«Tolo a rir-se», cerca de 1500, pintura a óleo, Jacob Cornelisz van Oostsanen (1470-1533).

«Humoristas de sucesso? São os gurus de um novo e necessário culto.»

Entrevistámos Pedro Reis Sabido, investigador do Ralston College, especialista em Estudos Portugueses e Brasileiros e Literatura Africana Lusófona, a propósito dos limites do humor e outras questões de linguagem. Falámos sobre os bobos de Shakespeare, os Beatles, o império da família Balsemão (adeus empregos na IMPRESA), gladiadores, gurus espirituais, e ainda, como não podia deixar de ser, o ChatGPT.

           

A polémica sobre os problemas da linguagem e os limites do humor não parece abrandar, apesar das toneladas de carateres produzidos em torno do assunto. Esta semana, o escritor Afonso Reis Cabral divulgou a recusa de uma grande editora norte-americana, supostamente por motivos de sensibilidade. Embora pudesse cobrir-se a gasosa superfície de Júpiter com a quantidade de recusas a escritores por esse mundo fora, o público discutiu apaixonadamente este raro revés na até agora fulgurante carreira do trineto do nosso famoso cônsul em Newcastle e Paris. Multiplicaram-se as notícias de jornais e as peças televisivas, em mais uma demonstração de que é preciso proteger o artista refinado dessa onda censória e perigosa, constituída por raparigas estudantes de Letras e professores universitários. Mas não brinquemos, o assunto é sério e difícil, caros leitores. Em matéria de liberdade de expressão, os humoristas, em geral, defendem a sua profissão com edificantes elaborações sobre os efeitos nefastos que a limitação da linguagem pode provocar no mercado de ideias. Alguns ativistas ou pessoas consideradas sensíveis defendem, com razão, a existência de limites em todas as atividades humanas, incluindo a opinião e mesmo a arte. A questão estará em saber: (1) quem traça os limites do humor e (2) como traçar esses limites. Mas são perguntas com sabor político-filosófico. Sente-se logo o cheiro a fogueira, não a fogueira inquisitorial, mas a fogueira do acampamento improvisado, com leve aroma a canábis, tão característico dos festivais de verão. Na verdade, o público em geral não parece ter grande paciência para estes problemas. E com razão. Há coisas mais importantes no mundo e se alguém tem o condão de nos fazer rir, devemos agradecer às leis da natureza a conjugação de esforços para a criação do humorista de sucesso.

Por acaso, encontrei esta semana, na Avenida de Berna, em Lisboa, na esplanada da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, onde por acaso por vezes também cheira a canábis, um antigo colega de universidade, Pedro Reis Sabido, atualmente investigador no Ralston College, na cidade de Savannah, Georgia (E.U.A.). A instituição experimental dedica-se a refundar as Humanidades, unindo um certo respeito pelos grandes autores (Shakespeare, David Hume, Samuel Johnson, Baudelaire), e a revitalização da arte de viver (aspeto misterioso que desenvolveremos talvez numa entrevista futura). O Ralston College conta com professores distintos na crítica da linguagem e na questão do chamado Free Speech, como o famoso Stanley Fish, grande especialista na poesia de Milton. Mas tem como chanceler o ainda mais famoso Jordan Peterson. Como é sabido, Peterson ocupou a primeira posição no campeonato das pessoas mais odiadas nascidas no Canadá, quando parecia muito difícil destronar a grande multivencedora, após anos de triunfos consecutivos, a cantora Céline Dion.

Conheço o Pedro Reis Sabido há quase vinte anos. Chegou a integrar um projeto de crítica literária, criado por mim, cujas edições on-line eram preparadas no café (quase defronte dos portões da FCSH), onde se bebia a imperial mais barata da avenida. Desafiei-o para uma entrevista sobre os limites do humor, a publicar na Almanaque. Combinámos o encontro no dia seguinte, mediante a promessa de que não censuraria à partida nenhuma das suas ideias. Como temos um conselho de editores, expliquei, o texto teria de ser previamente lido e editado, mas com a sua concordância, claro. Aceitou as condições e o resultado é a entrevista que se transcreve em seguida.

Estava um dia de sol, o jardim da Gulbenkian exalava a sua costumada névoa de santidade cultural. Um grupo de universitárias passou a caminho dos jardins com livros de Frantz Fannon abraçados contra o peito. Sentaram-se com os pés descalços sobre a relva e puseram-se a rir, num claro atentado contra a finitude da nossa condição. Depois, começaram a atirar bocadinhos de sandes aos patos, o que é proibido, segundo julgo saber. Comecei por contar ao Pedro como certa vez, enquanto esperava uma namorada, na época cantora no coro Gulbenkian, cheguei a ser expulso do recinto pela polícia, por considerarem estranho que estivesse às voltas, para trás e para diante, em frente à porta principal do edifício, num exercício peripatético que me ajudava a passar o tempo. Entretanto, chegaram as cervejas e iniciámos a gravação da conversa.

