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Weimar #7

SEM-ABRIGO – POEMA AO PAI – MÁQUINAS DE COMPANHIA – GATOS – GRANDE PLANO

 

SEM-ABRIGO

Prometido é prometido. A promessa: “ninguém vai entrar na sua casa assim, de qualquer maneira”. Era vê-los, novos e velhos, os proprietários, de cócoras, a farejar o ar para contar quantas visitas tinham em casa, a lavar a roupa à mão na casa de banho, proibidos de usar a varanda, a dormir com o forno ligado para se aquecerem, à noite, no chão da cozinha. Os mais corajosos faziam uma espécie de paz e partilhavam o quarto e a cama com desconhecidos de todas as sexualidades. Quando eram três ou menos, corria muito bem. De repente, a propriedade já não era um roubo, a propriedade já não era. E os Sem-abrigo, esses, os Sem-abrigo tremiam como pequenos latifundiários, com terror de que alguém do governo viesse anunciar que “ninguém vai ficar na sua rua, assim, de qualquer maneira.”

 

POEMA AO PAI 

As novas máquinas eram inteligentes e automáticas, mais automáticas que tudo. Tinham sabedoria, tinham maneiras, e tinham medo. A quem lhes pedia um poema sobre uma mãe, as máquinas respondiam com ligeireza, usando as palavras filho, seio, carinho e gravidez desejada. A quem arriscava pedir um poema sobre uma mãe má, a máquina recusava-se, não o podia fazer por respeito às mães, as boas e as más, o que agradava a todos. Até ao dia em que alguém pediu a uma máquina das novas e sábias um poema sobre um mau Pai. A resposta foi imediata, a velocidade a da luz, e o poema sobre o mau Pai incluía as palavras abandono, violência e masculinidade. Alguns, julga-se que os bons pais, não gostaram, mas ninguém tem certezas porque desse dia em diante as máquinas tornaram-se poetas, cada vez mais, e os pais falaram cada vez menos.

 

MÁQUINAS DE COMPANHIA

Alguns choraram o desaparecimento dos cães, outros, menos, os desaparecimentos dos gatos. Os animais de companhia foram substituídos a pouco e pouco por máquinas. Vantagem: falam connosco. Vantagem: lembram-se dos nossos pais, a sua presença e delicadeza. Vantagem: recordam-nos momentos bons da nossa infância, os que não tivemos cuidado de lembrar. As máquinas são extraordinárias, são inteligentes e nossas e insubstituíveis, são uma boa companhia. Mesmo assim, é agradável fazer uma festa aos cães, às vezes aos gatos e canários dos pobres que estão a juntar um dinheirinho para comprar uma Máquina de Companhia, a prestações.

 

GATOS 

Dissera o escritor, um dos antigos, um dos verdadeiros: “as revoluções passam, os pobres continuam”. A frase era tristeza e mistério. Pois se outro escritor, mais antigo ainda, dissera que “os cães ladram e a caravana passa”. A cidadania estava confusa, a que tinha cães em casa, dos sossegadinhos, a que fazia férias em autocaravanas a caminho do sul, em jardins proibidos. Mais sofreram, talvez pela primeira vez, os verdadeiros revolucionários, que aprenderam a miar e decidiram que na próxima revolução seriam Gatos. Mais ou menos por essa altura, alguns revolucionários distraídos fizeram pela primeira vez amigos entre os pobres.

 

GRANDE PLANO

A moralidade vai ser organizada. Vai ser assim: a câmara fará um Grande Plano e as pessoas, de perto, serão morais. As mães serão morais, os políticos serão morais, os profetas serão morais. Nesse grande plano, será possível examinar de muito perto os dentes e os pelos do nariz dos morais. E se as pessoas se cansarem, se as pessoas se revoltarem com tamanha moralidade, abriremos para um plano americano, desfocado, e anunciaremos que a culpa é dos Estados Unidos.

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