Fotografia de Linus Mimietz

A literatura tem de ser um gatinho fofo?

De repente, o maior perigo que a literatura tem é o de ofender. Noutros tempos, temia-se que não servisse para nada – não no sentido de não ser funcional, instrumental, numa sociedade, mas no de poder não criar impacto. Escrever e não criar um baque, eis o que aterrorizava quem se dedicava à incompreensível mania de inventar histórias.

Mas então chegou o século XXI, e com ele, em simultâneo, o medo das palavras e o desejo de que sirvam para amansar egos e tranquilizar a vida. Para isso, ao invés de uma técnica aprimorada, de uma capacidade de, com palavras, entrar em todos os recantos, há uma mania catequizadora de quem diz que há recantos que não podem ser tocados. Que há recantos que podem cutucar a sensibilidadezinha de alguém. E, nisto, o discurso deixa de servir para dizer, transformando-se per se, independentemente do seu conteúdo ou do seu propósito comunicacional, numa possibilidade de se mostrar apoio a X ou Y, de se dizer que se está do lado de uma luta, ainda que ninguém perceba o que é que está no ringue.

Tenho, por exemplo, levado com alguma irrazoabilidade raivosa nas redes sociais. Chega a ter piada vê-la planar tão à solta, cega, mas em nome de uma benevolência auto-afirmada. Gente que não conheço consegue fazer-me ataques ad hominem adivinhando-me mil intenções por razões desconhecidas. E catequiza-me: aponta-me o caminho para a minha melhoria moral, faz-me saber que, malgrado os meus crimes, posso ainda ser um soldado ao serviço da virtude.

O meu pecado? Choquem-se, que isto é crime a sério: acho absurdo dar-se «Boa tarde a todos, a todas e a todes [sic]». Se tal serve para que se crie, do outro lado, uma ideia ufana de superioridade moral, de quem, perante mim, reafirma a sua virtude, não deixa de me espantar que haja quem seja incapaz de se pôr em frente ao óbvio: um simples «Boa tarde» já cumprimenta toda a gente. Mas, nestes novos movimentos de controlo de linguagem que temos visto espraiarem-se nas redes sociais, com – pasme-se – a conivência de alguns órgãos de comunicação social, dizer deixa de servir para dizer, passa a servir para um auto-situamento. E um cumprimento deixa de ser um cumprimento, transformando-se num tratado em torno de uma teoria altamente subjectiva e que quer comer as outras – sem hipótese para se cogitar que um género gramatical identifique, no caso dos humanos, um sexo e não um sentimento.

Tenho um fortíssimo fraquinho pelo poder que as palavras têm, pela capacidade, se manejadas com mestria, de serem um tiro no alvo. Um coxo não corre melhor por eu lhe chamar pessoa com limitações motoras, um cego não vê a parvoíce que para aí ainda por eu lhe chamar invisual. Tenho um amigo que tem uma irmã deficiente. Até ele, que a amou desde a nascença, encontra o outro lado da vida quando diz «Tenho uma irmã deficiente». De repente, chega a censura benevolente, bem-intencionada, mesmo que nunca tenha lidado com deficiência alguma. Zás, ali vão eles: «Não queres dizer “pessoa com deficiência”?». Não, não quer. Para quê? Não se intui que a irmã é uma pessoa? Ia ser o quê? Um vaso?

A língua esterilizada parece querer mudar a vida, mas, em vez de a enfrentar, embeleza-a e extirpa-a do seu cerne, fingindo que mudou alguma coisa. Neste sentido, surgiram recentemente os leitores da sensibilidade, uma espécie de censores prévios das publicações. Apresentam-se nomeando todas as suas maleitas, disponíveis para encontrarem o que pode ferir alguém da sua «comunidade». Isto vai longe ao ponto de pegar em livros já publicados. Há dias, veio a público a censura justificada em nome das boas intenções: livros infantis de Roald Dahl foram modificados de forma a que lhes fosse tirado tudo o que podia ali incomodar alguém. Uma personagem deixa de ser gorda, passando a ser enorme (o Schwarzenegger e Hafþór Júlíus Björnsson também são enormes); outra deixa de ser feia (não passa a bonita, só deixa de ser feia); os oompa-loompas deixam de ser homens pequenos e passam a ser pessoas pequenas, para serem mais inclusivos (aqui, passam, na interpretação, a poder ser o que não são). Ora, um obeso não se torna saudável por se fazer tabu da sua massa adiposa, um Houellebecq não fica agradável aos olhos por se impedir alguém de dizer que entre ele e o Brad Pitt há um abismo. E dos oompa-loompas, que dizer? Dahl não fazia ideia de que fazê-los masculinos ia ofender quem quer que desvairadamente tenha ficado ofendido.

