Fotografia_de_Helena_Araujo

Bretanha – Casa com vista sobre a cidade

Quando vim morar para a Alemanha, em 1989, descobri que deixei parte de mim em Portugal. Sosseguem, não comecem já a revirar os olhos, que isto não é um fadinho e não vou choramingar que “quando parti, meu coração ficou, aaaiiiii…”. Porque não foi o coração – foram os hábitos. Tive essa revelação numa das primeiras manhãs da minha vida nova, quando entrei num autocarro praticamente vazio e me perguntei se devia cumprimentar o motorista, ou se “parecia mal”. Atravessar fronteiras é também viajar entre identidades, distinguir entre o que somos realmente e os costumes nacionais que se colaram ao nosso ser, descobrir o que de nós permanece adormecido num país e desperta no outro, o que fazemos naturalmente num e não fazemos no outro. Atravessar fronteiras pode ser um convite para chegar mais perto da nossa absoluta singularidade: quando escolhemos em consciência o que nos parece certo fazer, independentemente do país em que estamos.

O meu sogro, alemão, dizia que no estrangeiro todos somos embaixadores da nossa pátria. Pareceu-me uma boa ideia: “aqui ao leme sou mais do que eu, sou um povo que…”. E porque o mundo é como é, e as pessoas gostam de o arrumar em gavetas, o que eu faço noutro país acaba por ter efeitos na imagem que aqueles que contactam comigo vão ter de Portugal e dos portugueses. Somos montras, de certo modo. Pelo menos, é o que penso nos dias mais optimistas; nos outros, bem sei que, quando o preconceito contra um povo é grande, por muito excelente que uma pessoa se mostre, nunca será mais do que a excepção que confirma a regra. Como bem mostra o comentário bem-disposto de um dos meus irmãos quando conheceu os meus sogros: “Estes não são alemães – estes aqui são simpáticos e têm sentido de humor…”.
(Elogios em forma de bofetada: quem nunca…?)

Naqueles primeiros dias de Março de 2020, atravessando Brest de lés a lés num carro de matrícula berlinense, tratava com simpatia especial os peões fustigados pela chuva que tentavam atravessar a rua. Sorria à ideia de que o meu sogro ficaria contente com este contributo para retocar a imagem da pátria dele, e ria-me da ironia de ser justamente eu – uma portuguesa tantas vezes vítima de tiques xenófobos na Alemanha – quem cuidava de melhorar a fama dos alemães na Bretanha.

Demorei muito tempo a dar-me conta de que aquela atitude do meu sogro fora a forma positiva que encontrara para lidar com a dificuldade das suas origens. Ele, que tinha dez anos quando Hitler se suicidou no bunker e a Alemanha perdeu finalmente a guerra, nasceu, cresceu e tornou-se adulto numa nação odiada pelos seus vizinhos. Ao leme da sua vida, não respondia apenas por si, era obrigado a viver com a desconfiança que a História alemã, e particularmente o período nazi, provocara no resto do mundo. Mais que embaixador, tinha de ser relações-públicas.

Era nisto que pensava enquanto percorria a cidade em busca de um apartamento mobilado para arrendar quanto antes. Havia alguns disponíveis, mas ou ficavam demasiado longe do centro, ou eram demasiado caros, ou só estavam livres daí a três meses…

Ao fim de uma semana, cristalizaram-se duas possibilidades: um T1 com móveis novos em Saint Martin, num prédio dos anos quarenta acabado de arranjar, mas numa rua tristonha e num bairro sem céu, e um T0 com móveis indigentes na outra margem, numa das casas antigas da Rue de Pontaniou em frente à escarpa do Penfeld, com vista para o rio e o centro de Brest, e 200 euros mais barato que o primeiro. Difícil escolha: a vista, e os 200 euros de diferença – que, dizia eu a rir, podíamos aplicar em ostras e santolas – eram muito apelativos. Mas um T0 para um casal que há mais de 20 anos se habituou a ter escritórios separados em casa? Estávamos preparados para o salto de 80 para 40, ou até 20. Este de 80 para 8 parecia-nos um risco enorme. Mas aquela vista…

A chuva de Março na Bretanha facilitou a decisão. Como seria viver sob aquela chuva num bairro cinzento, de ruas estreitas e sem árvores? Estávamos cada vez mais inclinados a escolher o T0, e já pensava nele como T0 + ∞ – T0 por dentro das janelas, infinito por fora. A que se juntou outro infinito importante: a cultura e a vida de Les Capucins, todo um mundo novo e promissor que descobrimos no dia em que fomos tomar o pulso ao bairro. Em 2005, foi decidido reconverter os pavilhões das antigas oficinas da base naval de Brest para criar naquela margem do Penfeld um pólo de intercâmbio social, criatividade e cultura, servido por um teleférico integrado nos serviços públicos de transporte, que faz a ligação rápida ao centro da cidade. Sob os vastíssimos telhados das oficinas, nasceram uma mediateca, espaços de co-working, cinemas, restaurantes e lojas, uma sala de escalada. Mais interessante ainda, o enorme salão central – “a maior praça pública coberta da Europa”, dizia o prospecto online –, onde encontrámos uma energia excelente: crianças a andar de bicicleta, adultos a experimentar patins, monociclos, e até um tipo que parecia um gondoliere sobre rodas, deslizando por entre as pessoas na sua prancha gigante, que impulsionava com um bastão comprido. Alegria, liberdade, descontracção: vida. A um canto, repousava tranquilamente o canot de l’Empereur, uma peça de arte em forma de embarcação, ou uma embarcação de dezanove metros de comprimento em forma de arte, construída para Napoleão Bonaparte. Do outro lado da sala, os artistas da Compagnie Kiaï ensaiavam o seu bailado aéreo “Pulse” em três enormes trampolins. De olhos presos nesse espectáculo fascinante, decidimos: era realmente ali que queríamos viver nos próximos meses. O apartamento era minúsculo, mas Les Capucins eram enormes, e um sítio extraordinário para ir todos os dias ao entardecer respirar a vitalidade de Brest.

