Parem de nos salvar
Num muro junto à Praça do Chile, em Lisboa, alguém escreveu: “Parem de nos salvar. Ass.: Golfinhos”. Associo esta frase a um episódio que um camarada das artes performativas, o André e. Teodósio, me contou. Por altura da estreia do seu espetáculo, que se chamava Metanoite (Fundação Calouste Gulbenkian, 2007), um espectador cruzou-se com ele no final e comentou: “Gostei muito, é desafiante, super experimental, acho muito bem, mas olha…” (e o camarada preparou-se para a adversativa) “… sabes que isto de experimentar é muito giro e tal, mas a certa altura, quer dizer… experimenta-se, experimenta-se, mas depois faz-se!” E por certo largou um sorriso que pretendia simular simpatia, mas denotava o escárnio de quem sabe o que é melhor para nós.
A insinuação era a de que o meu camarada mostrara uma incapacidade ao ficar-se pela preparação sem concretização. A desvalorização do seu fazer, ou seja, a consideração do seu fazer como não-fazer, era evidente para este espectador. Ele apresentara o produto inacabado, uma “experiência” ou uma espécie de “ensaio aberto”, expressão que se usa nas artes performativas para os ensaios que se partilham com público convidado, na esperança de obter a crítica que ajuda a fechar o espetáculo. Não tinha o espectador, portanto, assistido ao espetáculo Metanoite, antes a um ensaio aberto do espetáculo Metanoite. Sentia-se muita corrente de ar. Tratou-se de uma experiência.
É curioso que o artista camarada não tenha dado por isso e ainda hoje continue convencido de que não apresentou um ensaio aberto. A minha primeira explicação para a diferença de perceção entre autor e espectador, neste caso, é a de que existe uma diferença no entendimento que ambos têm do que seja um espetáculo. Ou seja, não interessa tanto para esta discussão a discordância estética, temática ou de gosto, quanto a discordância relativamente à definição do objeto em causa: espetáculo ou ensaio? Espetáculo ou experiência?
Estou convencido disto porque, recentemente, num outro espetáculo, Fora da norma (Biblioteca de Marvila, fevereiro de 2023), de uma outra camarada das artes performativas, a Cláudia Jardim, uma espectadora, já depois de bater palmas mas antes de abandonar o auditório, aproximou-se da camarada e perguntou se podia fazer uma “crítica construtiva”. Quando nos propõem “críticas construtivas”, adivinhamos imediatamente a costumeira adversativa, o tal sorriso que pretende simular simpatia e denota o escárnio de quem sabe o que é melhor para nós. Perante a disponibilidade da artista camarada para escutar, veio então a construção: que tinha gostado muito do que vira, que dava os parabéns, mas… que o espetáculo era demasiado curto e que aconselhava a referida espectadora mais meia-hora de ação pelo menos. Um espetáculo, para esta espectadora, tem de ter uma certa duração. Não importa o conteúdo, não importa o que acontece, importa, isso sim, a duração. É como se olhássemos para uma pintura e lhe exigíssemos antes de mais uma moldura retangular.
Não espero surpreender ninguém com a afirmação de que a relação que estabelecemos com um espetáculo é precedida da ideia do que seja um espetáculo, sendo por isso que os referidos espetáculos surpreenderam (leia-se: desiludiram) os referidos espectadores. Um espetáculo, no caso da Metanoite, tem de acabar ou, no caso de Fora da norma, tem de durar. Facilmente reconheceríamos outros preconceitos relativamente ao que é um espetáculo se falássemos com mais espectadoras e espectadores, mas foquemo-nos nas consequências desta precedência que permite julgar coisas como pertencentes ou não à categoria que reclamam, ou seja, concentremo-nos no modo como preconceitos (de)formam a nossa perceção mas também estabilizam a nossa verdade.
A experiência que o experimental evoca é a mitologia de uma experiência científica, realizada em laboratório, pensada para conduzir a um resultado que contribuirá para um “avanço” em determinada área de investigação. Apesar de tantas e tantos cientistas reconhecerem a experiência também e maioritariamente como o lugar de excelência do acaso, do falhanço e do inconsequente, paira sobre ela a esperança do fazer final, do sucesso, do espetáculo fechado e com a duração certa.
