Mario-Alvarado_para_Pexels

Weimar #4

RESSUSCITAR A FERROVIA – SEXUALIDADE – ARCA DE NOÉ – ESTADO  SOCIAL – PRÍNCIPE  ENCANTADO


RESSUSCITAR A FERROVIA

Desta vez, com alguma surpresa, o Messias ressuscitou a ferrovia. Foi oficial, mais uma vez. Os Messias eram aos montes, há muitos anos. A imprensa verificava os factos cuidadosamente e batia sempre certo: vêm para nos salvar. A verdade era diferente. No caso do Messias da ferrovia, o trabalho era feito por dezenas de milhares de trabalhadores asiáticos, acampados nas regiões interiores, alimentados a uma sopa amarela fria igual para todos. Eram esses semiescravos que alargavam a bitola dos carris, pintavam de vermelho novo o verde velho das carruagens, e à noite, em turnos chamados voluntários, plantavam alface em estufas clandestinas que alimentavam de verduras sustentáveis os restaurantes da capital. Na verdade, o nome Messias não passava de uma convenção bonita. A imprensa preparava o terreno de maneira a que ninguém sofresse, nem o próprio Messias, que amadurecia refugiado numa antiga juventude partidária, enquanto o povo era ensinado a votar em consciência. A própria crucificação era uma memória do passado, os chamados Messias viviam protegidos de qualquer crítica, qualquer chicotada, nem um espinho. Há anos que se anuncia um Messias para o sistema nacional de saúde. Suspeita-se que, desta vez, os próprios romanos estarão envolvidos.

 

SEXUALIDADE

A Sexualidade só poderá ser explorada com objetivos comerciais, musicais, ou em literatura para adolescentes, sem ilustrações. Na vida privada, a Sexualidade deve ser sempre acompanhada de uma desculpa. Os casais devem colocar o cartaz com a desculpa ao lado da cama. “Reprodução“, “Procura do eu”, ”É isto: estamos juntos há 50 anos”. Haverá inspetores contratados para ler os cartazes. Homens bons, de óculos. Sem sono. Tomarão notas de tudo o que virem. Se lhes for solicitado, piscarão o olho esquerdo. Compilarão estatísticas, não usarão nomes. Todas as semanas, depois do anúncio dos prémios da lotaria, as desculpas para o sexo serão comentadas por um político envelhecido e infértil, que chamará a essa conversa “Conversas em Família”.

                                 

ARCA DE NOÉ

Decidimo-nos pelo fim do mundo, mas não aquele da pior tristeza, escolhemos o fim do mundo como numa canção italiana. Subimos à Arca de Noé sozinhos, o cão, o gato, tu e eu. Um erro, talvez, o que acontecerá aos animais domésticos, sem descendência? Posso descer eu, podes descer tu, podemos oferecer o nosso lugar a um animal do sexo oposto, emparelhá-lo com um dos nossos animais de companhia. Seremos capazes? Nunca imaginámos que para salvar o futuro íamos abdicar de descendência. Mas é bonito: um mundo de cães, ou um mundo de gatos, num planeta feliz. Mas é bonito?

ESTADO SOCIAL

Nesse dia, o Estado Social regressou a casa cansado. Os elogios constantes tinham-no arrastado para um tipo de desespero lento, como uma pessoa obrigada a ser só alma e a alma aumenta até se transformar num peso grande e gordo que a ciência não compreende. Durante alguns segundos, o Estado Social pensou na sua mulher. Talvez estivesse no quarto, a dormir, ou não. O Estado Social passou a mão na careca e depois no que lhe restava de cabelo. Já não era um homem novo. “As coisas não são como dantes, já não somos meninos”, pensou o Estado Social. Nessa noite, o Estado Social deixou-se dormir no sofá da sala e a primeira parte do corpo que adormeceu não foi a alma. Amanhã seria outro dia. Depois de um café e uma torrada, recomeçaria o trabalho às oito e meia, depois de quarenta, cinquenta minutos de pé, num transporte público apinhado de desconhecidos. Recomeçaria o trabalho com o mesmo entusiasmo que tinha em meados do século vinte, pensou. A rotina é tramada, mas não há nada de que o Estado Social não seja capaz depois de uma noite de sono no sofá da sala. Se ganhar coragem, o Estado Social vai finalmente exigir ao chefe da repartição que o trate com minúsculas, como deus nosso senhor. É o mínimo.  

PRÍNCIPE ENCANTADO

O príncipe encantado engordou. Tornou-se habilidoso. Raramente monta o cavalo branco, trá-lo pelas rédeas, pela mão, e quem presta atenção aos cascos percebe que a tinta descascou e já se percebe o castanho sujo do pelo original da montadura. Desistiu de beijar a adormecida. Em vez disso, aparece acompanhado pela imprensa de referência e uma parte importante das forças vivas da cultura. Há concertos ao ar livre. Há comunicados à imprensa, fotografias. O cavalo impacienta-se, a noite dá lugar ao dia, e as clareiras mudam de sombras. Mesmo assim, e apesar do ruído, a bela adormecida continua a dormir. E a sonhar. 

Relacionados

Simpatia Inacabada #10
Filosofia e História
Alda Rodrigues

Simpatia Inacabada #10

APANHAR AMORAS #2   Tudo existe para se transformar em palavras? Nós próprios podemos ser só respiração que deseja transformar-se noutra coisa. Em vez de falarmos em voz alta, murmuramos, como a água a correr, os ramos das árvores ao vento, as abelhas e outros insectos. Música do sentido? No

Ler »
Dicas de beleza para futuros falecidos
Boa Vida
Rafaela Ferraz

Dicas de beleza para futuros falecidos

Há duas fases da vida em que se torna absolutamente essencial ter uma rotina de cuidados de pele: a vida propriamente dita, e depois a morte. Felizmente, a indústria da beleza fatura cerca de 98 mil milhões de dólares por ano nos EUA, a indústria funerária 23 mil milhões, e

Ler »
George Carlin e a Verdade na Comédia
Artes Performativas
Pedro Goulão

George Carlin e a Verdade na Comédia

“Dentro de cada cínico, existe um idealista desiludido” Quando comecei a escrever na Almanaque, o Vasco M. Barreto pediu-me que não escrevesse sobre o estafado tema dos limites do humor. Aceitei, mesmo tendo em conta que isso era um limite ao humor, pelo menos o meu, e que alguns números

Ler »