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Satyagrahaha — o Superior Alívio da Incongruência

Certa vez, contaram-me que durante uma semana de Março de 1969, enquanto a Administração Nixon arrancava com o novo processo de vietnamização, dezenas de lentes de jornalistas enfiados num quarto de hotel aguardavam que John Lennon e Yoko Ono começassem a fazer sexo. Porém, ludibriada pelo desejo tórrido aparentado no sugestivo convite para a lua-de-mel dos recém-casados, a atenção mediática viu-se envolvida na pior festa do pijama jamais realizada em Amesterdão desde os tempos devastadores da peste bubónica.

Tal e qual como me contaram, o protesto pitoresco pela paz mundial assentava na forma violentamente preguiçosa como Lennon e Yoko sincronizavam actividades simbólicas de tão leve carga física que lhes permitisse andar pelo quarto com os pés ao léu. Deitados na cama por entre a parafernália cinematográfica, o duo hirsuto recebia convidados, falava ao telefone, posava para fotografias, fazia desenhos. O evento seguia uma rota lógica que ligava a banalidade da sua inacção à pacificação da sociedade, como se até então cada passo dado fora daquela câmara hiperbárica tivesse contribuído para a superestrutura que procuravam combater. De um carácter nobre e ardiloso, o casal antecipara que os denominados bed-ins fossem acompanhados pela imprensa com o expectável sensacionalismo desenfreado e a associada crítica neofranciscana que normalmente lhes dedicavam: “é a empregada que lhes faz a cama!”, “eles chegaram ao hotel num Rolls Royce branco!”, “cheira muito a marijuana!”. Em Bed Peace, o documentário realizado pelos próprios com imagens do certame, replicado em Montreal após consecutivos fracassos na anti-pot New York e no calor tropical das Bahamas, Lennon explica que toda a concepção do protesto consistia num mero gimmick publicitário que vendia a paz como produto, revelando aquilo que qualquer ícone cultural mais deseja quando chega ao topo: soltar um bafo de contra-cultura que conteste o reconhecimento de ter sido tomado pela comercialização da sua obra, entretanto reduzida à profundidade de um jacuzzi. 

Nas repetidas entrevistas sobre o como e o porquê de estarem todos ali, o beatle explicava aos presentes as matrizes diferenciadoras da sua plataforma não-violenta. “Eu acho que eles pensam que eu vou instigar a revolução, mas na verdade quero arrefecê-la”, preconizava. Importava-lhe que o protesto se despisse de intelectualismo, cortando-se com o verbalismo e chegando com maior facilidade à compreensão de crianças e donas de casa. Em termos estratégicos, tal apelo moral à generalidade do público conviveria ex aequo com a demonstração da matéria humorística que transbordava da figura surreal de um Jesus Cristo com poucas respostas e muitas dioptrias. No mesmo fôlego em que determinavam que todos eram culpados e por isso teriam de meter a mão na consciência colectiva, o casal notava simultaneamente que a gente precisava de rir mais da vida — numa das tiradas de humor-análise, Yoko responde que “as pessoas deviam baixar as calças antes de começarem a discutir”. Aproveitando o cenário composto para o efeito, Lennon gabava-se amiúde da grande diferença do seu protesto face ao sistema de manifestações vigente: “A oposição, seja ela quem for, e independentemente da sua forma de manifesto, não sabe lidar com o humor. Já nós somos bem-humorados. (…) Não queremos ser levados a sério!”, concretizava. 

No entanto, como tantas outras coisas que deixam de ser verdade a partir do momento em que são ditas, também Lennon e Yoko queriam muito que os levassem a sério. Numa das cenas do documentário que espelha esta indefinição, conta-se um trecho no qual Lennon se recusa a encaixar uma demonstração de yoga na sua apertada agenda de visitas. Uma recusa entre outras tantas que tiveram de dar lugar a mais “conversas sérias”, e que neste caso significou a ausência de imagens de um ídolo com cerca de um-oitenta e sessenta e poucos quilos em poses do guerreiro. Desperdiçar tal recurso humorístico ali à mão de semear — aproveitando a ainda quente associação atribulada entre os Beatles e o guru espiritual Maharishi Mahesh Yogi — foi como despejar pelo ralo um autêntico néctar dos deuses. 