É o caos, o disparate. Usa-se o trabalho de Dahl para se escolher cirurgicamente o que ali serve a qualquer coisa, deturpando-se a obra inicial e fazendo-se da obra literária uma ferramenta com propósito predefinido, ao serviço do que apetecer a quem se põe no lugar de arauto da salvação moral do mundo. Tudo em nome de uma fofura qualquer que, convém dizer, não é a vida. E não é que a literatura seja a vida em si, mas convém que quem se mete neste jogo de crença consiga acreditar que o que ali tem é o que existe. E que, inebriados por uma ilusão, os escritores continuem nessa busca incessante — cansativa, impossível — de lhe conseguirem roubar o âmago, acreditando que, objectivamente, o entregam de bandeja no que escrevem.

Parece absurdo ter de o dizer, mas recuou-se até à tábua rasa, e por isso tem de ser: a literatura não é uma política pública, não existe para ser inclusiva ou exclusiva. Existe porque é uma descoberta em pleno – e se não for para descobrir ninguém vai perder energia a escrever. E, sobretudo, não existe para um fim predeterminado por meia dúzia de brilhantes cabeças que decidem a sós que o mundo precisa da sua extensa bondade – e que só eles para trazerem a maravilha ao mundo. Já tive catequistas assim e não gostei – o trabalho deles era impedirem-me de pensar. E estes novos censores, tal como esses mensageiros de uma vontade divina, tão bonzinhos são que até aos autores dizem que o trabalho deles, desgraçados, é o resultado de uma intenção degenerada. Que escrever que a personagem criada tem depósitos de gordura é a auto-estrada para o inferno. E há que cortar as pernas – as palavras – a quem não se move na arte pelas boas intenções, a quem não faz dos romances umas fatias de bolinho para agradar. Vêm como o fascismo: de mansinho, com botas cardadas ou pezinhos de lã, mas distinguimo-las porque são sempre gente muito boazinha. São sempre muito simpáticos, pensam sempre nos outros, têm muito amor para dar e as mãos cheias de bondade – e de lápis azuis prontos para riscar a prosa alheia.

Com esta bela brincadeira, perde-se ainda a responsabilização do leitor, já que a leitura deixa de actualizar a relação dialógica iniciada pelo autor. Não há espaço para essa resposta porque deixa de haver uma pergunta. Não há espaço para a interpretação porque só há um caminho a direito. Estupidificam-se os leitores, que, com isto, só têm acesso à tábua rasa. Qualquer ruga nessa tábua passou a ser uma inominável ofensa, não vá alguém entristecer-se com a efemeridade da vida, patente numa pele que vai deixando de ser lisa.

Ouço muita gente a perguntar qual é o papel da literatura no âmbito de X, o que é que deve fazer para melhorar Y, de que forma pode ajudar a incluir K. São as mesmas pessoas que se estão a lixar para essa literatura, porque só querem saber de que forma podem dominá-la, instrumentalizá-la para passarem a mensagem que acham que deve ser universal. Neste cenário, a literatura, de pergunta, passa a resposta; de abrir horizontes, passa a afunilá-los; de nos confrontar com a vida, passa a encaminhar-nos; de arte, passa a política; de sinceridade, passa a dogma. A arte é transformada em catequese, em escola primária, em boas intenções, em sentimentozinhos. E, nisto, perante um ataque à essência da arte que praticam, parece-me que realmente os escritores têm hoje um papel fundamental: o de não deixarem que as palavras deixem de ter significado.

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