 

Foi bom encontrar-te, Pedro.

É sempre bom rever velhos colegas, mas a imperial está mais cara (risos).

Para quando o tão esperado livro sobre humoristas?

Escrever um texto contra os humoristas seria estúpido. Mas quem disse que fazer coisas estúpidas não é divertido? Os humoristas com toda a certeza não diriam tal coisa.

Ainda assim, é arriscado.

Jamais escreveria um livro contra os humoristas. As pessoas começariam logo a franzir o sobrolho. «Olha, este quer ir para lá». Sim, claro, quero ir para lá. Mas lá, para onde? Aqui é que a porca torce o rabo. Deixemos de lado, por caridade, a mais extenuada explicação: a inveja, essa chave inglesa de todos os assuntos portugueses. Com efeito, todos gostamos de piadas, mas nem todos gostamos de estar a rir o dia todo. Ora, quem não quer rir, não ri: dirá qualquer pessoa, incomodada com a arrogância deste crítico. Certo, tal como quem não quer ler esta entrevista, não lê. Creio que podemos arrumar desta forma algo brutal o problema da embirração mútua.

Está certo. Mas como justificarias uma crítica ao humorista de sucesso, quando parece tão óbvio que essa crítica seria a forma mais provável de caíres no ridículo?

Não é uma crítica. É a justa consideração de um valor. O meu propósito é refletir sobre o humorista, pois é impossível escapar à sua ascensão. Está por todo o lado, em horário nobre, no teatro e na televisão, na rádio e no cinema, em anúncios a cremes de hidratar e a seguradoras, nos palcos dos festivais, nas páginas das revistas, nas redes sociais. O mundo está cada vez mais estranho, mas felizmente temos o humorista de sucesso, sempre dotado da sua pena para nos fazer cócegas nos pés, mesmo quando queremos apenas dar um passeio ou chegar ao trabalho de manhã (ninguém tem o direito de entrar zangado e com cara de poucos amigos na fábrica ou na repartição de Finanças).

Bem, a vida não está para brincadeiras, podia ser o título de um programa desses agora tão populares.

É verdade que as pessoas ganham mal, mas não vão passar a ganhar menos por darem uma gargalhada enquanto ouvem os programas da manhã nas rádios. É uma avalanche de boa disposição e de alegria gratuita. Bem, gratuita não será.

E quem não tem carro?

Muitas pessoas estão a essa hora a correr para os transportes públicos apinhados, a caminho de ir lavar sanitas, servir em cafés de pé o dia todo, trabalhar em fábricas, ou carregar baldes de massa, o que tem imensa piada. O humorista de sucesso é uma terapeuta da nossa condição existencial. Devemos agradecer a forma como se sacrifica por nós. Nesses programas da manhã, somos envolvidos por um saudável clima de recreio de escola secundária, um dever de alegria, como se a vida fosse uma constante bebedeira em festa de liceu, cujo mote é cantado, a plenos pulmões, num refrão dos Beatles ou numa canção de Bon Jovi, mas com rima de coacher empresarial. A isso não será alheio o facto de alguns dos mais famosos humoristas e animadores de sucesso virem desse mundo edificante, especialista em técnicas cómico-festivas: o colégio privado ou, na sua versão mais bas-fond, o colégio de jesuítas.

Esse protagonismo do humorista de sucesso é antigo ou achas que entrámos numa nova fase do humor?

Essa é uma pergunta muito interessante, os humoristas cultos (ou com interesse em alardear a sua cultura) repescam a figura histórica do bobo da Corte, a simpática figura, especializada em cambalhotas, protegida pela necessária inimputabilidade, imortalizada na frase: speak truth to power. A comparação é interessante, mas o nosso humorista de sucesso ganha com estrondo essa competição hercúlea. O bobo era um solitário, protegido pelo rei, uma figura autoritária. O bobo era desprezado pelos aristocratas e na maior parte das vezes odiado pelos funcionários da Corte, embora temido por todos. Quanto ao humorista de sucesso, jamais se vergará às instâncias de poder da nossa época, sejam prémios, festas anuais de impérios mediáticos, festivais de partidos ou promoções de poderosas marcas multinacionais.

Mas estamos em Democracia.

Justamente.

Achas que a falta de interesse do humorista de sucesso em satirizar o seu patrão o enfraquece publicamente? Toda a gente entende essa zona proibida, afinal de contas, é preciso comer.

Se o humorista de sucesso aparece por vezes ao lado do grande empresário mediático, é apenas por dever de educação, ajudando os nossos jornais de referência a sobreviver (e sabemos a dimensão da hecatombe se por acaso não pudéssemos contar com essas publicações). Como iria Portugal sobreviver sem as diatribes do Eixo do Mal? Da mesma forma, veja-se o problema da desinformação. O humorista de sucesso colabora nessa nobre missão, sustentando financeiramente uma máquina bem oleada e muito competente, mas incompreendida pelo público. Além disso, o humorista de sucesso oferece o exemplo de que não é preciso ter estudos para se falar de tudo e mais um par de botas, desde que seja a brincar. Em boa hora a sabedoria e a certificação de competências deixou de ser condição essencial para falarmos sobre assuntos complexos.