O que se ignora nesta caracterização é que essa vontade de concluir ou conseguir é imposta por uma ideia de espetáculo e experiência que pressupõe que devem satisfazer o nosso mundo, o que torna muito difícil aceitar que de um espetáculo de hora e meia apenas retiremos cinco minutos ou de uma vida apenas nos interessem dois episódios, por exemplo. Isabelle Stengers, filósofa e historiadora belga com contribuições para a história e filosofia da ciência, escreve que propor uma teoria é “reclamar que se dominou uma relação de forças, no que diz respeito ao que se está a interrogar, de tal modo que se foi capaz de fazer um fenómeno reclamar a sua verdade. A partir daí, o fenómeno (…) torna-se um objeto”. E acrescenta: “só se consegue falar de um objeto quando se afirma saber como julgar e se dispõe de categorias que permitem distinguir entre o essencial e o anedótico” [1].
Stengers vincula a ideia de julgamento à de objeto, o que será uma boa forma de distinguir os dois exemplos acima relatados de outras apreciações ou críticas que espectadores possam fazer acerca de espetáculos de teatro e outras obras de arte. Entre uma ideia de crítica que julga e uma outra que interpreta e se posiciona existe a diferença de um olhar que vê um “objeto” e um que não sabe ao certo o que vê. Para o primeiro espectador, Metanoite é claramente anedótico, para a segunda espectadora, Fora da norma está incompleto, o que faz com que não chegue para ser essencial.
Ocultei até agora uma curiosidade acerca do segundo dos espetáculos em causa: as duas atrizes e criadoras (ainda não mencionei a Inês Cóias) diziam durante Fora da norma, que aquilo a que assistíamos não era um espetáculo. O lugar que habitaram e construíram, durante aquela meia-hora, viam-no elas como mais próximo de uma “coisa”, apesar de, para a sua espectadora, ser “espetáculo” (ainda que inacabado). A diferença entre ambas as percepções e nomeações, porém, não se resume só a isto. Aliás, não me parece ser essa a mais relevante. Como as pessoas mais astutas provavelmente já perceberam, a diferença relevante está no facto de as artistas não saberem ao certo o que apresentam, ao contrário da espectadora que sabe que se trata de um “espetáculo”, ou seja, de um “objeto”, tal como ele é entendido por Stengers. É por isso que para ela uma crítica é um julgamento (“construtivo”, claro) e é por isso que para tentar convencer a espectadora do seu erro de perspetiva, a Cláudia Jardim insistiu, na sua resposta ao julgamento: “Mas isto não é um espetáculo.”
Metanoite também não era um espetáculo porque não queria ser um objeto. Talvez o nome que mais se adequava, e porque precisamos de nomes para falar das coisas, fosse mesmo “ensaio” ou “experiência”, por se apropriar do vocábulo que o espectador-juiz utilizou para desqualificar, qualificando-o e assim servindo-se dele para a defesa da indefinição, da ignorância, da corrente de ar e da ficção que o experimental ou o ensaio contêm. Mas mais adequado ainda, porque contribui para aliviar parte da ansiedade gerada pela nomeação, será multiplicar a nomenclatura e, em simultâneo, negá-la, para que o objeto possa voar e cair, partir-se e reconstruir-se, e a espectadora não tema o seu desaparecimento precoce e o espectador não exija a sua concretização, aliando-se ambos ao desconhecimento que a obra projeta sem o querer julgar, mas ainda assim podendo criticá-lo ou com ele conversar. Nenhum destes dois objetos, espetáculos, ensaios, coisas, obras, experiências queria ser essencial ou anedótico. Estavam à procura da continuidade do infinito e depararam-se com a parede da caridade. Felizmente não cederam porque, como bons praticantes do teatro cósmico, desconfiaram de quem os queria salvar.
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[1] Isabelle Stengers (1997), Power and Invention. Situating Science, University of Minnesota Press.