
Carta II – A Mulher Velha
Lado positivo: Sabedoria, colo, afecto, cuidado, tranquilidade, confiança.
Lado negativo: Fealdade, doença, morte; infertilidade. Inconveniência, indomabilidade.
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A coisa mais punk que Vivienne Westwood (1941 – 29 Dez. 2022) fez foi ser uma velha gaiteira. Até ao fim da vida, aos 81 anos, apresentou-se irreverente, já não por oposição à Rainha de Inglaterra mas ao estigma da mulher velha, com o seu cabelo branco, todas as marcas de um envelhecimento natural, e casada com um homem muito mais novo, com quem partilhava as criações artísticas, na área da moda (mas não só), assim como manifestos políticos e ambientalistas.
A Barbie pode ser tudo, excepto velha. Constato isto quando, na sua diversificação de modelos para as crianças (ainda maioritariamente do género feminino), apesar dos esforços de inclusão de diferentes tipos de corpos, estaturas e etnias, cores de cabelo e deficiências físicas, a boneca da Mattel, que agora se desdobra em inúmeras profissões tradicionalmente exercidas por homens (astronauta, polícia, etc.), para além das que já representava (babysitter, educadora de infância, enfermeira, cabeleireira, modelo), numa iniciativa para homenagear figuras femininas de destaque (“mulheres que inspiram”), nos presenteia com uma Jane Goodall (88 anos) jovem. Ora, façam uma pesquisa por “Jane Goodall” no motor de busca e verifiquem se a maioria das imagens que vos surgem não é de uma mulher mais velha. A primatologista será das poucas figuras femininas do imaginário colectivo que conseguiu a fantástica proeza de se popularizar como velha, tendo a aparência de velha (e bela), e mantendo a sua vida tal como a idealizou.
“A Barbie tem o direito de ser astronauta, mas não de ser velha”, diz-nos também Ellea Bird, ilustradora e autora de BD, presente no último festival Amadora BD.
A mulher não pode ser velha, a mulher não pode ser muitas coisas. Gorda, feia, mamífero, mãe; é penalizada em idade procriativa pela hipotética pretensão à maternidade, dado o maior risco de ausência no trabalho, e é penalizada mais tarde quando já não pode sê-lo, porque perde desejabilidade; nunca é branca o suficiente, ou está bronzeada o suficiente.
Graças ao #metoo e à capacidade de mobilização que as redes sociais trouxeram (principalmente a quem nunca teve o controlo dos meios de comunicação em massa), algo começou a mudar na indústria cinematográfica, influenciando outras áreas como a literatura, a moda. Há muito mais cinema feito por mulheres, mais velhas e mais diversas: realizadoras, argumentistas, actrizes (além de profissionais das equipas técnicas que se queixavam de discriminação e desrespeito), com personagens femininas mais diversificadas, mais velhas e mais bem construídas. É preciso que simultaneamente nos libertemos da obrigatoriedade da beleza e da magreza.
Felizmente, também por conta dos isolamentos impostos pela covid-19, os cabelos brancos ganharam visibilidade e muitas mulheres exibem cabeleiras grisalhas desde muito mais cedo do que se pensava ser possível; não sem que muita gente as tente dissuadir e as chame «velhas», usando a palavra como insulto, ou cansadas (também quando se apresentam sem maquilhagem ou se atrevem a existir sem recorrer a procedimentos de cirurgia estética ou “anti-aging”: botoxes, peelings, fios tensores enfiados nos tecidos sub-cutâneos (nas “testas, sobrancelhas, bochechas, mandibulas, pescoços, decotes, braços internos, mãos, joelhos, parte interna das coxas, nádegas, abdómenes”), preenchimento das maçãs do rosto, etc., etc., etc., num mundo em que até as mulheres mais novas ou mesmo menores de idade se mutilam em busca de ideais de beleza irreais, muitas vezes inspirados na pornografia destinada ao male gaze.
Nunca nada está bem: mamas, ancas, rabos, separação das coxas, narizes, lábios, lábios vaginais, papos, pelos, rugas, pescoços, cinturas, largura dos braços, pálpebras, maxilares; pelos são supérfluos e indesejados, cabelos nunca são demais (vejam o vídeo linkado, é breve e maravilhoso). “Cuidar de si” é um eufemismo para “alterar-se de forma a encaixar nos padrões estabelecidos, não para salvaguardar o seu bem-estar. “Empoderamento” passa por corresponder a estereótipos que alguém inventou, muitos alimentaram e enriqueceram uns quantos, das marcas de cosmética, às revistas femininas ou de moda de outros tempos, potenciadas por décadas de publicidade nos meios-tradicionais (que agora se faz nas redes sociais, à razão de milhões de imagens por segundo), incluindo clínicas de estética e comunicadores ou figuras públicas que ajudem a manter o élan.
Mulheres descritas como “poderosas” são elas próprias escravas de um sistema opressor que alimentam, numa cruel exploração do capital erótico, sendo que na realidade o seu poder depende desse estatuto de “desejável” que não podem arriscar perder ou ver substituído.
O verdadeiro poder está em não depender de ninguém ou da agradabilidade. O verdadeiro poder está em decidir, em ter dinheiro que não dependa do grau de desejabilidade, em ter liberdade para se ser o que se quiser sem depender dos olhos de terceiros. E o conforto não reside em saltos agulha de 10 cm que nos deformam os pés, a coluna, nos torcem os tornozelos, nem em corpetes que nos partem as costelas e não nos deixam respirar. Certamente, não consiste em arrancar pelos e gastar tempo em cabeleireiros todos os 15 dias ou vários minutos pela manhã em frente ao espelho. Não confere poder o gastar rios de dinheiro em procedimentos estéticos, nem que sejam as vulgares idas aos salões para unhas e cabelos.
Somos muito estúpidas grande parte da vida, mas com sorte marimbamo-nos para isso tudo à medida que vamos envelhecendo e começamos a saber preservar a nossa integridade, o nosso bem-estar, sem ser em frascos de formol.
Pena as artroses*.
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* Sinédoque – “artroses” pode bem significar toda uma série de achaques que ocorrem com a velhice, a menopausa ou peri-menopausa.