Estás a ser irónico? Ou estás a dizer que o humor pode ser muitas vezes a pior estratégia para intervir no espaço público?

O humor é sempre refrigerador e os seus efeitos sempre benéficos. Não percamos tempo com minudências, o que importa é o riso.

Vou fazer de advogado do diabo.

O diabo não precisa de advogados, quando pode recorrer a editores de revistas.

Há quem diga que o humor é uma técnica neutra e pode ser utilizado para o bem e para o mal. Nesse sentido, a crítica do humorista não será tão essencial como a crítica do político? Aliás, não será o humorista de sucesso um político sem poder formal, mas com imenso poder mediático e retórico? Alguém com uma patológica necessidade de atenção e protagonismo, mas sem a coragem de ir a votos ou arriscar ideias e soluções para problemas complexos?

Não concordo. O humorista de sucesso desafia o poder. Mas onde está hoje o poder? Eis o tema a que será preciso responder para tratar cabalmente do fulgurante e necessário sucesso do humorista, no seu caso geral. Sim, digo caso geral, pois não devemos confundir a situação do humorista como função social (interessantíssima questão) com a da qualidade do humorista, individualmente considerado (questão apenas razoavelmente interessante).

Podes explicar melhor essa ideia?

Todos sabemos, as pessoas dirigem-se para onde a vida lhes sorri, embora às vezes se enganem na perceção. Acontece. Já todos confundimos um sorriso com um esgar de dor. Dizia-se de uma peça de Shakespeare que a diferença entre Comédia e Tragédia eram menos de dois minutos, o intervalo entre a chegada de Romeu, desesperado, confundindo o sono com a morte, e o momento em que Julieta acorda, quando tudo está já perdido para sempre. Há aqui um problema clássico, a diferença entre o valor social de uma dada profissão e a competência das pessoas, em particular, para estar à altura das exigências de uma profissão considerada importante e estimada, sendo por isso (a profissão de humorista) disputada por muitos. Isto pressupõe que a maioria das pessoas (ou pelo menos um grande número de pessoas dotadas de ambição e combatividade) prefere ocupar-se em profissões prestigiadas. Desde logo por razões pragmáticas: fama e/ou dinheiro. Mas isto não é assim tão simples. Em primeiro lugar, numa sociedade como a nossa, a fama traduz-se em problemas cada vez mais divertidos. Ainda mais interessante, começa a ser indiferente a direção do processo: o dinheiro é muitas vezes convertível em fama e a fama em dinheiro. Embora por vezes (lá está) com resultados cómicos. A raiz da comédia é o desencontro, o engano. Por outro lado, se sabemos desde há muito que o dinheiro não está ao alcance de todos, também a fama o não está.

A novidade estará talvez na base democrática da fama contemporânea, não achas?

É possível, a fama para os Romanos decorria de um ideal aristocrático e circunscrito por conceitos rígidos (virtus, pietas, dignitas, gravitas e disciplina) isto se não estavam envolvidos em colossais orgias ou a dizimar gladiadores no meio de tigres e elefantes. No mundo atual, a fama nas nossas sociedades depende das escolhas de uma multidão indistinta que não responde pelas suas escolhas.

Como assim?

Bem, é uma receita já vista no passado e muito promissora. Depois de termos experimentado televisionar o quotidiano de vinte pessoas fechadas numa casa, aguardamos com alguma ansiedade o dia em que trinta doutorados serão obrigados a conviver com tarântulas e jiboias, enquanto lutam pela vida, numa casa murada na Venda do Pinheiro. Imaginemos, sei lá, dez loiras esculturais e apenas dois indivíduos do sexo masculino, um deles especialista nas relações entre arte e ciência num filósofo francês, e o outro vendedor de automóveis e filiado no Chega. Alguém tem dúvidas do sucesso desta ideia? Em todo o caso, há imensas vantagens nisto de conferir à multidão o julgamento da qualidade. A primeira das quais, a capacidade de termos no pináculo da pirâmide mediática uma mulher humilde e sensível aos valores de Nossa Senhora, Maria, Mãe de Deus.

Achas que o humorista de sucesso é hoje um artista bem pago?

Não sei. As pessoas não gostam de falar do seu dinheiro. Especialmente artistas de sucesso. Como sabemos, o dinheiro suja as mãos. Mas faço uma pergunta. Que poder guardam para si os donos dos impérios mediáticos? Numa sociedade de milhões de pessoas, com igualdade de direitos, só alguém com muitos recursos consegue montar um sistema capaz de influenciar muita gente ao mesmo tempo, uma vez que os nossos interesses são múltiplos e tão numerosos como os narizes existentes no planeta. Isto é muito importante, pois não queremos uma sociedade onde cada um pensa pela sua cabeça. Seria o caos e lançaria no desemprego milhares de pessoas com imenso talento para sorrir. As pessoas levam tudo a sério e quando se referia que o povo podia finalmente participar na sociedade do conhecimento, ou quando se investiram milhões na transição digital, não era suposto ir com demasiada sede ao pote. Portanto, temos aqui o problema típico do ovo e da galinha. Não sabemos se os impérios mediáticos escolhem pessoas adoradas por toda a gente – visão meritocrática – coroando assim o talento popular. Ou se os impérios mediáticos vão premiando pessoas – crescentemente populares devido ao poder dos impérios mediáticos – mas saudáveis o suficiente para não colocar em causa os fundamentos desses impérios.

