A Calúnia de Apeles, Sandro Botticelli, 1495

Acabe-se com a ideia da presunção de inocência

O título é clickbait. Ninguém quer acabar com a presunção de inocência enquanto alicerce do Estado de Direito. Mas espero convencer o leitor de que não uso este truque de modo gratuito, pois o título é uma crítica ao habitual lembrete sobre a presunção de inocência que o fazedor de opinião lusitano sempre apresenta antes de nos dar a substância do seu comentário, que é – invariavelmente  – uma violação da presunção de inocência que diz defender. O último exemplo, e um dos mais didácticos, veio da pena de Manuel Carvalho, ainda director do Público, que esta semana cilindrou Boaventura de Sousa Santos como se já não houvesse dúvidas sobre os seus abusos morais e sexuais, mas tendo antes feito a tal defesa da presunção de inocência. Por que motivo persiste esta contradição absurda na nossa opinião publicada? Porque o fazedor de opinião se imagina garante do Estado de Direito e capaz de “evitar que a justiça do pelourinho nos faça regressar à barbárie”. Mas num país em que se sucedem as violações do segredo de Justiça e os casos se arrastam durante anos nos tribunais, respeitar mesmo a presunção de inocência condená-lo-ia a um silêncio incompatível com o feitio de muitos e o jornalismo de opinião.

Apercebendo-se da contradição, o fazedor de opinião tende para a pura racionalização. Um argumento invocado surge na forma do bordão “com aquilo que já sabemos…” A expressão e as suas variantes remetem sempre para um colectivo, embora nunca se saiba muito bem como se aferiu o consenso. Estamos no domínio do grau; para a Justiça a prova poderá não ser suficiente, mas já nos satisfaz se o objetivo for uma “reflexão” sobre um aspecto tenebroso da sociedade. Entre outros exemplos, esta prova que nos basta pode ser o que o acusado já admitiu ou uma investigação jornalística robusta, reiterada e exaustiva, sobretudo se feita por um jornalista com boa reputação. Há ainda a racionalização assente na qualidade: embora o que já se concluiu ter ocorrido possa não ser um crime, não sobrará dúvida de que é uma falha moral, merecedora de opróbrio público. Mas seja pelo grau ou pela qualidade, e mesmo tentando manter a discussão no plano abstracto, sem concretizar uma acusação, é inequívoco que só se pode comentar um caso nos termos definitivos e consequentes que nos atraem abdicando da presunção de inocência. E como poucos resistem a manifestar uma opinião violadora do que dizem defender e seria um atentado à liberdade de expressão proibi-la, a única solução parece ser abdicar de uma vez por todas da ideia da presunção da inocência na esfera pública. Que riscos corremos ao tolerar e promover esta ideia, que os formalistas e garantistas tomarão já por horrenda? Nenhum risco que não se corra já.

Não se corre nenhum risco novo porque a violação da presunção de inocência na esfera pública está trivializada. Ainda decorre o julgamento na Justiça de Ricardo Salgado e José Sócrates, mas há anos que estas figuras antes poderosas foram proscritas pela sociedade porque, tal como eu me convenci de que são culpados da maior parte das acusações que lhes foram feitas, algo que o fazedor de opinião tende a descrever em jeito de ressalva disparatada como a sua “convicção pessoal”, o mesmo pensará muita gente, creio que a maioria. Só assim se compreende que Sócrates seja inclusive ostracizado pelo partido onde chegou a ser “o menino de ouro” e que os seus direitos cívicos, teoricamente intactos, como a liberdade de expressão, na prática se concretizem tão mal, chegando a causar algum desconforto, visto ser nulo o impacto dos escritos deste ex-PM, sobretudo quando comparados aos escritos de outro ex-PM também com queda para o artigo ocasional.

Lembrar que já condenamos violentamente figuras públicas antes de o caso ter transitado em julgado não chega para isentar de riscos a minha proposta, sendo ainda necessário mostrar que não haveria um aumento do opróbrio e da possibilidade de se injustiçar na esfera pública um inocente. Sei que esta ideia é contra-intuitiva, mas defendo que abandonar-se a ressalva da presunção de inocência nestas discussões públicas talvez tivesse precisamente o efeito contrário, ou seja, poderíamos mitigar a probabilidade da condenação precipitada e injusta na esfera pública, como a tragédia que Paulo Pedroso viveu, por exemplo.

