Denis-Oliveira_para_Unsplash

O Planeta Como Planeta

Não foi há muito que, no contexto de um colóquio onde se encontravam pessoas dedicadas a pensar o teatro ou as artes performativas ou as artes vivas ou essa coisa a que se dá nomes vários, mas que tantas vezes fala do mesmo tipo de objetos, Richard Schechner, uma figura reconhecida por essas mesmas pessoas, decidiu, na intervenção de abertura, apelar a que se suspendesse a guerra na Ucrânia, todas as guerras, aliás, para que se travasse, com toda a disponibilidade, uma outra batalha: a de salvar o planeta do desastre climático. Será escusado expor os argumentos. A justiça da proposta é evidente. O que poderá não ser evidente é o que pretende tal intervenção de abertura num colóquio que se apresentava com o título “Mente teatral”. 

Para quem não esteja tão familiarizado quanto eu relativamente a esta área de estudo, e sem querer maçar em demasia, tem-se por hábito identificar uma viragem, no final do século passado, que expandiu os estudos de teatro e que levou algumas universidades a identificar o campo como “estudos de performance”. Richard Schechner é uma das figuras a quem é atribuída a responsabilidade dessa viragem. Num dos seus livros, aquele que mais se assemelha a um manual para estudantes, inclui como objetos de estudo rituais vários e assuntos como turismo, as olimpíadas, julgamentos, terrorismo, etc., aproveitando a palavra “performance” e a sua semântica para justificar a inclusão, seguindo o princípio de que “tudo pode ser estudado ‘como’ performance”. 

Estudar alguma coisa como outra coisa será pois o que justifica a inclusão do assunto guerra e alterações climáticas no referido colóquio. Estudar a guerra como teatro, estudar as alterações climáticas como teatro. E é por isso que Schechner, nesse discurso, recorre à metáfora teatral de Clausewitz – “teatro de guerra” – e suas declinações. Por isso, também sugere que, já depois de resolvido o problema climático, e porque a espécie humana, segundo Schechner, nunca deixará de lutar por “território, hierarquia, recursos físicos e o controlo de ‘valores’”, se retome uma guerra “virtual”, que siga a “estética-política brechtiana” que “reconhece todo o ser humano como um intérprete de uma peça”: “um ‘teatro de guerra’ genuíno e um espetáculo global”. A guerra como teatro.  

“Como” não é tanto comparação quanto introdução para a metáfora, modo de incluir mas também de perceber. Perceber uma coisa como outra torna essa primeira coisa familiar e presente – Derrida, o filósofo francês, chamar-lhe-ia a “metafísica da presença”. A esperança de Schechner seria pois a de contribuir para que a sua proposta fosse mais perceptível para nós, seus ouvintes, gente habituada a ler coisas sobre teatro e para quem todo o mundo é palco, como diria Shakespeare. Em Roma sê romano, no Teatro sê teatral. 

Este movimento requer, porém, um pressuposto: o de que todas as que ali estamos temos a mesma ideia do que é Roma: Roma é habitada por romanos, tal como o Teatro é habitado por intérpretes e palco, por Shakespeare, Brecht e Artaud, por público e ribalta. Este é o mundo aborrecido de quem sabe onde está ou para onde vai. Não há desconhecido. Nada é cósmico ou infinito. E eu bocejo e adormeço na pasmaceira de um teatro que se reconhece.

A referida expansão, que se atribui a esta possibilidade de tudo poder ser visto como teatro ou performance, não passa de mero número de ilusionismo ou, na linguagem do auditório de Schechner, um golpe de teatro: tudo pode ser visto como teatro, mas cada coisa que é vista como teatro é encolhida e delimitada para ser contida pela existência metafórica e familiar que a palavra teatro autoriza. Guerra como teatro passa a uma guerra confinada a um palco com pano de boca, narrativa, adereços, protagonista e público a observar e muito Shakespeare e Artaud e Brecht. A expansão não é mais do que uma cosmética que acrescenta mais objetos ao campo do teatro. Não é o teatro que muda, é a guerra. E por isso continuamos a assistir ao mesmo espetáculo que nos é apresentado como novo.

As reivindicações mais recentes de algumas ativistas climáticas portuguesas foram atacadas por expandirem em demasia as suas preocupações. Foi dito que entre justiça climática e preocupações com a comida da cantina ou que entre problemas de assédio sexual e poupança de energia não há relação. Se fôssemos Schechner, diríamos que essa falta de relação pode ser facilmente ultrapassada. Basta que víssemos uma coisa como outra coisa, ou seja, que a víssemos como alterações climáticas. O esforço que, para estas pessoas, supostamente se exigiria então na leitura das reivindicações seria o de entender abusos sexuais como ações anti-ecológicas na medida em que contrariam uma ideia de justiça climática que a identifica como respeito pelo outro ou como relações simbióticas equilibradas. Já quem não quiser acompanhar esse esforço, facilmente afirma que “isso não é ecologia” como quem diz: “isso não é teatro”. Ambas as posições reforçam, porém, a estabilidade da palavra “ecologia”, não oferecendo qualquer contribuição para a sua expansão.  

O exemplo torna evidente, pelo menos para mim, que olhar uma coisa como outra coisa alimenta muitas vezes um conhecimento acabado ou morto, porque quem assim olha e pensa sabe já o que é o teatro, o clima ou as alterações a que estamos sujeitos. E é nas diferenças de opiniões entre quem acha uma ou outra coisa que se discute o assunto: cabe ou não determinado assunto no entendimento que tenho do que seja o outro assunto? Ou seja, pode ou não determinado assunto ser olhado (ou protestado) como “alterações climáticas”. E eu bocejo e adormeço na pasmaceira de uma recusa poética e cósmica, como bocejo num teatro que sabe o que é. É uma situação semelhante à das pessoas que consideram que quanto mais nos conhecem mais nos conhecem, enjeitando a possibilidade de que o convívio e a familiaridade são os lugares ideais para encontrar a estranheza e conviver com ela. Pedem-me que habite um planeta como planeta e eu preferia não habitar uma metáfora.

Relacionados

Simpatia Inacabada #10
Filosofia e História
Alda Rodrigues

Simpatia Inacabada #10

APANHAR AMORAS #2   Tudo existe para se transformar em palavras? Nós próprios podemos ser só respiração que deseja transformar-se noutra coisa. Em vez de falarmos em voz alta, murmuramos, como a água a correr, os ramos das árvores ao vento, as abelhas e outros insectos. Música do sentido? No

Ler »
Dicas de beleza para futuros falecidos
Boa Vida
Rafaela Ferraz

Dicas de beleza para futuros falecidos

Há duas fases da vida em que se torna absolutamente essencial ter uma rotina de cuidados de pele: a vida propriamente dita, e depois a morte. Felizmente, a indústria da beleza fatura cerca de 98 mil milhões de dólares por ano nos EUA, a indústria funerária 23 mil milhões, e

Ler »
George Carlin e a Verdade na Comédia
Artes Performativas
Pedro Goulão

George Carlin e a Verdade na Comédia

“Dentro de cada cínico, existe um idealista desiludido” Quando comecei a escrever na Almanaque, o Vasco M. Barreto pediu-me que não escrevesse sobre o estafado tema dos limites do humor. Aceitei, mesmo tendo em conta que isso era um limite ao humor, pelo menos o meu, e que alguns números

Ler »