Embora houvesse inúmeros interessados, consegui que o T0 ficasse para nós. O que foi, viria a ocorrer-me mais tarde, um péssimo serviço à tal condição de embaixadora do seu país: a injustiça de um casal da classe média alemã que passa à frente dos estudantes e da mulher negra grávida, sozinha, com quem me cruzei ao sair e me provocou um sobressalto de má consciência. Eu queria aquela vista e Les Capucins a todo o custo, eles queriam um alojamento que pudessem pagar com os seus parcos recursos. Ainda agora me sentia tão boa pessoa por travar para deixar passar peões atazanados pela chuva, e no instante seguinte fazia gentrificação pura e dura…

 
No princípio da segunda semana de Março de 2020, o governo francês proibiu ajuntamentos de mais de cem pessoas. O jantar de colegas combinado para o sábado seguinte só tinha dez, pelo que não foi cancelado. Na casa de um deles, sentada a uma mesa ajoujada de marisco, via a rade à minha frente, sentia-me na Bay Area. Um luxo. Falámos do nosso apartamento, e comentaram: “Ah, a Recouvrance – o bairro pobre de Brest, ainda há pouco era zona de marinheiros e prostitutas”.

Também um morador da rue de Pontaniou, um português com quem metemos conversa, nos avisara:
– Vão-se mudar para aqui? Tenham cuidado com os golpes!
– Que golpes? As pessoas aqui não são de confiança?
– Os vizinhos? Cinco estrelas! Mas às vezes aparece por aí pessoal…

Ríamos, encolhíamos os ombros. Pensávamos naquele dia em que a nossa rua berlinense se encheu de polícias de operações especiais e descobrimos que o dono da casa da frente era o chefe de uma máfia que roubou muitos milhões ao Estado. As aparências enganam, os piores ladrões costumam viver nos melhores bairros, não seria um carteirista que nos ia impressionar.

Estava decidido. Seria a Recouvrance. E até já sabia que móveis iria comprar daí a alguns dias para transformar o pequeno apartamento num sítio agradável para viver. De bem com essa escolha, aproveitámos o segundo domingo da nossa longa estadia na Bretanha para ir conhecer uma das rias a norte de Brest. Navegando à vista das placas onde se lia plage, passeámos em praias lindíssimas e praticamente desertas. Aqui e ali pequenos ajuntamentos de casas de férias construídas no estilo que se estabeleceu ser o tradicional da região, uma homogeneidade agradável à primeira vista. No meio da praia maior e mais bonita, tropeçámos no inevitável bunker alemão da segunda guerra mundial.

Regressámos ao nosso lar de estudantes, de onde sairíamos no dia seguinte. Arranjara um apartamento turístico onde ficar até o nosso T0 + ∞ ficar livre. Mais duas semanas, e estaríamos a viver na rue de Pontaniou, a dois passos da animação e da alegria de Les Capucins.

Tinha tudo para correr bem. Pensávamos nós, sem imaginar que aquelas praias tão próximas iriam ficar inatingíveis durante muitas semanas, e que só dois anos mais tarde, num regresso de férias à Bretanha, reencontraríamos a festa que é Les Capucins.


(Continua)

Relacionados

Simpatia Inacabada #10
Filosofia e História
Alda Rodrigues

Simpatia Inacabada #10

APANHAR AMORAS #2   Tudo existe para se transformar em palavras? Nós próprios podemos ser só respiração que deseja transformar-se noutra coisa. Em vez de falarmos em voz alta, murmuramos, como a água a correr, os ramos das árvores ao vento, as abelhas e outros insectos. Música do sentido? No

Ler »
Dicas de beleza para futuros falecidos
Boa Vida
Rafaela Ferraz

Dicas de beleza para futuros falecidos

Há duas fases da vida em que se torna absolutamente essencial ter uma rotina de cuidados de pele: a vida propriamente dita, e depois a morte. Felizmente, a indústria da beleza fatura cerca de 98 mil milhões de dólares por ano nos EUA, a indústria funerária 23 mil milhões, e

Ler »
George Carlin e a Verdade na Comédia
Artes Performativas
Pedro Goulão

George Carlin e a Verdade na Comédia

“Dentro de cada cínico, existe um idealista desiludido” Quando comecei a escrever na Almanaque, o Vasco M. Barreto pediu-me que não escrevesse sobre o estafado tema dos limites do humor. Aceitei, mesmo tendo em conta que isso era um limite ao humor, pelo menos o meu, e que alguns números

Ler »