Bem, mudemos ligeiramente o ângulo. Em todo o caso, o humorista está sempre em risco, uma vez que o humor chateia sempre quem se sente visado, ou não?

É um facto estabelecido que apenas os génios e os doidos são capazes desse estranho ato filosófico: a crítica do poder, arriscando a tranquilidade e um salário razoável, e arriscando mergulhar a sua vida numa enorme confusão. Por outro lado, os estudantes de Humanidades também padecem desta mania, mas por razões involuntárias. Ninguém mais do que o humorista de sucesso arrisca a sua pele, se por acaso cair em desgraça desagradando ao público, seja lá isso o que for. Por isso é importante fazer a distinção entre humorista e humorista de sucesso. O humorista é o caso mais banal da situação mais rara, ou seja, o humorista de sucesso, esse sim, o verdadeiro bálsamo do nosso tempo. Podemos definir o humorista de sucesso como um humorista com enorme capacidade para navegar as águas sórdidas das empresas mediáticas, construindo piadas apreciadas por uma grande maioria de pessoas e sem incorrer em problemas, digamos, constitucionais. Uma qualidade rara, deve dizer-se. De qualquer forma, só o génio ou o doido (na verdade, trata-se da mesma coisa, como sabemos, não sendo preciso revisitar agora a psicanálise vienense) arrisca o sossego quotidiano, cuspindo no prato onde come, expressão popular e reveladora do espírito de compaixão habitual no coração do povo. Mas o génio não responde a nenhuma soberania (a não ser a sua arte) e por isso caminha na fronteira da loucura, sabendo que isso não beliscará o valor do que faz, mesmo que isso apenas seja reconhecido depois de morto. Logo, não tem a lucidez pragmática do humorista de sucesso. O humorista de sucesso é um grande cultor de uma coisa que os gregos, por mania e tique intelectual, chamavam (erradamente) demagogia. Um famoso filósofo e crítico literário, Michael Bakhtin, alertava para o facto de muitos humoristas serem conservadores escondidos. Num claro exagero (a leitura faz mal à cabeça das pessoas) este Bakhtin dizia que o humor se baseia (na maior parte dos casos) numa simplificação excessiva das situações. A graça, para ser eficaz, tem de recorrer a mecanismos simples. Não estamos a ver o físico e matemático escocês, James Clerk Maxwell, a explicar piadas através de equações diferenciais. Portanto, o humor é em grande medida uma negação da complexidade e da ambiguidade da experiência humana. Alguém forçado a explicar uma piada, ou a procurar dois pontos de vista numa anedota, não pode ser um humorista. Apenas pode ser um chato, a mais perigosa espécie do planeta. No fundo, estamos na mais maravilhosa das épocas. Os humoristas de sucesso conseguem em simultâneo desafiar o poder e viver confortavelmente no espaço mediático. Talvez pela primeira vez na história da humanidade, o humorista de sucesso foi capaz de criar uma situação extremamente desagradável para imensa gente, menos para si mesmo. Isto é notável e deve ser saudado.

Isso é humano, todos procuramos uma profissão a salvo da fúria populista e da cultura do cancelamento.

Sabemos que toda a gente gosta de manter o estômago bem forrado, algum conforto, e se possível alcançar a fama, é humano. Sou um grande apreciador da tendência que os humoristas de sucesso demonstram nos últimos anos para cobrirem com o manto da realeza metafísica a sua atividade. Faço piadas contra a morte, escrevo para questionar-me, existo para tornar mais conscientes as pessoas, denuncio o ridículo, etc. Notável manifestação de humildade. Isto quando podiam ser muito mais chatos e dizer: trabalho para ganhar dinheiro, de forma a não me incomodar muito e para que não me chateiem, embora isto por vezes implique imensas chatices, pois servir o poder mediático, e ao mesmo tempo a multidão, implica um contorcionismo onde podemos prejudicar muito a nossa saúde. Mas o humorista de sucesso não gosta de se autoelogiar em público. E logo abandona estas reflexões, embora, devo dizer, suspeite que o humorista de sucesso as continue em privado, sofrendo com abnegação. Em suma, o humorista de sucesso está sempre concentrado no bem-estar do público. O humorista de sucesso demonstra assim a sua profunda humanidade, mas sem nunca capitular perante a inveja ou o ressentimento. Nesse caso, deixaria de ser humorista de sucesso e passaria simplesmente a ser uma pessoa, o que é um defeito muito grave.