Ao abandonar a ressalva vazia de sentido e logo contraditória da presunção de inocência na esfera pública estaríamos a diminuir a mentira e hipocrisia públicas. Não será isto forçosamente benéfico, pois haverá algum mérito na mentira piedosa, como a que nos faz adiar nas crianças a epifania ansiogénica de que, afinal, na “vida como ela é”, valoriza-se mais a vitória do que a participação e não desistência. E todos temos presente que a boa educação tem sempre um pouco de hipocrisia e dissimulação. Mas aceitar e deixar claro que na esfera pública não garantimos a presunção de inocência a ninguém tem a vantagem de colocar uma pressão virtuosa sobre os jornalistas e cada cidadão nas discussões que vão marcando a actualidade, para que não sejam displicentes, argumentem bem, com rigor, atentos a falácias e conflitos de interesses. E remover este falso espartilho pode ainda trazer à discussão quem tem conhecimentos relevantes sobre a avaliação de cenários complexos e a quantificação da dúvida, o que seria muito vantajoso. Porque a esfera pública abomina a dúvida tanto quanto “a natureza abomina o vácuo”, sendo disso frutos a conclusão precipitada, a teoria da conspiração e o mero boato que levam à tragédia da condenação social de um inocente.

Releio o texto e soa-me a uma longa lapalissada, mas opto pela sua publicação porque a vontade de o escrever nasceu de duas críticas implacáveis que recebi ontem de bons amigos por ter assinado o manifesto Todas Sabemos. São amigos cultos, inteligentes, bem formados e com experiência de vida muito relevante para a discussão sobre o abuso moral e sexual na universidade (ambos são professores e têm ou tiveram cargos de direcção noutros contextos), pelo que me senti obrigado a reflectir sobre o que fizera. Mas não me arrependo. Fi-lo por me parecer importante dar sinais de apoio a quem foi vítima de abusos morais ou sexuais e não formula uma acusação por medo de represálias profissionais e pessoais. Os críticos dirão que (1) o manifesto acaba com a presunção de inocência e (2) é um incentivo para que surjam acusações falsas e condenações de inocentes. Procurei até agora rebater a primeira crítica, que julgo nascer da falácia de se equiparar a presunção de inocência na esfera pública (uma fantasia, pois não existe) à que existe na esfera judicial e é fundamental preservar. Não me parece sequer que haja um risco de pressão da esfera pública sobre a judicial, pois, como defendo, uma discussão pública franca iria reprimir os boatos e insinuações que vão correndo nos mentideiros, e, mesmo que assim não fosse, o nosso sistema judicial, assente na vasta maioria dos casos no tribunal colectivo, será mais impermeável a influências externas do que o sistema norte-americano, assente no tribunal de júri.

Quanto à possibilidade do segundo efeito pernicioso, a minha “convicção pessoal” é a de que estes casos serão residuais. Não quero com isto dizer que na cabeça de cada professor universitário homem, mesmo o mais impoluto, não estejam neste momento a fervilhar enredos de opróbrio imerecido, mas creio tratar-se de uma reacção a quente. Quem discute estes casos no plano etéreo dos princípios, recusando a evidência estatística óbvia de que estamos, tal como na violência doméstica, também perante um problema de desigualdade de género, irá condenar uma acção que leve nem que seja a apenas um injustiçado na praça pública, qualquer que sejam as consequências virtuosas dessa acção. Por outras palavras, o nosso garantista não está disposto a acabar com 100 casos de injustiça real e crónica por recear 1 caso futuro de opróbrio injusto (que não acabaria em erro judicial). Eu estou. E cada um saberá para onde irá pender o fiel desta balança.

Após a tentativa frustrada de um Me Too académico a partir de denúncias na FDUL, surgiu agora uma nova oportunidade de se refundar a academia segundo um modelo mais igualitário e em que a possibilidade real da denúncia restaure a justiça e previna o abuso moral e sexual. Não ignoro alguns dos riscos. E também por isso vou formando heurísticas que guiem o meu juízo e defendo uma discussão franca que não fique refém de estereótipos. Por exemplo, creio que se um acusado começa a acumular acusações de alegadas vítimas que não se conhecem, a dúvida na esfera pública começará naturalmente a dissipar-se, ainda que seja depois necessário averiguar se a onda de acusações não terá levado a um baixar da fasquia e à transformação de qualquer “micro-agressão” num abuso. E tendo em conta o modo reincidente como alguém pratica o abuso moral e sexual, creio também que uma acusação isolada e sem testemunhas que a corroborem não é suficiente para dissipar a dúvida na esfera pública e que, por mais forte, justa e inadiável que seja a maré de mudança, deverá imperar, também na esfera pública, o in dubio pro reo, não podendo a palavra da vítima valer mais do que a palavra do acusado, embora deva valer o suficiente para ser levada a sério e a uma investigação. A avaliação, também na esfera pública, terá de ser caso a caso, recusando-se as amálgamas e os efeitos de contágio.

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Imagem: A Calúnia de Apeles, Sandro Botticelli, 1495

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