RESSUSCITAR A FERROVIA – SEXUALIDADE – ARCA DE NOÉ – ESTADO SOCIAL – PRÍNCIPE ENCANTADO
RESSUSCITAR A FERROVIA
Desta vez, com alguma surpresa, o Messias ressuscitou a ferrovia. Foi oficial, mais uma vez. Os Messias eram aos montes, há muitos anos. A imprensa verificava os factos cuidadosamente e batia sempre certo: vêm para nos salvar. A verdade era diferente. No caso do Messias da ferrovia, o trabalho era feito por dezenas de milhares de trabalhadores asiáticos, acampados nas regiões interiores, alimentados a uma sopa amarela fria igual para todos. Eram esses semiescravos que alargavam a bitola dos carris, pintavam de vermelho novo o verde velho das carruagens, e à noite, em turnos chamados voluntários, plantavam alface em estufas clandestinas que alimentavam de verduras sustentáveis os restaurantes da capital. Na verdade, o nome Messias não passava de uma convenção bonita. A imprensa preparava o terreno de maneira a que ninguém sofresse, nem o próprio Messias, que amadurecia refugiado numa antiga juventude partidária, enquanto o povo era ensinado a votar em consciência. A própria crucificação era uma memória do passado, os chamados Messias viviam protegidos de qualquer crítica, qualquer chicotada, nem um espinho. Há anos que se anuncia um Messias para o sistema nacional de saúde. Suspeita-se que, desta vez, os próprios romanos estarão envolvidos.
SEXUALIDADE
A Sexualidade só poderá ser explorada com objetivos comerciais, musicais, ou em literatura para adolescentes, sem ilustrações. Na vida privada, a Sexualidade deve ser sempre acompanhada de uma desculpa. Os casais devem colocar o cartaz com a desculpa ao lado da cama. “Reprodução“, “Procura do eu”, ”É isto: estamos juntos há 50 anos”. Haverá inspetores contratados para ler os cartazes. Homens bons, de óculos. Sem sono. Tomarão notas de tudo o que virem. Se lhes for solicitado, piscarão o olho esquerdo. Compilarão estatísticas, não usarão nomes. Todas as semanas, depois do anúncio dos prémios da lotaria, as desculpas para o sexo serão comentadas por um político envelhecido e infértil, que chamará a essa conversa “Conversas em Família”.
ARCA DE NOÉ
Decidimo-nos pelo fim do mundo, mas não aquele da pior tristeza, escolhemos o fim do mundo como numa canção italiana. Subimos à Arca de Noé sozinhos, o cão, o gato, tu e eu. Um erro, talvez, o que acontecerá aos animais domésticos, sem descendência? Posso descer eu, podes descer tu, podemos oferecer o nosso lugar a um animal do sexo oposto, emparelhá-lo com um dos nossos animais de companhia. Seremos capazes? Nunca imaginámos que para salvar o futuro íamos abdicar de descendência. Mas é bonito: um mundo de cães, ou um mundo de gatos, num planeta feliz. Mas é bonito?
ESTADO SOCIAL
Nesse dia, o Estado Social regressou a casa cansado. Os elogios constantes tinham-no arrastado para um tipo de desespero lento, como uma pessoa obrigada a ser só alma e a alma aumenta até se transformar num peso grande e gordo que a ciência não compreende. Durante alguns segundos, o Estado Social pensou na sua mulher. Talvez estivesse no quarto, a dormir, ou não. O Estado Social passou a mão na careca e depois no que lhe restava de cabelo. Já não era um homem novo. “As coisas não são como dantes, já não somos meninos”, pensou o Estado Social. Nessa noite, o Estado Social deixou-se dormir no sofá da sala e a primeira parte do corpo que adormeceu não foi a alma. Amanhã seria outro dia. Depois de um café e uma torrada, recomeçaria o trabalho às oito e meia, depois de quarenta, cinquenta minutos de pé, num transporte público apinhado de desconhecidos. Recomeçaria o trabalho com o mesmo entusiasmo que tinha em meados do século vinte, pensou. A rotina é tramada, mas não há nada de que o Estado Social não seja capaz depois de uma noite de sono no sofá da sala. Se ganhar coragem, o Estado Social vai finalmente exigir ao chefe da repartição que o trate com minúsculas, como deus nosso senhor. É o mínimo.
PRÍNCIPE ENCANTADO
O príncipe encantado engordou. Tornou-se habilidoso. Raramente monta o cavalo branco, trá-lo pelas rédeas, pela mão, e quem presta atenção aos cascos percebe que a tinta descascou e já se percebe o castanho sujo do pelo original da montadura. Desistiu de beijar a adormecida. Em vez disso, aparece acompanhado pela imprensa de referência e uma parte importante das forças vivas da cultura. Há concertos ao ar livre. Há comunicados à imprensa, fotografias. O cavalo impacienta-se, a noite dá lugar ao dia, e as clareiras mudam de sombras. Mesmo assim, e apesar do ruído, a bela adormecida continua a dormir. E a sonhar.