Uma coisa é certa: só uma pessoa muito inteligente alcança o estatuto de humorista de sucesso.

Para lá do problema do prestígio do lugar, da importância social ou económica da profissão, existe o problema da competência individual. Ninguém discute a importância dos médicos (em princípio, claro), mas nem todos os médicos são competentes. Ora, as profissões prestigiadas têm o problema de atrair (antes de mais) um dado perfil psicológico. Entre as funções mais estimadas pelas sociedades, podemos discutir problemas de justiça no prestígio, ligadas à perceção e à economia. Os jogadores de futebol com muito sucesso são prestigiados, mas não é certo que a sua função seja assim tão relevante, a não ser que tenhamos uma visão neoliberal (cruzes, credo) da economia, onde o valor é apenas conferido pela quantidade do interesse (expressa numa procura). O que é um enorme sarilho na hora de discutir se as mulheres devem nadar nuas da cintura para cima em piscinas municipais ou qual a pertinência de alocar verbas à investigação de medicação especialmente dedicada a tornar os patrões simpatizantes do comunismo. Na verdade, podemos sempre discutir a competência das pessoas (mais ou menos ambiciosas) para estar à altura das exigências das profissões prestigiadas. Logo, se quisermos discutir o problema do humorista de sucesso na sociedade contemporânea, teremos de considerar dois aspetos: (1) A pertinência do humor e a ascensão do humorista como atividade muito apreciada na sociedade contemporânea; (2) O novo perfil do humorista e a história relativa do humor nos últimos anos. Não sei se as pessoas estarão muito interessadas nisto.

É indiferente, a Almanaque é grátis, o que tem a desvantagem de estarmos condenados a convidar pessoas com algum tempo livre ou com grande generosidade. Tem a enorme vantagem de não sermos obrigados a ouvir os discursos do doutor Balsemão e do seu filho, ou as tiradas daquele senhor dos barcos, nas festas anuais das empresas.

A discussão do segundo obrigaria talvez a um exílio em Lanzarote. Fiquemos pelo primeiro ponto. Mas prometo ser breve. A única coisa que não prometo é uma gargalhada. Thomas More, a quem Erasmo dedicou um livro intitulado o Elogio da Loucura (ou da Tolice, se quisermos ser mais imaginativos), tinha ao seu serviço um bobo chamado Henry Patenson, representado nos retratos de família. Will Kemp, o bobo da companhia de teatro Lord Chamberlain’s Men, era desde 1590 proeminente ator e uma espécie de vice-diretor artístico, bastante mais famoso do que Shakespeare nessa mesma época. Talvez por isso o bardo tenha despejado um certo ressentimento contra a figura do bobo, na famosa cena de Hamlet. Mas Kemp era uma figura simpática, mostrava-se antes do espetáculo, recolhia os bilhetes e conversava com o público, gorro de orelhas com sinos, túnica multicolorida e uma insígnia de loucura. O que não o impedia de representar personagens inesquecíveis como Falstaff. Curiosamente, a obsessão de Shakespeare com o bobo e o palhaço revelava uma insatisfação com o purismo da farsa ou da comédia. Por isso as suas peças não eram barrigadas de humor ou simples comédias, sendo a gargalhada apenas um dos vários remédios que o corpo humano pode aplicar sobre a sua própria melancolia. Mas Shakespeare, como homem limitado, não era um humorista de sucesso, falhando as propriedades terapêuticas de uma dieta apenas constituída por gargalhadas, ainda por cima numa época em que os fármacos, sendo caros, eram tudo menos eficientes. Como tolo e pedante, Shakespeare incorreu num problema típico dos intelectuais: leu livros, nomeadamente, um velho livro romano, intitulado as Metamorfoses, livro chato – com muitas páginas e poucas imagens – onde o riso é usurpado por um festival de poesias retorcidas e pedantes lições sobre a complexidade da natureza, quando todos sabemos que a natureza é simples e se descreve no tempo de duração de uma anedota. Não admira que Ovídio tenha acabado exilado, em vez de comediante laureado nos Globos de Ouro, ou interrompido pela Clara de Sousa, em elaborações sobre a atualidade política.

Estás a referir-te ao famoso espaço de opinião de um dos mais ilustres advogados, um homem cuja vida se confunde com a Democracia.

Não necessariamente. A propósito, o advogado coimbrão não só se confunde com a Democracia como confunde a própria Democracia. Estou sempre à espera de ver aparecer o professor Marcelo, a recomendar uma leitura de serão.

Qual professor Marcelo?

Mas há dois?

Famosos? Sim, há dois, curiosamente, relacionados.

Em que ano estamos?

2023.

Obrigado, por momentos tive uma crise de perceção do espaço-tempo, mas já está tudo bem.

Segundo julgo ter percebido, na tua opinião, os humoristas de sucesso funcionam como guardiães da Democracia contra o populismo.