Deste modo, jogando no campo da sátira q.b. para não assustar ninguém, o casal fundamentava o seu pitch de vendas num único pedido a quem estava do outro lado do escrutínio: serem interpretados à luz de uma auto-indulgência reconhecida pela capacidade de separação dos seus egos, ainda que fazendo pouco cuidado com a ambiguidade criada pela amálgama, própria do humor, entre os momentos em que estariam a ridicularizar comportamentos individuais e colectivos, e todos os outros instantes em que demonstrariam uma probidade dos seus pontos de vista sobre as crises manufacturadas de então. Ainda assim, nesta gestão de humores dificultada pela alternância entre entrevistas de perguntas difíceis e spots para a rádio, a proposta de atitude alternativa aos protestos não-violentos convencionais ficava demasiado dependente da predisposição dos próprios intervenientes. Entre outros episódios exibidos, nomeadamente as intervenções pungentes dos comediantes Tommy Smothers e Dick Gregory, ou ainda a breve cena em que o casal congratula um aliado chegado a pé desde Toronto (a mais de 500 km e em jejum!), o documentário acaba por exaltar um protesto que recaiu numa discussão sobre a forma do próprio protesto, centrando-se em si mesmo e sobrando pouco ou nada da intersecção entre o que era suposto fazer rir e o que era suposto fazer pensar. 

Na prática, como protesto-produto, poder-se-á concluir que o bed-in diferenciou-se pela sua tremenda falta de eficácia nos pormaiores: A guerra no Vietname ainda durou mais seis anos, os créditos pelo seu desfecho foram dados aos Realistas da época e, por um ou outro detalhe, a paz mundial não foi atingida. No entanto, nos pormenores, como a ramificação do conceito de não-violência satyagraha encabeçado por Gandhi e Martin Luther King, e contextualizado numa década cruenta que teve 1968 como apogeu da violência brutal contra protestantes — assumido pelo próprio Lennon como limite evitável — o bed-in marca o início do protesto levado para fora das ruas e trazido para dentro de casa; foi a inauguração de abertura de uma revolta em ambiente controlado que satirizava a necessidade ultrapassada de arriscar a morte por bala perdida; sem largar de vez a característica clássica do protesto reivindicativo pela causa, mas relativizando o que significa ganhá-la ou perdê-la. Foi a realização suprema, naquilo que Montesquieu tinha ditado uns anos antes, de um espaço para o indivíduo poder exercer sobre si mesmo um poder moral que não violasse o direito dos próximos. Por outras palavras, o protesto moldou-se a um método de reacção que exigia inteligência táctica dos seus executantes, resguardando-se de quem tinha adquirido o monopólio da violência como último recurso. 

Tal como apontou Robert Hughes, o crítico de arte australiano cujo apelido reverberava o derrotismo das suas apreciações em The Shock of the New, esta proposta de liberdade, própria de ser explorada pelo meio artístico dos anos 60 e 70, bebia do depósito das ideias comungadas pelos outrora surrealistas da década de 30. Porém, por recuperar um movimento que tinha fracassado com o início da Segunda Guerra, a proposta simulava a mesma subversão de expectativas agenciadas pelo humor, ainda que ambicionando que o seu método de comunicação resolvesse incongruências, ao invés de somente explorá-las. Este desígnio, ainda sob a ilusão de que o mundo estava “a nascer de novo”, vinculava-se ao humor porque entendia o seu uso como meio de produção de conteúdo viral, agarrando-se a uma universalidade que adicionava o deleite àquilo que já existia como humor absurdo. Nesta relação, o peso do humor reequilibrava-se com o próprio protesto numa equivalência entre agente de conforto e agente de subversão. 

Seguindo por este legado, e assumindo que pouco neste processo ainda é construído de raiz, todo o protesto — e todo o humor — sofre de um desgaste adicional no seu processo produtivo que decorre da depreciação dos seus factores. Pegando num livro de economia neoclássica, explica-se que a mais-valia gerada a cada novo protesto de humor absurdo é cada vez menor, podendo mesmo tornar-se uma “menos-valia” a partir de determinado ponto. Desta presumível quebra de eficiência, o humor torna-se necessariamente num factor que carece de constante renovação, sob pena de cair na alienação do seu verdadeiro propósito — acreditar-se-á que, se o humor aqui é utilizado como auxiliar da causa, sujeita-se a estar subordinado ao protesto, e não o seu contrário. 

