silêncio. Foi o que sentiram. Foi o que queriam destacar no título. E ofuscaram os sons do mar com orquestra.
Como seria a estreia de um filme no festival de Cannes em 1956? Como contrastaria o veludo, o dourado e a iluminação da sala com a consagração de um documentário feito como nenhum outro antes? Feito por heróis, verdadeiros homens-rã (no filme não aparece nenhuma mulher; tal como caminhar na lua poucos anos mais tarde, aquilo era coisa de homens), cheios de coragem e engenho, que nos trouxeram um novo mundo, tal como as mostras de animais exóticos tão populares no séc. XIX.
Rever o filme nos dias de hoje pode ser divertido. Das sacas de lagosta para patuscadas, a nadar à boleia de tartarugas, há muitos comportamentos datados que hoje nos causam apreensão. Outros que nos repugnam, como arpoar um cachalote só para documentar um comportamento social de entreajuda, ou usar dinamite nos corais para os biólogos estudarem os peixes que lá vivem: “é o único método”, diz o narrador. Ou ainda um belo remate que ainda passa, embora cada vez menos: “para nós, mergulhadores, os tubarões são o inimigo mortal”. E pescam-se tubarões como quem doma um leão.
Mas é perigoso e muitas vezes injusto olhar para o passado com os olhos do presente. Hoje cancelamos, diz-se. Hoje o público de Cannes sairia da sala repugnado à primeira lagosta em agonia no convés do Calypso. Ainda assim, hoje só temos o Avatar: o caminho da água (muito pouco surpreendente, por sinal) porque por ali passámos. Julgamos os pioneiros, mas foi por eles e com eles que fomos construindo o caminho. Mesmo da nossa forma de julgar. E disso não nos livraremos.
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Fotografia de Gonçalo Calado.