Felizmente, estamos longe de uma ditadura. Pensemos no caso da Roma antiga. Descambou num império, onde a multidão se empanturrava com espetáculos sensacionalistas, alimentavam uma religião absurda, liderada por sacerdotes perversos e poderosos, numa época em que os senadores e negociantes passavam os lugares de pais para filhos, os académicos eram medíocres guardiães da ordem e a comunicação e as notícias eram manipuladas por demagogos sem escrúpulos e advogados manhosos. Nada disto se passa hoje em dia, onde todo o mérito é submetido a concurso.

Estás a ser irónico?

De maneira nenhuma. Muitos dos humoristas de sucesso tiveram (e têm) um papel importantíssimo na divulgação do conceito de concurso.

Mas isso são jogos televisivos, tipo lotaria.

A jogatana, como dizia o antigo líder do PCP?

Sim, quero dizer, mais ou menos. Mas uma jogatana a favor do povo ou dos concorrentes. Olha, não desdenhava ganhar um automovelzito ou ao menos umas centenas de euros naqueles concursos apresentados pelo Palmeirim.

Sim, claro, mas só pode ganhar um de cada vez.

Mas querias que ganhassem todos ao mesmo tempo?

Porque não?

Tenho de dizer-te que considero perigosa essa relativização das conquistas sociais. Apesar de tudo, não se pode comparar a situação atual, em termos de direitos constitucionais, condições de vida, saúde, com regimes sanguinários e escravocratas como a Roma antiga.

Claro, expliquei-me mal.

As pessoas podiam ser vergastadas até à morte, atiradas aos leões (literalmente) ou condenadas a remar, presas a ferros, em galeras cuja missão seria despedaçar-se contra as muralhas de Alexandria ou Cartago, isto quando não acabavam assassinadas para simples divertimento noturno de um imperador no seu jardim palaciano com vista para o Tibre.

É verdade, mas por outro lado pertenciam à época que produziu Marcial, Horácio, Petrónio, Ovídio, Juvenal, Cícero, Séneca e Virgílio, e não corriam o risco de acordar de manhã e ler num jornal a virtuosa entrevista de mais um brilhante jovem escritor agraciado com o prémio José Saramago ou com o prémio Leya.

Bem, como diz o Sérgio Godinho, mudemos de assunto. O que pensas deste problema do cancelamento.

O mais vil ataque contra o humorista de sucesso é, como todos sabemos, o cancelamento. Não subscrevo a velha recomendação de Hamlet: «não devem os palhaços falar mais do que está estabelecido nos textos clássicos, pois demonstram assim uma ambição deprimente». Está a ocorrer-me outra ideia: «Se a tolice demonstrada não é adequada, os homens sábios caídos na loucura mancham a sua inteligência» – recomendação da simpática Viola, imaginada por Shakespeare em Noite de Reis.

Isso parece contradizer a tua ideia de que o humorista de sucesso tem mérito no estatuto alcançado.

Não propriamente. Antigamente, o bobo andava sempre com uma insígnia da loucura ou do humor. Era um emblema sagrado e protegia-o dos ataques das pessoas a quem ofendesse. Atacar um bobo era considerado cobardia. Ora, estamos diante de uma evidente crise de valores, quando vemos os humoristas de sucesso obrigados a aprender artes marciais para se defenderem das hordas de malucos. Não temos até ao momento notícia de qualquer ataque, pois, em boa hora, os humoristas de sucesso estão hoje mais bem preparados para o confronto físico. No meu caso, aviso já, a única arte marcial ao meu alcance é a leitura de livros chatos.

Não desvalorizes os riscos a que os humoristas se sujeitam.

De modo nenhum, vê lá o que fazes com esta entrevista.

Não publico nada que não queiras. Mas não creio que a vida dos humoristas de sucesso seja um mar de rosas.

Bonita metáfora. Por isso considero fundamental elogiar as manifestações de humildade que o humorista de sucesso faz a todo o momento, numa disciplina reverente às artes da simplicidade. As tolices que tão insistentemente apresenta em público – de modo a alegrar a triste vida da multidão, ajudando-a a suportar de forma mais risonha as crueldades da vida – são depois remuneradas em privado segundo um valor igualmente tolo, parece-me. Nesse sentido, para quê falar de uma tolice como o dinheiro? O humorista é um profissional do riso, mas sabe quando ser austero e respeitar as instituições. Também pode ser que o humorista de sucesso se exponha a tais figuras por pouco dinheiro, o que só engrandece a sua humanidade, a sua personalidade generosa e sempre aberta ao serviço público.

Não disseste ainda o que pensas da qualidade da inteligência necessária para alcançar uma carreira como humorista de sucesso.