Se o comentador de futebol Luís Freitas Lobo fosse linguista, diria que a palavra protesto é um campo lexical em forma de protesto: não há nenhuma outra que, partilhando um campo conceptual comum, obtenha resultados tão diferentes na relação que admite com os seus significados. Uma greve sindical é um protesto; uma ocupação é um protesto; fazer uma mala que contém apenas uma muda de roupa e o nosso peluche preferido é um protesto; o suicídio é um protesto. Porém, tendo qualquer protesto por base um sentimento de revolta, a mudança de paradigma e dos regimes políticos em vigor ditou que o recurso à violência autodesqualifica, não só por ser cada vez mais desproporcional face ao objecto, como também por ser considerada moralmente reprovável aos olhos da esmagadora maioria dos restantes concidadãos. Enquanto anátema, como temos a oportunidade de observar, essa violência não é exclusiva do confronto físico literal. Agredir obras artísticas é agredir-nos; porque a Arte somos nós, é nossa. Agredir monumentos históricos é agredir-nos; porque a História somos nós, é nossa. Por tudo poder ser violento, a violência tornou-se uma ferramenta acessível a quem dela se queira servir imediatamente. Em tudo, estar-se-á perante um risco de latrocínio a uma realidade que se prefere ver limpa, justa e inocente. 

Uma confirmação mais fresca desta resposta veio de um sítio mais perto, onde as respostas costumam estar. Numa recente aula dada a turmas do ensino secundário, o Presidente da República ensinava que “em democracia, o protesto é sempre certo desde que respeite os outros”. Assim, obedecendo a uma lógica de legitimidade democrática e a um compromisso da aceitação da diferença, qualquer protesto, ainda antes de o ser, passou a ter em conta uma nova métrica na análise das suas vicissitudes: Como é que se protesta dentro das regras? 

Então, bebendo dos anos 90 que beberam dos 60 (e que, como vimos, beberam dos 30), a introdução do humor revela-se como o modelo mais prático entre todos aqueles que cumprem as regras. Preservando o seu significado de antónimo de violência, o humor continua também a ser impulsionado por jovens que reparam na sua escassa representação em processos de decisão política que parecem atrair apenas gente uma beca cringe. São protestos que assumem o seu maior pendor humorístico, cumprindo um longo legado que inclui os panfletos pornográficos de Maria Antonieta, os bed-ins, as piadas sobre soviéticos e Salazar ou os partidos políticos satíricos em voga nos anos 90. Contudo, a contiguidade acaba aqui. Não é assim tão simples viver num tempo em que o humor já não é uma banda de garagem. Acabado o fascínio por algo que antes era considerado réprobo, o choque de liberdade que o humor causa será cada vez menos mortífero, mais popular e empático. E isto apesar de o sentido do humor se intensificar em protestos que nem sempre têm forma de saber se estão a ir contra o sistema ou a defendê-lo. Assumiu-se que o humor ameniza porque torna o protesto numa performance (termo depreciativo). Assim, com jeito, uma greve sindical é uma performance; uma ocupação é uma performance; fazer uma mala que contém apenas uma muda de roupa e o nosso peluche preferido é uma performance; o suicídio é a performance. É a denúncia geral face ao que é visto como deletério: o protesto que não só nada resolve, como ainda consegue prejudicar. 

Numa das histórias de agora com mais graça, contou-se que uma app criada pela polícia de Dallas — um canal de denúncia de actividades ilegais praticadas por protestantes afectos ao movimento Black Lives Matter — viu o seu software ser sobrecarregado de videoclips de korean pop (K-pop). Pela originalidade, e a consequente mediatização da acção, traçou-se uma intersecção clara entre causa e efeito, entre o que era para rir (assumindo que polícias a ouvir K-pop faz rir) e o que era para pensar (quem faz as regras ainda saberá mais do que aqueles habituados a viver sob elas?). Dado que quem faz as regras conseguiu reactivar a app no dia seguinte, diria que sim. Provavelmente com um sistema de segurança reforçado e um antivírus instalado. Aqui estará o verdadeiro contributo do humor: apontar falhas no sistema operativo, resultando no reforço do mesmo. Todavia, pessoalmente, prefiro registar na memória que os computadores de uma esquadra em Dallas foram inundados por vídeos de artistas de roupas coloridas e de cantar ininteligível, levando à provável loucura de um Clancy Wiggum. Pode soar a poucochinho, mas é a minha forma de protesto e a gargalhada sei que já ninguém me tira.

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