Mais importante que tudo, é preciso cair em graça. Como diz o povo, cair em graça é muito melhor do que ser engraçado. Mais um caso evidente de sabedoria popular. O outro é: enquanto o pau vai e vem, folgam as costas. Podemos ser engraçados, mas ninguém notar. É preciso cair em graça, ou ser engraçado para quem tem o poder de fazer alguma coisa por nós, e nunca afligir quem tem a possibilidade de nos aplicar uma paulada nas costas. Hoje em dia, já não há senhores a distribuir paulada (a menos que sejam autorizados pelo governo), não quero ser acusado outra vez de relativismo, mas ficar sem emprego pode ser muito desagradável. Os estudantes de Humanidades são em geral péssimos nestas matérias. Têm a mania de que vão corrigir o mundo e veem barricadas em cada estaleiro de obras, mas quando sai de lá o operário, descobrem que a revolução afinal é uma maçada.

A comparação é injusta.

É verdade, o humorista de sucesso tem poderes paranormais. Um humorista de sucesso pode aparecer com ar de aristocrata falido e olhar penetrante (qual guru espiritual da Califórnia) numa revista de grande tiragem, escrever crónicas semelhantes a sermões, e acumular programas humorísticos de autor em horário nobre, influenciados pelos estruturalistas franceses (ou aquelas séries inglesas do Youtube), participar em peças de teatro erudito, convidar vultos da cultura e das artes plásticas para os seus talk-shows, suar as estopinhas para estar sempre na última moda da virtude moral, pode fazer tudo isso e ainda aparecer nas imponentes agremiações mediáticas para receber prémios de carreira, chamando fúteis a todos os presentes. Mas jamais será considerado pedante. Nada disso. Já o indivíduo que refira em público ter lido a Retórica de Aristóteles ou Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, corre o risco de ser considerado um pedante rematado e sem remissão.

Parecem-me coisas diferentes.

Talvez sejam. Não admira que o universitário Hamlet estivesse um bocado melindrado com a realidade das coisas. Como académico, farto da Universidade, não encontrara conforto entre os seus, despachando a maioria dos espetadores de teatro, com o disparatado juízo: «bando de incapazes, para além de inexplicáveis espetáculos idiotas e ruído». Hamlet era um pedante, todos sabemos. Felizmente, o humorista de sucesso nada tem da loucura de Hamlet ou dos palhaços de Shakespeare, ruidosos, provocadores, mundanos, cruéis, tanto para o povo como para os grandes, atraindo a gargalhada da multidão e o ódio dos poderosos. O humorista de sucesso (e bem) resiste a essas baixezas (não se irrita nem manifesta inveja ou quaisquer maus sentimentos), e não incorre na gratuita arrogância de alimentar ideias abstratas ou – gravíssima falta – soluções para os nossos problemas (de resto, uma das sátiras preferidas do humorista de sucesso é o livro de autoajuda).

Não te parece que esse ódio é o ódio típico ao competidor de mercado? No fundo, o humor não será uma espécie de autoajuda disfarçada?

Não me parece. As ideias corroem o espírito. O humorista de sucesso é um servidor da transparência, um denunciador do ridículo, um despertador de consciências para o sublime da parvoíce. Onde o palhaço de Shakespeare era o ridículo em si mesmo, colocando aos ombros o fardo da comédia (e já agora dos males e vícios da sociedade), o humorista calça os seus sapatos de veludo e distingue o ridículo – sempre os outros – da sua pessoa inestimável, cheia de virtudes.

Talvez tenhas uma certa razão, nesse ponto.

Por isso as marcas comerciais em dificuldades, apelando aos mais elevados valores da civilização, convidam o humorista de sucesso para vender os mais sérios produtos do nosso tempo: seguros, produtos bancários, eletrodomésticos a prestações, mas com juros baixos, atenção, o humorista de sucesso nunca perde de vista a denúncia do ridículo, não vai agora promover bancos com taxas de juro indexadas. Se me perguntas quem é o humorista de sucesso? É o guru de um novo e necessário culto: a vida como escola secundária. Já falei nesta ideia, o que é um elogio da juventude. Se reparares, os humoristas de sucesso andam sempre em grupo e são muitas vezes amigos do seu amigo, na mesma lógica do espírito de liceu. Uma das grandes virtudes juvenis é a técnica do bando ou do gang. O humorista de sucesso ataca muitas vezes quem já está no chão ou a sofrer a polémica do momento ou mesmo caído em desgraça. Ultimamente, descobriu um novo filão, raparigas anónimas oriundas das redes sociais (consideradas influentes) sobretudo pessoas que não têm acesso a plataformas mediáticas da mesma dimensão, o que é bem visto, o humorista de sucesso trabalha sempre na defesa da paz, procurando bater nos mais fracos, não contribuindo assim para a escalada do conflito. Outra vezes goza com figuras mediáticas muito apreciadas pelo público, mas desconsideradas pelas elites culturais, pois o humorista de sucesso é uma pessoa que lê livros, embora não goste muito de se arrogar essa qualidade.

E mesmo assim, às vezes estalam polémicas nos espaços noticiosos digitais.

O humorista de sucesso nunca se preocupa com o efeito da sua ação, pois é um ser generoso. É um autêntico tecnocrata da gargalhada. Fazer rir é o seu ofício. Como o riso é uma arte muito difícil, a obsessão com o riso tem um efeito imediato: entronizar o espasmo como um movimento delicado e refinado. Por isso o humorista de sucesso mantém o respeito pelo público e à medida que ascende na escala do sucesso, vai perdendo a piada, não por cedências na sua inabalável escala de exigências, por cansaço, ou sequer por efeito corrosivo de usar sempre o mesmo truque, mas por amor à saúde pública. Se as figuras de estilo são o fim e não um meio, isso implica uma hesitação perante a crua realidade. O humorista de sucesso, como não gosta (e bem) de pensar demasiado – um dos mais tristes e evidentes sinais de pedantice – mas apenas em função da utilidade (a gargalhada), recorre à ironia, dizendo sempre o contrário do que pensa e se possível não pensando em nada, mas apenas provocando uma gargalhada, para não incomodar muito as pessoas, o que é sempre perigoso (como já se disse). Mas está sempre disposto – depois de décadas ao serviço da comédia, aliviando as pessoas da responsabilidade de lerem livros chatos e pedantes – a denunciar todos os negacionismos e a defender a Ciência, combatendo a cultura do cancelamento. Como todos sabemos, o cancelamento é quando as pessoas discordam dos humoristas de sucesso. Só é pena a Física e a Biologia não terem ainda despertado para as propriedades da comédia, mas não podemos pedir tudo ao humorista de sucesso. Por agora, está ocupado a zurzir na falta de moralidade das pessoas que fazem barulho, falam alto ou andam com os telemóveis ligados no máximo nos meios de transporte. Lembremos que o próprio humorista de sucesso tem por vezes a cara em cartazes espalhados por tudo quanto são avenidas e praças (mas em silêncio), e se aparece de trinta em trinta segundos em anúncios de televisão e rádio, é para recomendar a compra de produtos bancários, no sentido de facilitar meios de pagamento ao cidadão remediado. É infinita a paciência do humorista de sucesso.

Podes dar exemplos?

Veja-se o enorme serviço prestado pelo humorista de sucesso à causa pública. No passado, a esquerda era encabeçada por operários (abrutalhados e sem educação, pouco dados a cultivar figuras de estilo), o que era muito inadequado. O triunfo do neoliberalismo pode ser explicado por esta insistência incompreensível, durante grande parte do século XX, em dar protagonismo a mineiros e cavadores. Felizmente, o humorista de sucesso veio finalmente em auxílio das massas. Como o humorista de sucesso é em média oriundo de classes educadas e com um nível mínimo de urbanidade (nos casos mais notáveis pode ser tocador de clarinete) a esquerda tem finalmente representantes à altura dos desafios contemporâneos. Mas o humorista de sucesso nunca se liga a partidos, não suja as mãos na promiscuidade político-partidária. Não cai nessa falta imperdoável de se pronunciar sobre coisas demasiado concretas, não abdica dos seus princípios, nunca descendo ao terreno fétido das soluções. Isso é para os políticos – de modo que possamos rir todos mais um bocadinho, com o facto de os políticos não terem ainda solucionado o problema da vida em comum, quando seria tão fácil vivermos todos no paraíso. Bastava nomear uma comissão de humoristas de sucesso.

Mas não é esse o seu papel.

Bem sei, insisto na minha ideia. O humorista de sucesso nunca cede espaço à complexidade de coisas que nem são para rir, nem para chorar, sob pena de assustar as pessoas. Convém nunca perder de vista o essencial: o humorista de sucesso é um artista, um bom artista. É, portanto, o contrário do mau artista, pois o mau artista só sabe falar dos colegas de profissão e criticar a arte dos bons artistas, ou seja, dos humoristas de sucesso. Já na Literatura se tem visto muitas vezes a mesma mania. Há uma espécie de gente, muito mesquinha, que se ocupa por vezes a criticar a qualidade dos livros dos outros. Isso é trabalho para a ASAE. Onde já se viu isto? Imaginem que os mecânicos gostavam de falar de mecânica e criticar os maus mecânicos? Ou que os padeiros se interessavam pelas diferentes técnicas de produzir o pão? Ou que os cantores se ocupavam a avaliar a afinação de um colega cantor? Seria uma imoralidade.

Bem, o que dirias a terminar sobre o papel do humorista de sucesso num mundo habitado pelo ChatGPT?

Como é bom de ver, o humorista de sucesso cultiva a aversão à falsa sabedoria e terá sempre uma enorme devoção pela comédia, essa forma contemporânea de culto (como já disse), tão útil na união das comunidades e na produção de sentimentos edificantes. Arrisco dizer que o triunfo do humorista de sucesso é um claro símbolo da nossa rara e feliz condição. A de jogarmos, cada vez mais, todas as nossas fichas mediáticas em profissionais do riso, por nos parecer que o mundo não tem conserto possível.

 
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«Tolo a rir-se», cerca de 1500, pintura a óleo, Jacob Cornelisz van Oostsanen (1470-1533).

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